Revolução Abissal escrita por brenoool


Capítulo 2
Prodigy and Squids


Notas iniciais do capítulo

Enfim, acho que esse ficou muito melhor que o primeiro t.t

Perdoem qualquer erro mínimo, acabei de terminar o cap e só revisei uma vez.

Cap narrado pelo Sammwel Dolkmomn



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Sammwel


Ano 2100


_Calma, gatinho... Isso, isso. Já to acabando. – Diz Bel para Bertho, numa tentativa fracassada de acalmá-la.



_Demonstrar afeto a uma lula não vai fazê-la te odiar menos. Mas se quer tentar algo, ao menos procure outro apelido, já que a Bertho é fêmea. – Digo, sonolento.


_E essa voz de sono, Sammwel? Ao menos meu serviço está sendo feito. – Respondeu Bel, sorrindo e apertando seus olhos puxados. Não sabia como ela conseguia demonstrar tanta satisfação ao limpar dejetos de lula. A fase de observação fora deixada na mão de outros mais profissionais do que eu, enquanto minha responsabilidade é injetar artômio e cuidar das necessidades das estrelas. Sendo que fui eu o idealizador do projeto. – Devem existir outros gênios como você por aí, e quando os acharem, adeus trabalho! – Completou, abrindo um sorriso de orelha a orelha com sua cara balofa. Ela não percebe que esse ato na maioria das vezes parece irônico, e me ofende. Enfim, talvez seja mais uma daquelas manias desse povo chinês esquisito. – Faça seu serviço com disposição, e quem sabe um dia chegará num alto escalão e poderá observar lulas, haha. Lembre-se, o esforço supera a genialidade, jovem prodígio.

Jovem prodígio. Foi assim que começaram a chamar a mim, Sammwel Dolkmomn, por eu ter conseguido a façanha de entrar para o MSICC – Master Scientific Institute of Chinese Connection. Conexão fora o novo nome inventado para designar a palavra império, mesmo que signifique, politicamente, a mesma coisa. – com apenas 20 anos, enquanto a maioria dos cientistas do local tem muito mais de cem anos.

Minha entrada lá não foi uma simples entrevista – método antigo de contratação, mas ainda usado nas contratações do Instituto – e sim um convite. Lancei um projeto na área de Artomologia Genética, que fazia uso dos genes das baleias modificadas nos Estados Unidos em lulas-gigantes ou lulas-colossais. Foram precisas muitas alterações no gene, assim como foi necessário com as baleias, pois o artômio, originalmente, só reagia com bovinos. E foi aí que minha genialidade na área entrou. O objetivo era simples e direto: desenvolver uma forma de vida racional que beneficiasse a nós, humanos. Minha ideia ia muito além, como criação de colônias submarinas, algo não tão distante da nossa realidade, com tanta gente em um planeta tão pequeno. Não havia espaço nem mesmo na colônia lunar; sua população já estava em torno de dois bilhões.

Eu sou originalmente americano, mas o governo de lá não se deu bola para o meu projeto. Quando eu tinha cerca de quinze anos, o governo da Conexão Chinesa se interessou e acatou fervorosamente a minha ideia, mesmo que eu ainda não saiba o porquê, e me patrocinaram. Ou melhor, patrocinaram o projeto. Só participei de fato nos dois primeiros anos, e quando tudo começou a dar certo e ficar interessante, decidiram passar a pesquisa para o setor bélico, e virei um simples funcionário. Mas ainda consigo sorrir algumas vezes no dia, ao lembrar que saí daquele buraco chamado Estados Unidos. E, enfim, Ao menos ganhei um laboratório digno, e Bertho, um tanque tão grande quanto seu tamanho.

Preciso descansar minha mente dessas futilidades – passei a classificar assim assuntos desse gênero, tamanha a minha revolta – e ligo o meu Discover. Passo alguns minutos lendo um artigo em um UC qualquer discorrendo sobre teorias da conspiração, dizendo algo sobre o céu estranhamente vermelho desde o nascer do dia, ao mesmo tempo em que ouço alguns ruídos; Bel cantarolando com a Bertho. Decido ignorar ambos.

Depois de alguns minutos, acho um UC de um americano chamado Shast, com coisas interessantes sobre o que está acontecendo no país agora. Segundo diz, ele trabalha como vigia de um tanque de baleias do tamanho de uma cidade. Mando um comentário com agradecimentos vagos, afinal, se não fosse por essas baleias, meu projeto mal existiria.

Sua última atualização foi há poucos segundos, dizendo algo sobre o início do efeito das descobertas do artômio. O tema é interessante, mas está tudo tão mal escrito, que parece que o sujeito nunca pisou os pés em uma escola antes. Bem o estilo dos EUA mesmo.

Saio do transe com uns socos no rosto. Dou outro de volta com meu braço esquelético de nerd, e pareço ter acertado algo macio.

_Seu pervertido! – Grita Bel, respondendo com um chute na minha barriga magrela. Caio no chão tossindo, quase vomitando o café da manhã. Vejo só um vulto rechonchudo na minha frente, massageando os seios com dor. Não foi minha intenção, droga. – Eu posso ser assim, um pouco gorda, - Um pouco? Sério mesmo? – Mas não significa que eu to carente! Existem robôs para isso, nerdzinho.

Ero-Robots. Parece estupidamente idiota, mas foi essa a solução que o governo criou para diminuir a natalidade, e fazer as pessoas desistirem de procurar um parceiro. Eles, ou melhor, elas, são simplesmente perfeitas. Meu sonho é ter uma, mas imagino o quão constrangedor é algum visitante chegar a sua casa e ver uma mulher-robô nua gemendo seu nome e rebolando na mesa da cozinha, por isso prefiro ficar na minha. Mas não chega a ser um sonho de consumo, pois a tecnologia nessa era é muito acessível e extremamente barata, ao passo que qualquer um pode ter acesso a ela. Sua produção é cada vez mais simples, e os países que antes reinavam graças a ela, hoje não passam bem. Com tanta gente precisando de comida, ninguém se importa de pagar o quanto for por ela, e foi a partir daí que países agrários começaram a reinar.

Fico lá tossindo no chão em posição fetal por um bom tempo, pedindo desculpas sei lá para quem, até perceber que Bel está se divertindo com tudo aquilo, rindo loucamente. Levanto, tentando recuperar o resto da minha dignidade, e pergunto:

_Porque tirou minha paz, afinal? Se agora é permitido agredir os parceiros de trabalho, que você se prepare. – Franzo o cenho para ela, e percebo por sua expressão que não adiantou em nada. Eu realmente não sei intimidar.

_Relaxa, Sam. – E ela me chama pelo meu apelido. Algo está vindo. – Te tirei da sua “paz” porque tenho duas notícias, uma boa e outra muito boa! – Conclui, mostrando seus dentes tentando fazer algo parecido com um sorriso, novamente. – Escolha qual você quer que eu fale primeiro.

_Fala de uma vez, você sabe que não importo mesmo. – Sento na cadeira, tentando fazer uma posição de relaxado-despreocupado, mas minha dor do chute recente não me permite. Me pergunto o quanto ela está segurando o riso.

_Ah, mais disso você vai gostar. Envolve o gostosão ali. – Disse, apontando para o tanque de 80 mil litros da Bertho, a lula-colossal.

_Eu ainda tenho que repetir que é uma fêmea?

_É, nisso você deve ter razão. Porque, se fosse macho, acho que não estaria grávido. Opa, grávida. – Solta ela.

Eu literalmente me engasgo. Não sei ao certo com o que, provavelmente com o ar, mas eu me engasgo. Aquilo não podia ser verdade. Era bom demais.

Claro, lulas não engravidam de jeito nenhum; elas morrem depois do acasalamento, tanto macho como fêmea, deixando os ovos a própria sorte, com substâncias fungicidas e bactericidas, para afastar os predadores. Mas Bertho era especial. Fora modificada por mim mesmo, quando eu tinha 14 anos. Trouxe ela de um tanque que levei uma vida para comprar, lá nos Estados Unidos, até o Instituto, para ajudar nas pesquisas. A verdade é que ela me conhece, e gosta de mim acima de tudo. Tem estado do meu lado por todo o tempo, uma companheira. E, depois que o artômio desenvolveu sua capacidade racional, e ela passou a compreender a nossa relação, e me reconhecer como pai dela. Não é exatamente como se eu estivesse me tornando um avô; mas a emoção é equivalente.

Mal percebi uma lágrima intrusa, caindo dos meus olhos sem permissão. Bel dá um sorriso convidativo.

_Garotão, não é hora de ficar assim! Agora é a notícia muito boa! – Diz ela.

_E qual seria?

_É hora do almoço, Sam. – Fala, mostrando a língua para a minha expectativa pisada.

Não me importo, e a surpreendo; A envolvo em um abraço cheio de emoção. O calor do seu corpo gordo – ops, macio – me dá uma sensação de lar, de família. Acabo a considerando assim, sendo ela a pessoa mais próxima de mim, devido a meus pais estarem nos Estados Unidos.

Nos encaminhamos até o refeitório, e passo pelos corredores de vidro, que nos fazem lembrar no quanto o Instituto é imenso. Uma das maiores construções da Conexão Chinesa moderna, sua área ocupa toda a antiga Hong Kong, ultrapassada há décadas atrás. É o segundo maior centro tecnológico do mundo, perdendo apenas para o Criadouro e Pesquisatório de Baleias, posse dos americanos. Olho dessa vez para os lados, e me deparo com um intenso céu vermelho. Aquela página UC não só estava contando meia mentira, então. Mas é algo totalmente remoto que seja o fim do mundo hoje. Com certeza, é apenas a Colônia Lunar preparando um espetáculo.

Chego ao refeitório imenso, com suas 2500 mesas inteligentes. Mesmo isso não é suficiente para o número de funcionários do local, de forma que todos são divididos em quatro grupos, cada qual com um horário de almoço: 11h, 12h, 13h e 14h. Não economizaram no espaço e qualidade dos laboratórios, fazendo com que o refeitório ficasse abaixo da expectativa.

De alguma forma, parece que todos que compartilham meu horário são desagradáveis.

Sento em uma mesa para dois, junto com Bel, evitando que gente indesejável venha puxar assunto. Quase que imediatamente, a mesa, já registrada com os meus gostos, faz surgir um prato de um buraco no meio dela. Para ela, aparecem três pratos do tamanho de bandejas. Dá até certo enjoo ficar olhando pra tanta comida, e pensar que aquilo tudo nunca conseguiria entrar no meu corpo magrelo de nerd.

Visualizo todo o refeitório; Espalhados na ala norte do local, está os profissionais de robótica, desvalorizados. Ninguém gosta de robótica; ela se tornou muito fácil e acessível. Até um biólogo como eu consigo montar um simples Ero-Robot. Bel aponta para o cantinho esquerdo da ala norte, onde a equipe da limpeza tocava uns instrumentos estranhos. Uma mulher fazia um sapateado estranho em cima da mesa, e ouço alguém passando se referindo àquilo como samba, algo bem antigo da Conexão Brasileira. Que sambem o tanto que desejarem, mas não em cima da mesa, muito menos aqui. Quanta indisciplina.

Na ala sul, os químicos do setor farmacêutico, e os astrólogos e meteorologistas, todos imprensados contra a parede de vidro, em certo tumulto. Não podiam estar realmente preocupados com aquele céu, podiam?

Bem no meio, se encontrava o presidente Gavva, um velho com seus 160 anos, cheio de manias e que adora encher meu saco. Como se estivesse lendo meu pensamento, redireciona seu olhar em direção a mim, e começa a andar lentamente até hoje.

_Realmente, mas já fazem parte de mim as manias. Mas garanto que é coisa da sua cabeça sobre eu me importar contigo. – Diz, levantando uma sobrancelha em tom de ironia. Não preciso mencionar minha cara perplexa de abobado, depois que ele disse isso. – Gracinha! – disse, se referindo a Bel. – poderia me dar licença para eu conversar a sós com Sam?

_Claro, senhor. – Respondeu, sorrindo, e saiu carregando suas três bandejas de comida, atraindo olhares curiosos por todo lado.

_Senhor... Como você... – soltei, ainda incrédulo.

_A maioria dos gênios são, na verdade, os maiores ingênuos. Não sabem mentir, enganar, ou ler as emoções alheias e aprender com elas. Confiam tanto em seu cérebro polido, que passam a julgar os que se encontram ao seu redor, e excluir-se deles. E é aí que nós os derrubamos. – Disse, com um olhar profundo em direção a mim. Seja lá qual for seu motivo por trás dessa conversa, o ingênuo do contexto sou eu.

_Nós, você se refere aos sábios? – pergunto.

Com seus movimentos limitados, pousa sua mão enrugada em meu rosto, próximo aos meus olhos, enquanto aponta, com a outra, em direção aos seus.

_Aos observadores. – Conclui.

_Então, você não leu minha mente de verdade, seu velho. – Bufo, e me reaconchego no estofado macio. Percebo logo que, mais uma vez, seria mais uma conversa chata com ele me enchendo o saco, e eu rebatendo respostas curtas.

_Claro que não, jovem prodígio. Você é bastante previsível, apenas isso. – E estala os dedos, fazendo minha mesa puxar meu prato para o seu buraco. Imediatamente, aparece outro com uma carne desconhecida. – Carne de jubarte, você não deve estar familiarizado. É a mais nobre entre as de baleia.

Nobre é o maior título que supostamente conseguiram dar a ela, porque o sabor é terrível.

_Provavelmente a coisa mais estranha que já comi. – Respondo. Gavva ri, enquanto levanta os pelos do seu nariz para comer, última moda na China; Usam um tipo de estimulante para os pelos do local crescerem, e quando atingem cerca de 15 centímetros, o enrolam em uma trancinha ridícula, presa na parte inferior por um anel. Para completar, ainda a tingem com a cor mais berrante possível. No caso do presidente, ele optou por um rosa metálico. Que vontade de vomitar. Puxo assunto para tentar esquecer sua trança melequenta. – E o senhor, qual a coisa mais estranha que já comeu?

_Uma puta americana. – Diz, acompanhado de grossas gargalhadas, e me lança uma piscadela.

Velho tarado, penso. Claro que eu não falaria aquilo. Esse é o homem que paga o meu salário, e games para Discover não caem do céu. Sigo seu jogo.

_Certamente as damas daqui não o satisfazem. O povo desse país é muito enfadonho. – Direciono meus olhos a sua trança bizarra.

_Não tenho tempo para essas brincadeiras das crianças da sua idade. Não me julgue, para você apenas um Ero-Robot basta. – E me mostra sua língua babada com pedaços de carne de baleia. Minha única reação é minha típica cara de vômito.

_E tem tempo de sobra para vir aqui me importunar. – Revido, limpo minha boca e me levanto. Ele não permite, e me puxa de volta com sua mão pesada.

_Ouça, moleque. Sei que todos nessa droga de lugar têm nojo até da minha sombra, mas insistem em puxar meu saco, pois sabem que posso usar minha influência para deportá-los a qualquer momento. Você é o único burro o suficiente para ficar ouvindo minhas ladainhas sentado.

_Diria que eu sou esperto o suficiente para isso. Gosto do meu emprego. – Me acomodo na cadeira, vendo que o horário de almoço acabara, e as pessoas esvaziavam o refeitório. O diretor Gavva era o único que pode me dispensar do meu horário, e fico agradecido por não ter que limpar os dejetos da Bertho. Não que bater um papo com o velho seja melhor.

_Certamente gosta. – Seus olhos reviram todo o local, vendo que está vazio. – Não tenho ninguém para confiar. Não aqui neste planeta. Todos que eu podia contar, já estão mortos há muitas décadas. Permita-me corrigir o que eu disse anteriormente. Você é o único idiota o suficiente para ficar ouvindo minhas ladainhas sentado, e não sair contando para ninguém.

Ignoro sua reformulação, e só consigo me concentrar no lapso que ele deixou em sua frase. Não aqui neste planeta.

_Você diz... A lua? – O vejo franzir o cenho. Seja o que estivesse por vir, era algo sério.

_Isso mesmo. – Consente. – Uma velha amiga da Colônia Lunar, Dora, estará se dirigindo à Terra hoje, trazendo duas descobertas inéditas do setor A.

_Mas... Não existe setor A na ala científica da Colônia. Todos os setores são enumerados, de 1 a 9.

Gavva solta um sorriso, indicando uma virada de jogo.

_É aí que as coisas ficam interessantes. A vem de Artômio. E que nós dois saibamos, somente nós e os americanos temos frentes de pesquisa sobre o material. Mas parece que, dessa vez, nós estamos na frente. – Fala vagamente, enquanto cruza seus dedos, como se estivesse elaborando algo.

Havia algo errado. Como Gavva não estava percebendo ainda?

_Nós apenas compramos dos americanos o artômio extraído lá! Não temos nem ao menos o direito de enviar cidadãos para a Colônia. – Bato minhas fracas mãos na mesa, querendo impor algo. Mesmo que eu ainda não saiba o quê.

_Seja sincero. Você não tem o menor interesse quanto as consequências de agora. Só deseja saber como. – Ele me pegou, e meu olhar baixo apenas o deixa certo disso. – Dinheiro, é claro. E um pouco de influência. Dois ingredientes essências para adquirir tudo o que você necessita, até mesmo o mundo, jovem prodígio.

_Do jeito que fala, parece que quer uma guerra. Nossa conexão não precisa de mais uma.

Não vejo nada de errado em minha fala, mas ela só parece ter aumentado ainda mais seu sorriso.

_Diria o contrário, moleque. Quem não precisa de outra guerra são eles. Quando nos for conveniente, podemos explodir todo o planeta. Todinho. Até aqueles malditos da Colônia Lunar. – Não deixo de pensar na minha família deixada para trás lá nos Estados Unidos, e eles sendo explodidos por causa da arrogância desses chineses. Decido não me pronunciar quanto a isso. – Mas enfim, precisamos que alguém produza para nós. Por isso, só por isso, ainda não monopolizamos o mundo. – Conclui.

_Já estou farto de ouvir esse papo todos os dias de gente como você! – Berro, com a minha voz que todos dizem ser de galinha, e imagino o quanto ridículo deve ter saído. – Me diga de uma vez por que quis conversar comigo.

_Parece que o fato de estar virando vovô está deixando seus pensamentos distantes, Sammwel. Esqueceu que eu ainda não lhe disse sobre as duas descobertas? – Ele arqueia as sobrancelhas, insinuando algo.

_Entendo como se sente em relação ao puxa-saquismo, e eu também o dispenso. – Não queria envolver Bertho nos papos sem direção dele. – Vá direto ao ponto.

_Regeneração celular total em massa. Instantânea.

Aquelas palavras bastavam para me deixar perplexo por cerca de cinco minutos. Como um homem da ciência, Gavva me entendeu e me deixou organizar meus pensamentos quanto a surpresa. Apesar de seu temperamento imprevisível, tenho certeza que teve a mesma reação.

Era algo simplesmente inacreditável. Inacessível. Futurista demais, até mesmo em nossa era. O mais longe que tínhamos chegado era uma regeneração parcial, e não era sempre eficaz. Só era possível usá-la em casos de câncer ou novas DSTs, mas apenas para adiar a morte das pessoas. Era um tratamento ultrapassado há muito tempo, pois já existia uma cura para o câncer.

_Dig-diga... A outra. – Gaguejei, ainda com os olhos saindo da órbita.

_Pense agora em uma evolução da ciência do poder da mente, esquecida há décadas atrás. Telecinética. Telepatia. É algo tão novo que nem tiveram tempo para elaborar um nome. – Seu olhar se tornou instigante, profundo. Ele brilhava – Não se trata de uma teoria ou um tratamento. Aqui, falamos de evolução. Poder mover a matéria, destruí-la, criá-la, com a força de nossos pensamentos. Nos comunicarmos a distâncias com a força de nossos pensamentos. Sentir e materializar nossa presença em todo o qualquer. Com o que isso se parece? Com esse falso Deus que os americanos cultuam! É essa a apoteose que os homens antigos nos instigaram tanto a fazer, não vê? Construirmos o nosso próprio Deus dentro de nós, e assim evoluirmos! Isso não é mais um daqueles filmes ou aquelas páginas UC que vê em seu Discover. Isso é real. É a concretização de uma nova espécie.

Havia, literalmente, milhares de coisas que desejaria despejar encima de Gavva naquele momento. Mas só consegui soltar:

_É por isso que tanto viveu? Para pisar, rastejar seu corpo velho e nojento em cima de todo o planeta? – Senti algo dentro de mim crescer. Eu podia. Eu podia enfrentá-lo. – Vim de um lugar onde houve uma época em que mães asfixiavam seus filhos para não vê-los morrendo de fome. Onde as pessoas devoravam umas as outras, sem escrúpulos, um mundo sem um Deus, sei um rei ou imperador. Onde cada um só tinha espaço para pensar em seu próprio coração. Onde não havia mãe, pai, irmãos ou filhos, sequer amor. Como pode conseguir pensar em outros, quando não há como saber se conseguirá manter sua própria vida no dia seguinte? Tudo por causa de vocês... – Dei proveito de toda velocidade que meu corpo leve me permitia, pegando a faca, e em um rápido giro, a encostando no peito de Gavva. – Por causa de guerras que vocês organizaram! Corpos que vi explodirem em milhões de pedaços! Você ainda tem coragem de falar de evolução própria? Ainda tem coragem de ignorar todos que estão ao seu redor? Gente que alimenta esse tipo de pensamento está podre na mais profunda ignorância. – Respiro fundo, e retiro a faca de perto de seu peito, vendo que passei dos limites. Até que percebo que ele está rindo.

_Vocês, jovens, são muito imprevisíveis. Me surpreendem a cada dia. – Dessa vez, ele pegou uma faca, e com sua pesada mão de velho, a recostou sobre seu peito. – Repito. Não me julgue, garoto. Tenho 160 anos, já vi mais do que qualquer outro homem que conhece já sonhou em descobrir. Vi esse buraco onde você nasceu, chamado Estados Unidos, explodir e invadir centenas de países a décadas a fio, antes de afundar a um breu.Vi gigantes acordarem, antigos fantasmas assombrarem, grandes nações emergirem e submergirem. Vivi traições, quantas traições! – Imitando meu movimento anterior, lentamente encostou sua faca de cozinha em meu peito. Sua expressão era intensa, vivida, assombrosa e assombrada. – A palavra que tanto procura é justiça. Sinto desapontá-lo, isso não existe! Meras palavras bonitas para encher o coração das crianças miseráveis com esperança. Porque o homem ainda venera as religiões? Conforto. Se eu disser que esse pedaço de carne de baleia é o meu deus, é impossível provar o contrário! Essa única esperança de que existe algo lá em cima que tem piedade por nós, é o que move a mente do verdadeiro ignorante. Não existe a verdadeira piedade, apenas o sofrimento. Pense, crie, transforme, destrua e construa a si mesmo. Não pense igual a todos. Seja único, dono da sua própria mente. Seja um homem da ciência. – E, com uma pequena raspada, fez um minúsculo corte em meu peito, derramando uma pequena gota de sangue. – Prove pelo que você está vivo. Para evoluir.

E se afastou de mim, com seus olhos contraídos, que quase demonstravam um sorriso por si mesmos.

_Você me disse para ser único. Então, se eu discordo com absolutamente tudo o que você disse agora, isso me torna alguém único. – Pela sua expressão repentina com a minha fala, certamente o surpreendi de novo. Porque é um pouco difícil encontrar expressão em um rosto velho.

_É claro que sim. – Riu. – Enfim, Dora trará uma carga de várias toneladas com as pílulas de regeneração ainda hoje. Já a informação sobre os poderes psíquicos, ela enviará em duas mensagens decodificadas, diretamente para mim. Parte dela ela já enviou para o meu Discover. Serei responsável por todo o desenvolvimento da pesquisa, sozinho.

Arregalei os olhos. Então ele já tinha recebido parte dos poderes?

_Então... Você realmente conseguiu ler minha mente naquela hora?

_Isso só seria possível com toda a pesquisa em mãos. Mas eu consegui perceber que havia um pensamento direcionado até mim, e reconheci sua presença. De resto, consigo sentir presenças em lugares vazios, e pressentir algo ruim. Pelo menos foi o que Dora garantiu-me. Tenho sentido uma forte dor de cabeça que não se compara a nada que vivi, mas não consigo relacioná-la a nada. – diz.

_Senhor Gavva... Porque está me contando tudo isso? - pergunto. – São coisas das quais eu não deveria nem sonhar em saber. Isso é algo em nível de segredo de estado.

_Segredo de estado? Não chega nem aos pés. Isso, em mãos erradas, pode desintegrar toda a nossa espécie. Levar-nos a uma Terceira Guerra Mundial, que claramente seria uma batalha de um lado só. – Fala, cerrando os dentes. – Mas porque eu estou entregando toda essa informação confidencial para você? Boa pergunta. Você mesmo acabou de ver todos os segredos que sou obrigado a esconder. Sou a história viva da ciência moderna, e praticamente comando tudo no planeta em relação a nossa era tecnológica. 80% das novas descobertas saem do nosso Instituto Mestre. Mas essa história viva está com seus dias contados. Você tem razão, não passo de um ignorante com velhos costumes da minha antiga era. Alguém genial e revolucionário precisa me ultrapassar. Você tem algo que falta em mim, mais importante do que tudo...

Percebo suas palavras deixadas no ar, vendo ele não conseguir completar sua frase. A termino para ele.

_Senso de humanidade. – digo, exalando uma firmeza que não conhecia em mim, até então.

_Talvez seja realmente isso, Sam – Suspira. Me encara por longos segundos com uma expressão vaga, como se estivesse imaginando coisas. – Você lembra de como eu era antigamente...

_Não me rebaixe tanto, velho. – Interrompo – Já passou da hora de eu retornar ao meu adorável trabalho. Boa tarde. – Viro as costas de uma vez, sem virar para trás. Não queria que Gavva visse a minha expressão. Ser o seu sucessor? Ele só podia estar brincando, não podia?

Tudo bem, eu mentira. Estava morto de vontade para conversar com Bertho sobre seus futuros filhotes; eu sabia que ela entendia a linguagem humana. Mas ainda precisava organizar minha mente quanto a tudo que estava acontecendo hoje. A gravidez de Bertho, a minha provável futura promoção, os poderes psíquicos, a regeneração massiva. Haviam acontecido coisas boas demais nesse dia, e tinha ficado por si só. Até eu me lembrar do céu vermelho, e do alvoroço causado entre os astrofísicos e os donos de UCs. Se tinha algo de errado faltando acontecer, era aquilo.

DROGA!

Um verdadeiro cenário de apocalipse estava se desenvolvendo ao meu redor e eu mal percebera.

O vidro dos corredores irradiava o vermelho, que vinha tão forte que era impossível ignorá-lo. Por maior que fosse minha vontade, o medo venceu, e não ousei encarar o céu. Lembrei de como o refeitório estava estranhamente vazio depois de meu horário de almoço acabar, e durante minha conversa com o velho. Já era para outros funcionários estarem chegando para o seu turno, mas ninguém aparecera. Os corredores também estavam vazios, algo impossível em qualquer hora do dia no Instituto.

Sou surpreendido com um grito histérico de uma mulher, vindo de dezenas de metros abaixo, no solo. O grito é repentinamente sufocado por outras dezenas. Reúno toda a minha coragem e olho para baixo, e me deparo com milhares de pessoas correndo à sua própria sorte. Visualizo um corpo gordo no chão, sendo pisoteado pela multidão, e percebo que o grito era dela.

O motivo de tudo aquilo era claro: o céu. Por mais que todas as minhas forças me forçam a não fazê-lo, eu olho para cima.

Não havia nada além da morte.

Incontáveis rochas incandescentes arranhavam o céu, caindo em uma linda visão. Uma mortífera visão. Então era aquela a resposta dos Estados Unidos quanto a nossa violação com as pesquisas em seu território. Imaginava que a arrogância de Gavva levaria a más consequências, mas não a destruição de nosso planeta.

_Errado. – A voz rouca de Gavva irrompe da escuridão, me assustando. – Isso não é culpa minha. Faria todo o sentido aquela nação escrota explodir esse mundo e reinar em sua Colônia lunar, mas isso não faz a cara deles. Isso me cheira a algum acidente ou algo do tipo.

_Mas...

_Não, não venha me perguntar como, garoto. – Ele me interrompe. – Mas seria um desperdício deixar esse planeta sem uma vida inteligente para governá-lo após nós irmos para o beleléu. Vá, Sammwel Dolkmomn, você sabe o que deve ser feito. Deixe seu legado.

Entendo sua mensagem. Saí correndo sem deixar uma resposta ou despedida, ambas não eram necessárias.

Bertho!

Abro a porta com uma força extraordinária, dando um barulho de explosão. Devia ser a adrenalina.

Pela posição dos meteoros, não demorariam mais que 15 minutos para chegar à superfície. Mando um comando pelo meu Discover para o tanque gigante de Bertho entrar em modo de transporte, e saio pelos corredores empurrando o tanque em suas rodinhas, pingando de suor e molhado de medo.

Minha sorte era a antiga Hong Kong ser um distrito costeiro.

Chego com todas as minhas forças até a praia, com cerca de dois minutos restando. Todo o Instituto havia sido evacuado, pelo que percebera. Como se pudessem escapar de uma morte tão evidente.

Empurro o tanque para a água, e dou a ordem para abrir-se. Bertho, que já havia entendido tudo, sai. Me aproximo dela, e Bertho me envolve em seus tentáculos com uma delicadeza evidente. Para qualquer um aquilo seria o cúmulo do bizarro; Para nós, o ato mais normal e sentimental do mundo. Perdi há muito tempo a conta de quantas vezes já entrara naquele tanque tóxico, e a abraçara.

Lembro de seu primeiro tanque de 2000 litros, financiado por mim com demasiado esforço. De quando a ensinei o alfabeto, e ela o representava com seus tentáculos. Ela também se lembrava, pois parece estar querendo se comunicar comigo.

I W I L L A L W A Y S R E M E M B E R Y O U, representou, em inglês, nos seus tentáculos. Ela se adaptara muito mais facilmente àquela língua.

_Vocês gostarão da sua nova casa. – digo, segurando ao máximo minhas lágrimas. Mesmo sendo uma lula, ela entendia meu comportamento, e não se sentiria bem em me ver chorando.

Bertho move sua cabeça para o lado, em sinal de que não havia entendido algo.

_Com vocês, quero dizer você e seus filhotes. – Falo, rindo. – É vendo essa sua inocência, que percebo que já passou da hora do nosso planeta ser reescrito. Nós, humanos, já o destruímos o suficiente. Junto com a destruição, existe a criação. Um ciclo infinito. Você criará seus filhotes, e eles recriarão o planeta. Esse é o seu destino. – Dou um beijo em sua cabeça gosmenta. – Agora vá! E não olhe para trás!

Ela emerge no oceano, e solto um suspiro. Minha última lembrança é dois de seus tentáculos, quase sumindo no horizonte, se erguendo da água formando um desenho de um coração.

Olho para o céu, encarando a morte.


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Notas finais do capítulo

Para quem não se lembra, UC é um tipo de página independente virtual, parecido com um blog, onde as pessoas podem acessá-lo pelo Discover.

Talvez eu deixe o Sam e o Shast vivos, ainda não decidi. Isso não quer dizer que eles não vão ser importantes no futuro.

Esse cap e o um servirão só mesmo como um "prepara-terreno", como eu tinha falado, pra verdadeira história começar.

O tamanho dos caps eu pretendo deixar +/- assim mesmo, o outro saiu pequeno porque realmente não tinha muita coisa pra colocar.

Leitores fantasmas? Deem reviews se quiserem que eu continue! Elas me motivam, vcs nao sabem o quanto :3