Então, mais uma vez me encontro aqui, vendo a chuva cair em torrentes, observando os pingos escorrerem pela janela. Anne me ama. Minha pequena An. Ainda não sei direito o que sinto, é tudo muito confuso. Tudo é relativo, como dizem.

Com certeza, se eu morresse, tudo seria incrivelmente mais fácil. Eu não teria de lidar com nada disso, apenas esquecer todo e qualquer problema e cair na escuridão eterna, sono profundo, céu, inferno, sei lá, o lugar que for, com a única certeza de que a terra seria meu cobertor enquanto meu corpo existisse.

-Você está pensando em algo deprimente, não é? –Anne diz, me surpreendendo e me tirando dos meus pensamentos.

-Como sabe? –Pergunto surpreso, fazendo-a rir.

-Conheço você, John. Além do mais, você está me abraçando com tanta força que quase machuca.

-Ah, desculpe. –De repente me sinto estúpido.

-Tudo bem. Está bom assim.

An insistira em passar a noite comigo. Ela viajaria pela manhã e ficaríamos duas semanas sem nos ver. Estamos deitados na minha cama e fito o teto, tentando decifrar o que foi aquilo que senti quando ela me beijou no parque.

Mas claro que não consigo pensar direito com ela estando tão próxima de mim. O contato físico, o calor e o cheiro dela tornavam muito difícil pensar.

-Certo. –Minha pequena diz, se sentando de súbito, com um sorriso afiado no rosto. –Agora vamos brincar de uma coisa.

“Ah, meu Deus, o que ela vai inventar?” penso, quase com medo. As ideias dela costumavam dar errado com muita frequência.

-Ei, não fique com essa cara, é fácil. Perguntas e respostas. Vamos lá: qual minha data de nascimento?

“Já vi que serei crucificado” penso, agora com certo desespero “Não sei nenhum desses detalhes que tenho certeza que ela irá perguntar.”

-25 de...outubro de...hum, 1996? –Digo, receoso.

-Muito bem! Cor?

-Preto.

-Comida?

-Lasanha.

-Quantos irmãos eu tenho?

-Uma irmã e um irmão. –Que surpresa, eu estava acertando.

-Até agora foi fácil, vamos complicar as coisas: lugar preferido?

-Err, vamos parar, certo? Acho que já está bom.

Anne me encarou com seus olhos castanho-esverdeados. Ela definitivamente queria saber quais seriam minhas respostas ás suas perguntas. O que aconteceu foi simples: a partir desse ponto passei a errar tudo, e não de propósito. O monstro estava despertando outra vez, irritado e reclamão. “Porque isso só acontece comigo?!” reviro os olhos.

-Puxa, John, você não sabe nada sobre mim. Não sabe do que gosto de fazer, onde ir, o que dizer, que tipo de pessoa me interessa, não sabe...

Me inclino para fazê-la calar a boca com um beijo. Então, pela primeira vez, ela me surpreende cedendo. An fica quieta, suas mãos pequenas roçando de leve meu rosto, deixando que eu faça o que quiser, que eu tome a decisão. É uma sensação nova e diferente estar no comando, é bom. Intrigado, continuo, até ouvi-la fazer um som suave vindo do fundo da garganta.

-Porque parou? Continue. –Ela diz, com a testa levemente franzida de confusão, corada e sorrindo.

-Você está ofegante. –Reparo, olhando para ela de cima. –Porque não tenta respirar?

-Talvez, se eu fizer isso, o momento se quebre, então vou acordar e verei que foi apenas um sonho estúpido.

-Não faz sentido para mim. Você não vai aguentar muito tempo sem respirar.

-É verdade...Devo praticar. –Ela me lança um olhar brincalhão e malicioso, envolvendo meu pescoço, me puxando para si, para sua boca. –Me ajude a fazer isso.

-Desculpe, mas você tem de descansar, srta. Anne. Vai acordar bem cedo amanhã.

-Não me importo se ficar cansada por causa de você...

-Vá dormir, sua pequena maliciosa! Agora! –Ralho, corado.

Ela corre para seu quarto, rindo.