21 Contos Sobre O Fim Do Mundo escrita por Lara
Notas iniciais do capítulo
Tentei ser poeta, mas será? Será que a poesia foi poética?
A última vez que o vi, Richard.
Lembranças tecidas com seda, uma realidade de flanela.
Cavernas guturais de medo, vácuos preenchidos de melancolia, e os dois, colados pela poesia.
Quem seriam eles naquele momento? Alguma metamorfose do ninguém, alguma implosão estelar. Seriam uma estrela fria.
Jubilados, repousavam no sofá, com os pés juntos e com uma xícara de chá nas mãos.
Os dois tinham várias décadas como confidentes, como amigos, homem e mulher. E tudo parecia fadado a terminar num grotesco turbilhão de elétrons positivos.
–Mais chá?- Perguntou o velho-moço.
–Oh, não. Obrigada.
O senhor serviu para si, tremendo. Sentou-se mais uma vez no sofá cor-de-canela, e sentiu uma dor leve nos joelhos, que teimavam em dobrar.
–Você ainda lembra por que se apaixonou por mim, Leila?
–Claro que sim.- Sorriu, com os dentes intocados pelo tempo, tão brancos como a neve.- Foi naquele show, não foi? Esbarramos com pressa, e você deixou cair um papel. Nele tinha escrito uns versos tão lindos... Lembro-me deles também, Ricardo. Foi graças a eles que pude te ver outra vez, naquele boteco. Mas já estava louca por ti, aqueles versos, Ricardo, oh, aqueles versos...
–Achei que havíamos esquecido o que era o amor... Faz tanto tempo. Já te amava antes mesmo de conhecer-te.
–Isso não faz sentido, Ricardito. Estás ficando caduco pela idade?- Leila riu, e segurou a mão dele com ternura.- Melancolia faz mal. Pensa nas coisas boas... Em sorvete!
Ele riu também, não sabendo como controlar-se diante de tremenda simpatia, e olhou-a. Foi inevitável perceber que ela também não era a mesma adolescente.
Os cabelos branco-arroxeados caíam até a nuca, os olhos estavam mais apagados. Já não eram cor-de-azeite, estavam leitosos.
–Você continua linda.
–Vamos, Ricardito, mentir faz mal para saúde.
Com certeza o velho-moço teria rebatido, parecendo criança novamente. Mas não pôde, recebeu com susto o barulho que vinha da rua.
–O fim, garota-Leila.
–E desde quando nós temos medo do fim, Ricardo?
–Desde nunca.
Os dois sorriram, sorriram por sorrir, pois nada mais podia controlar o receio que ambos sentiam.
–Você lembra mesmo dos meus versos, Leila?
–Lembro... Ricardito, aqueles versos te traduziam tão lindamente. Começava assim. Contigo fingindo ser aquela banda antiga: Confundimos a liberdade com solidão,– Ela deixou que seus olhos voassem para o longe, e que seus ouvidos tornassem-se imunes a qualquer ruído, entrando no limbo no qual guardava as lembranças boas.
Destruímos a cidade do sol com essa solidão libertina
Mexemos com os deuses ao brincar com a escuridão
Esquecemos a vida e sua magia traduzindo o nada em palavras
Gritamos contra a morte, gritamos contra nós
Demos nós de marinheiro no sol e na lua
E deixamos o mundo tirar-nos alegria
Matamos a liberdade com a vida
Interrompemos o ciclo asteca com estupidez
Juntamos as peças e montamos a cabeça errada
Veneramos a nicotina e o álcool e Marx
Fragmentamos o mundo ao anunciar seu fim
Eternizamos a tolice ao permitir o medo
Fertilizamos o cinismo para ter o que ser
E estrangulamos nossos corações para esquecermos a razão
E morremos, amanhã.
–Você era um poeta decadente, Ricardito. Era a coisa mais linda do mundo, meu amor.
Olhou para o lado, e encontrou o velho-moço dormindo no sofá. Leila deixou a cabeça encostar-se ao ombro daquele rapaz que a mirava com os olhos fechados, e esperou o sono vir. Sabendo que o frio não vinha só da janela aberta.
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Críticas, opiniões. Por favor.