Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 2
Capítulo I: Contos de Fadas


Notas iniciais do capítulo

Estive a readaptar os capítulos para se tornarem mais leves, mas manterei os mesmo nomes capitulares (apenas dividirei em partes). A história continua a mesma, apenas mais dividida. Obrigado pessoas do Nyah, boa leitura ;)



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O amanhecer valeriano. Majestoso e onipotente, o sol surgia no firmamento, dando vida à exuberante e singular vegetação escarlate da terra feérica. Os campos de rosas eternizados nas campinas desabrochavam com ajuda mágica, pois a primavera ainda não havia concedido sua benção. Pequenas criaturas abandonavam suas tocas em busca de sementes dentre as terras rubras e férteis do reino das fadas. Aproveitavam o clima agradável e severamente controlado pela magia climática da nação.

Na Península de Lumot, terras mais austrais do reino, encontram-se os magníficos castelos da família Elvellon, governantes e líderes do Conselho dos Nobres. Organização onde as dez famílias da realeza, por incontáveis gerações, decidiram sabiamente os rumos que seus domínios deveriam tomar.

O esmero e o primor depositado em cada pedra cristalina violeta transformavam as edificações milenares em peças tão esplendidas e atemporais que, ainda hoje, seus traços eram copiados por arquitetos de todo o Mundo Mágico, desejosos em delinear a perfeição. As torres colossais, robustas como a poderosa magia da terra que as erguera, captavam o simbolismo carmesim de forma impecável em seus cubelos e barbacãs. Os alambores, tingidos de cor nívea como a dos lírios campestres da Terrelva do Noroeste, contrastavam tão bem quanto o casamento do dia e da noite, pais do espetacular crepúsculo poente.

Em seu lar, Naya acordava. Como de costume, sentava-se na cama sem saber por que seu corpo insistia em despertar antes de sua mente. Após alguns momentos cambaleando e tocando o chão com os dedos dos pés, desprendia um longo e sonoro bocejo. Seus olhos lacrimejavam como se houvesse alguma emoção num ato tão simplório e automático repleto da mais pura preguiça.

Mais um dia de eternidades começava. O que significava apenas mais um na vida de uma fada? “Nada.” Uma das seis palavras perfeitas de Naya. Não havia nada mais completo e absoluto. Nada acontecia por acaso, embora nem sempre fosse óbvio. Ela gosta de acreditar nisso. Coisas como destino. Um motivo a mais para dar sentido a sua existência.

Ao levantar, com a mesma cara de sono de quando ia dormir, a primeira coisa que sempre fazia ao colocar-se para trabalhar era tomar um longo banho. Água quente sintonizava seu corpo e espírito, trabalho necessário, pois a garota sabia o que estava por vir. Afinal, a semana estava começando novamente e, com ela, as numerosas “aulas reais”.

Não existia nada melhor para se isolar do mundo que um chuveiro e água quente. Felicidade, tristeza ou angústia: ninguém jamais veria o que estava escondido sob aquele manto. Talvez esse fosse o problema.

Até pensar cansava depois de antecipar a chatice de oito horas de aula que teria no decorrer do dia. Piedade, por favor: nem um condenado merece passar por isso toda a semana.

Depois de longos momentos que mais pareciam meros instantes, como acontecia frequentemente, a fada acabou sonhando acordada enquanto a água escorria sobre sua longa cabeleira negra, fazendo-a perder a noção do tempo. Era uma sensação boa: desligar-se do mundo e prestar atenção apenas em assuntos sem importância, para variar sua rotina repleta de responsabilidades.

Se não saísse logo, Naya chegaria atrasada à primeira aula do dia. Não que realmente fosse importante, mas o professor já havia reclamado várias vezes. Estaria em maus lençóis se algum dos instrutores protestasse para seus pais novamente sobre sua suposta “falta de compromisso com horários”.

Após arrumar-se, trajando uma das mais simples, porém ainda extravagantes, rubras vestes reais, restava apenas conjurar alguns biscoitos para comer no caminho. Não havia mais tempo para uma refeição digna. Descendo os corredores, escorregando pelos corrimãos, desejando, suplicando para que um meteoro caísse sobre o castelo e ela não precisasse chegar à sala logo à frente. Infelizmente, nada aconteceu. Os cursos particulares começariam.

História, Geopolítica, Biologia e Pintura. Nenhuma dessas aulas a interessava, e claro, eram desnecessariamente extensas como assim o acaso fazia questão de garantir. Mas ela precisava assisti-las para chegar às suas favoritas: Aulas de Magia.

Essas sim faziam o coração de Naya bater mais rápido. Feitiçaria, a grande paixão de sua vida desde que tomara conhecimento da arte da manipulação natural. Ser uma maga garantia que o poder do intelecto adquirido durante a vida seria convertido em algo: cura, proteção, justiça. Era interessante desde o conhecimento teórico dos feitiços até e, principalmente, as aulas práticas de magia arcana com o professor Thargon.

De todos os mentores, o mais extraordinário: um elfo simpático, alto até para sua raça, corpo forte como o de um guerreiro. Além de mestre, um grande amigo da família. Ele viajara do norte dos domínios Elvellon para servir a família real em Lumot, no sul, vivendo como parte dela desde então. Um homem loiro de olhar acinzentado, pálido como quase todos os elfos de Magicália, dedicado completamente ao magistério. Não seria nenhum espanto que seu preço fosse altíssimo, dado seu título de elite, mas o mestre dispensava as grandes quantias oferecidas. Contentava-se apenas valores honorários e despesas básicas. Sua paixão sempre fora ensinar.

Garantir que seu próprio e vasto conhecimento fosse transmitido para as pessoas que poderiam mudar o mundo. “Esse é o meu desígnio. Polir os magos dessa geração e fazê-los brilhar.” Thargon formara quase todo o conhecimento que Naya possuía sobre a misteriosa magia arcana, lecionando desde simples feitiços de conjuração de comida, até os mais complexos como abertura de portais e alteração do clima.

Uma das coisas que mais chamava a atenção da princesa era o tom sereno de Thargon quando falava sobre a natureza da magia: impossível não prestar atenção.

‒ Naya, pense um pouco e me responda. O que vê em minha mão? – O professor perguntava suavemente, enquanto um orbe luminoso se expandia em sua palma. A luz emanada confortava. Pura.

Prontamente, Naya respondeu aquilo que ele esperava de sua mais promissora aluna em Valerian: Mana concentrada.

‒ Isso mesmo. A base de todas as magias, o sangue da alma. É graças à habilidade de manipulá-la que podemos influenciar a natureza tão facilmente. Criar e destruir se torna algo simples para nós, magos. Mas diga-me, numa única palavra, como a definiria?

A fada pensou por alguns instantes. A capacidade de um mago de mudar o mundo ao seu redor era definida por dois fatores principais: prática e conhecimento. Quanto mais experiente, mais mana disponível haveria para a conjuração de magias. Essas necessitavam sabedoria profunda sobre os diversos aspectos de cada feitiço. Ela pensou, até que lhe veio o termo que provavelmente qualquer mago de sua idade diria:

‒ Poder? – Disse, arqueando uma das sobrancelhas escondidas pelo véu.

O professor sorriu, como se já previsse essa resposta.

‒ Em parte, sim. Mas você deve olhar mais adiante. O arcano pode ser uma fonte de simples poder, inesgotável para alguns. Mas acho que a palavra correta para definir mana seria energia.

‒ Por quê? – Naya tinha conhecimento de que a mana também se conhecida banalmente como energia mágica. Usavam-na para gerar trabalho e progresso em Magicália e outros continentes, do mesmo modo que a eletricidade em Bellum. Mas também a usavam combater os inimigos que ameaçavam a integridade do Mundo Mágico. Ouvir o que Thargon sabia com certeza aumentaria seu conhecimento, por isso, a fada nunca se sentia inibida a perguntar.

‒ Simples. A Mana pode ser usada como um instrumento de poder e destruição, como vinha sendo nas guerras passadas. Milhões já morreram vítimas de feitiçaria. Mas, sua real finalidade não é essa, pois assim conduz seus adeptos a um estado de corrupção espiritual. Porém, quando utilizada como uma fonte de energia natural, tudo é possível. – Thargon discursava utilizando-se de magia luminosa, projetando no ar memórias de guerras passadas. De aflição, seguira para esperança, exibindo imagens de muitos que a magia curativa havia fortalecido.

‒ Eu entendo... – A jovem fada ainda ficava surpresa com a sabedoria de seu mestre, percebendo o pouco que sabia sobre o mundo. Com certeza haveria muito para aprender dentro e fora de Valerian. Do mesmo modo que a energia fluía tão facilmente para que surgisse uma beleza improvável num local aparentemente sem magia alguma, um mago deveria ser um portador de poder para a criação, a manutenção, não para a destruição. A essência do arcano poderia estar em qualquer lugar, o que fazer com ela dependia de cada mago.

Alguns poderiam até não gostar, principalmente as pessoas de vida curta que odeiam qualquer coisa que tome mais de cinco minutos, mas aprender cada detalhe do universo da magia resumia-se no momento mais relaxante do dia da fada. Naya sequer considerava essa aula um dever.

Era o que gostava de fazer. Se não tivesse obrigações com a realeza, quem sabe tornasse a magia seu trabalho: entrar numa guilda e sair pelo mundo fazendo missões perigosas, conhecer os lugares mais remotos do mundo. “Isso sim que é vida”. Já havia até perdido a conta de quantas vezes sonhara com isso.

No entanto, o mundo real se mostrava bem diferente do onírico. Não existia espaço para sonhos: você não faz o que quer, mas apenas aquilo o que esperam de você. Principalmente quando se ocupa um cargo com tantas expectativas externas, como o de princesa direta na linha de sucessão. O destino concedia, mas da mesma forma, privava.

Enquanto praticava um feitiço de clonagem de objetos que havia lido pouco tempo atrás em um dos infinitos livros da biblioteca real, o professor a repreendia quando achava necessário e dava dicas para maximizar a eficiência e a perfeição da mágica de sua aprendiz. Corrigia recitações, posições e selos para as mãos e círculos mágicos. Rapidamente, os resultados surgiam.

Mesmo ciente da facilidade que as fadas e os silfos detinham para dominar o arcano em relação a qualquer outra raça, Thargon se surpreendia com o talento da aluna: sua habilidade de tornar a magia algo tão maleável e versátil o impressionavam. Para pessoas como ele, que se intitulava “fora de tempo”, já desligado da aprendizagem das constantes e inúmeras magias criadas por pessoas em todo o mundo, ver a criatividade das novas gerações era estupendo.

‒ Eu sei que você está se divertindo Naya, mas nosso tempo está acabando. É melhor encerrarmos por hoje. Seus pais já devem estar te esperando para o almoço. – Alegou, enquanto checava para o grande pêndulo do relógio que logo anunciaria o fim de sua aula.

Ah, não! Só mais alguns minutinhos Thargon. Por favor! ‒ Implorava Naya, apelando com as súplicas de sua voz.

‒ Naya... Da última vez que você ficou uma hora num feitiço de transmutação e a Melith quase arranca meu pescoço. Então, não. É melhor você ir. ‒ Lembrava o professor, rindo, mas ao mesmo tempo assustado com aquela velha assustadora.

Naya ficou desapontada. Não queria sair dali tão cedo. Porém, achou melhor cumprir o pedido, pois seus pais já haviam reclamado com o professor sobre a rigidez de seus horários. A última coisa que ela desejava era conseguir problemas para Thargon. Seria um pesadelo se demitissem ele: não duvidaria que seus mentores mais influentes o delatassem para seus pais, afinal, fazia-se costumeiro ouvir que criar laços afetivos com professores apenas mitigava a atenção de um aluno, que deveria ser voltada absolutamente para a aprendizagem. Naya só lamentava que com o passar dos anos, seu tempo com ele tornava-se cada vez mais efêmero, dando espaço às aulas que julgava logo de cara inúteis. Mas por algum motivo misterioso, seus conhecimentos pífios seriam valiosos num futuro que parecia jamais tornar-se realidade.

Seguindo para a Sala de Banquetes, subindo escadarias, cruzando corredores e guardas, a princesa chegou onde a enorme mesa de refeições ficava. Juntava-se aos seus pais, alguns parentes e hóspedes.

Como haviam pessoas desligadas de relações familiares, o tradicional Véu Régio continuaria sobre sua cabeça. O manto encantado ocultava a identificação de seu usuário, dando espaço apenas para o reconhecimento de expressões faciais, nada mais. “A identidade da princesa deve ser preservada até que a mesma assuma o trono”. As explicações limitavam-se a isso, justificadas por milênios de história que uma adolescente jamais entenderia. Como se muralhas e centenas de guardas não fossem o suficiente para evitar qualquer um que ameaçasse o trono. Naya tratava apenas de vesti-lo para evitar mais discussões.

A garota já havia perdido a conta de quantas vezes esse adereço atrapalhara sua vida, seja no campo da amizade ou em outros assuntos de sua vida pessoal. Sentia-se como se quando estivesse sob a “proteção” do véu sua identidade realmente desaparecesse. Tornava-se de uma simples peça que poderia ser substituída a qualquer momento, pois não era Naya Elvellon ali, mas apenas a herdeira do trono que muitas outras já foram. No entanto, não havia nada que pudesse fazer. As regras eram rígidas, as punições mais ainda.

Lustres cristalinos que transformavam o teto num céu estrelado, carpetes sobrepostos numa bela mistura de tons avermelhados e púrpuros decoravam a sala, junto a dezenas de estátuas e quadros que firmavam fragmentos de um passado distante na modernidade. Havia no máximo quinze pessoas na sala que suportaria até dez vezes mais. Dentre eles o mais ilustre, o rei Anthor Argalad, que visitava o país para reforçar laços políticos.

Naya o conhecia apenas de vista, mas estava ciente de sua fama como mago e governante de um dos mais poderosos reinos élficos magicalianos. O homem tinha lá sua beleza: madeixas castanhas onduladas e volumosas que, ainda mesmo que estivessem claramente aparadas, por vez caíam sobre as orelhas. O rosto de aspecto jovial para um rei élfico decorava-se de um nariz reto e rosto limpo, sem barba ou sinais do tempo. Porém, intrigante mesmo eram seus olhos.

A íris violeta suave como lavanda sinalizava a manifestação da herança sanguínea da família Argalad. Assim como o sangue Elvellon transmitia a afinidade com a magia arcana para a maioria de seus membros, uns pouquíssimos Argalads entre as gerações que herdavam esses olhos. Os agraciados conseguiam dominar com perfeição qualquer tipo de magia sem um mínimo esforço: representava o poder ilimitado.

Para um mago, ter o domínio sobre todos os elementos e tipos de magia existentes comparava-se a posse da lendária pedra filosofal para os alquimistas: a materialização do domínio sobre a transmutação de todos os materiais sem qualquer custo. Tudo bem, Naya admitiu para si mesma num ultimato culposo que estava lembrando algo das aulas de história e ciências. “Talvez não sejam completamente inúteis como eu pensava”.

Embora o elfo parecesse amigável, a princesa não estava muito disposta a iniciar uma conversação com ninguém. Com certeza tratavam-se de monarcas, nobres e burgueses tediosos. Sentando-se ao lado da mãe, Titânia Elvellon, ela esperou que servissem seu prato e comeu silenciosamente, até que o soberano visitante chamou sua atenção:

‒ Então, princesa Naya, certo? Seus pais me contaram que você será a próxima rainha de Valerian, assim que eles se aposentarem, claro. Isso sim é responsabilidade. Como se sente sendo a herdeira do trono? – O rei perguntava, encarando-a e apontando seu garfo preso a um pedaço de vitela em sua direção.

‒ Ah... Eu lembro quando assumi o meu trono. Aliás, tinha praticamente a sua idade... Foi uma droga nos primeiros anos, mas melhora depois de um tempo. Muitas obrigações, sem falar das convenções sociais, mas você se acostuma...

As pessoas na sala pararam de cortar a carne e beber o vinho em seu silêncio fúnebre para observar, aflitos, o rei de Arcádia. Pareciam desconfortáveis pela maneira como o monarca falava: etiqueta suficiente para lembrar os modos de um plebeu. Claramente ele percebia a atmosfera de luxo que havia quebrado, mas não se importava, e nem deveria. Com o poder que ostentava, raros seriam aqueles que Anthor se importaria em agradar.

‒ Você percebe que pode fazer o mundo um lugar melhor. Minha capital, Victória, é a prova disso. ‒ Anunciou orgulhoso. O centro arcadiano havia sido eleito o Apex Magicis da década. Ou seja, Victória representava o ápice de desenvolvimento do Mundo Mágico. ‒ Contanto que você se lembre que ser um rainha é mais usar vestidos bonitos e sentar num trono, você vai se sair bem!

Naya podia garantir a intencionalidade do modo inapropriado de falar e até o de mastigar do soberano, pois Arcádia se conhecia por suas tradições e civilidades tanto quanto Valerian. Era hilário para ela e desesperador para todos os outros ler no rosto de cada uma das pessoas as mesmas palavras: “alguém faça alguma coisa!”. Até mesmo os anfitriões, Oberon e Titânia, mantinham-se silenciados perante o elfo. Faltava-lhes apenas coragem para repreender o rei que estava fazendo Naya morder os lábios para não rir.

‒ Eu me lembrarei dessas sábias palavras, Anthor. Confio minha honra. ‒ Continuou, estendendo por mais alguns ótimos minutos a conversa com o Argalad.

Na sala de carpete magenta não haviam relógios, evitando todas as checadas desrespeitosas que Naya pensara em dar. Isso reduzia sua presença na sala apenas as funções quase automáticas que seu corpo aprendera a usar em situações como essa, tais como cumprimentos e saudações. Após ver Anthor conversar um pouco com alguns dos convidados, ele voltou sua atenção para a refeição, cedendo espaço para o silêncio, como se estivessem de luto. Ninguém estava, mas ao menos Naya tinha um motivo para manter esse semblante, pois só de pensar na aula que viria logo após o almoço, ela já se sentia deprimida.


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