[[Just the way it goes]]
ATO 24: O centésimo homem mau

Um brilho forte ofuscou meus olhos. Duas pequenas chamas disparavam em minha direção. Eu havia ouvido o barulho, ele soou forte como um trovão. Mas as balas viajaram lentas até mim, tive tempo de erguer a lâmina da foice e rebatê-las para longe.
Fiquei abismado com meus reflexos, mas não baixei a guarda. O fato de Jack estar com duas pistolas significava que ele podia me acertar a qualquer distância enquanto que eu tinha que me aproximar o suficiente para desferir meu golpe.
Corri e me escondi atrás de uma viga de concreto e de canos que suspendiam uma caixa d’água. Jack a acertou e seguidas vezes, abrindo buracos enormes e fazendo a água escorrer com força sobre mim.
Eu me afogava, senti o peso d’água em meus ombros, começava a ficar dolorido. Afastei-me apenas o suficiente para que a água parasse de cair sobre mim, quando Jack acertou uma bala que raspou no concreto e por pouco não me acertou na cabeça.
Ele atirava bem.
Bati com a lâmina no chão e ela afundou como se houvesse sido submetida a uma grande força.
Eu também era poderoso, eu era a Morte. Só agora eu pensava nisso.
- Quer me desafiar? – eu pensei, não iria me esconder de quem quer que fosse, nem mesmo de Jack quer era tão parecido comigo e por quem eu tinha até uma espécie de estima, de elo.
Ele ficou em silêncio e eu tentei calcular quantas balas ele teria, mas antes disso ouvi seus passos na água, circundando meu esconderijo, se preparando pra me atacar.
Aquele era o momento.
Vi sua sombra se projetando a minha direita e aumentar na medida em que se aproximava.
Segurei com firmeza o cabo da foice. E a girei com apontada para onde deveria estar a barriga de Jack, fechei os olhos por um instante e percebi que acertei o vazio.
Jack se movimentou rápido. Lancei-me para o lado na esperança de poder feri-lo dessa vez, baixei a foice, ele desviou e eu acertei o chão.
Gritei frustrado, agachando e arrancando a foice cravada no chão.
O pé de Jack acertou me queixo de cima para baixo. Senti meus dentes se afrouxando e minha boca se enchendo de sangue. Meu pescoço descreveu uma trajetória pra trás, vi meus cabelos irem lentos contra o movimento.
Cai longe, de costas no chão. A foice acabou escapando de minhas mãos.
Quando abri os olhos dei de cara com o cano da pistola apontado pra minha testa.
Jack me fitava sem nenhum contentamento, ao contrário, parecia até muito infeliz.
Eu cuspi sangue para poder dizer:
- Eu gostaria de ter me encontrado com você antes, aceitaria de muito bom grado essa bala que você tende a me dar nesse instante. Mas, mesmo que ela acerte meu cérebro sei que meu corpo vai continuar querendo lutar.
- O que você está falando é uma idiotice. – ele respondeu sério.
- E mesmo que você destroce meu corpo - eu continuei como se não houvesse sido interrompido – e que roube minha alma para dar ao demônio, eu me rebelarei no inferno e conseguirei escapar. Eu também tenho um objetivo, Jack, e não será você que me fará desistir.
- Mesmo que você morra? – ele perguntou levantando uma das sobrancelhas.
- Mesmo que eu morra. – confirmei.
- Você é o filho da puta mais corajoso que eu já conheci. – ele disse meio abismado.
Eu ri.
- Você também não é de todo mau...
Ele suspirou:
- Ah... Tudo isso... Não é justo. – e baixou a arma.
- Não, não é... – concordei.
- Não vai me pedir para não matá-lo?
- Também não vou pedi-lo para fazê-lo... – respondi me erguendo sobre os cotovelos. – Jack, quantos homens maus você já matou?
- Noventa e nove. – ele levantou a manga do paletó e da camisa e me mostrou noventa e nove pequenos cortes em seu braço que começavam no pulso e terminavam antes do cotovelo, a contagem das almas que já havia conseguido.
- Vai me matar e eu serei o centésimo homem mau de que você precisa?
- Não, sua alma não é má...
- Mas, também eu não sou o melhor dos homens.
- Mas é não um dos piores. Não estou entendendo aonde você quer chegar, Gerard?
Fiquei de pé a sua frente. Eu era mais alto.
- Jack, desista.
Ele arregalou os olhos e gritou:
- O que está dizendo? Achei que você me entendia! Está me pedindo para desistir da Ellen? NUNCA!
- Não da Ellen. – respondi calmo. – Desista de servir ao inferno.
Ele ficou em silêncio.
- Não deixe que seu coração seja tomado mais e mais pelas trevas, Jack. – eu pousei minhas mãos em seus ombros.
- Gerard... – ele disse baixinho. – Eu não vejo outra saída.
- Me responda Jack, você morreu e foi para o inferno, mas e a Ellen? Pra onde ela foi?
- Foi para o purgatório.
- Jack... Eu aprendi que as pessoas boas, aquelas pessoas que nos amaram sem pedir nada em troca, que choraram conosco as nossas dores, as pessoas que dedicaram a sua existência pensando no bem-estar dos outros vão direto para o céu. Ellen não era assim?
- Era... – ele chorou.
- Mentiram pra você, Jack. – e eu o abracei. – Ellen não está no purgatório, ela está no céu. Você não poderia alcançá-la...
Jack se acabou de chorar, suas pernas não agüentaram e cederam. Eu o segurei e deixei-me largar com ele no chão molhado.
- Por quê? Por quê? – ele se desesperava agarrando minha camisa e afundando a cabeça no meu ombro.
Afaguei os cabelos dele.
Eu sabia daquelas coisas. Sabia pra onde Ellen tinha ido, sabia que tudo não passava de uma mentira. Como? Era outra coisa que eu não saberia lhe dizer, leitor, mas atribuirá àquele pensamento que eu tive antes, de que eu era a Morte, e deveria poder ter o conhecimento dessas coisas.
- Gerard, Gerard... – Jack chamou meu nome, ele ainda chorava copiosamente – É agora? O que eu devo fazer?
Uma idéia me ocorreu:
- DOMINIQUE! – ergui a cabeça para o céu escuro e gritei.