Anne não conseguiu dormir.

Primeiramente, porque o ambiente quase hospitalar a sufocava com o cheiro de álcool e esterilização. Tudo parecia tão artificial e vazio que ela não conseguiu fechar os olhos por um instante sequer. E, não conseguira dormir, sobretudo, por causa da conversa com Nick.

Anne pensava, refletia e tornava a pensar, mas nada parecia suficientemente claro. Ainda era tudo muito recente, de modo que ela permitia-se fazer recapitulações de quando em quando. Sofrera um acidente que modificara suas moléculas. Ela tinha poder de manipular a energia. Nick Fury, o cabeça dos Vingadores, queria que ela os ajudasse.

Mas como ela poderia fazê-lo? Mal sabia usar seus poderes, muito menos controlá-los... Não sabia nem lutar. Como sobreviveria em um campo de batalha? Como ajudaria seus colegas e equipe? Como ajudaria a salvar o Universo? Anne era apenas... Ela. Não se julgava capaz de tamanha responsabilidade. Era muito peso jogado sobre suas costas... Simplesmente não era capaz de aceitar o convite que recebera, por mais que quisesse.

Isso não dependia somente de sua vontade. Havia vidas em jogo, vidas de múltiplos lugares. Não poderia aceitar nada, uma vez que não estava preparada. A possibilidade de ela falhar e tudo dar errado era horrível e inaceitável. Não faria nada se não tivesse plena certeza de suas capacidades.

Por fim, Anne conseguiu dormir por cerca de duas horas. Acordou sozinha, sem saber que horas eram, visto que lá naquela sala não havia janelas. De alguma forma, seu organismo a alertava que provavelmente já era de manhã.

Anne fitou o cano plástico que saia de sua veia no braço esquerdo. O soro, pendurado em um suporte metálico, já tinha acabado. Ela sentia-se perfeitamente bem e em condições de partir. Além disso, qualquer vestígio de mal estar parecia ter cessado completamente.

- Bom dia, Bela Adormecida... – Falou Tony, entrando ruidosamente na sala.

Anne assustou-se, mas retribuiu imediatamente:

- Bom dia, Homem de Lata.

Stark fez uma careta. Então, Banner entrou no recinto com a prancheta médica nas mãos. Parecia mesmo um médico, pois, sem dúvida, tinha capacidade para tal.

- Olá, Anne. Acho que você já está liberada... – Comentou Banner, sorrindo discretamente e fazendo anotações.

- Que bom... Não agüento mais. Preciso falar com meus irmãos... – Disse ela inquieta, enquanto Banner tirava dela os apetrechos médicos.

- Você não tem nenhuma irmã pra apresentar ao Steve? Ele precisa logo de uma namorada... – Comentou Tony, indiscreto.

- Não... Tenho dois irmãos, apenas. – Respondeu ela.

Tony sorriu, animado, e comentou algo sobre propulsores novos e uma armadura dourada que ele desenvolvera. Anne não entendia muito bem daquilo, de modo que assentia para Tony a intervalos regulares.

- Está liberada, Anne. Eu... Vejo você em breve? – Arriscou Banner, estendendo uma mão desocupada.

Anne levantou-se, grata por não ter vacilado e caído no chão. Quando percebeu que podia mover-se com firmeza, deu alguns passos e parou diante de Banner:

- Acho que sim... Pretendo voltar e treinar. Vai ser importante pra mim... – Ela o cumprimentou.

- Que ótimo. Agora vamos ter que conviver com o risco de ficar sem eletricidade a qualquer momento. – Comentou Tony, irônico.

Ainda assim, ele avançou e deu um abraço caloroso em Anne. Tony era como um tio que sempre fazia piadas ou algo do gênero.

- Obrigada, senhor Stark. Vou me lembrar disso enquanto estiver tomando um banho bem quentinho... – Ameaçou Anne, retribuindo o abraço.

- Nem brinque com isso, garota, ou uma armadura minha pode sair voando atrás de você acidentalmente... – Acrescentou Tony. – Olha só quem chegou... O do Tapa-Olho...

Nick Fury entrou no recinto, dessa vez sem Maria Hill.

- Menos, Stark. – Disse ele rispidamente, mas Stark não se alterou. – Gostaria de saber se pretende voltar, Anne. Se você deseja treinar...

- Sim. Resolvi ficar. Não vou ter outra chance de aprender mais sobre a coisa toda. – Comentou ela.

Um sorriso discreto surgiu nos lábios grossos de Fury.

- Bom, então, começamos amanhã às oito. Traga uma mala com roupas e o que julgar necessário... O treinamento deve durar três meses, aproximadamente. – Declarou Nick.

- Estarei aqui. – Anne falou.

- Que ótimo. Suas coisas estão com seus irmãos. Eles a aguardam na entrada da Base. – Finalizou Nick, atencioso.

Os dois trocaram um aperto de mãos e Anne foi se dirigindo à saída. Despediu-se de Tony e de Banner, mas ainda não havia visto os outros. Por via das dúvidas, pediu a Banner que transmitisse seus cumprimentos quando ele visse os outros Vingadores.

Foi com ligeira raiva que Anne percebeu que não conseguia se orientar naquele emaranhado de corredores. Caminhara por minutos em busca da tal saída.

- Droga! – Murmurou, quase chutando uma parede.

Esperou que algum agente passasse e a ajudasse, mas o local estava quase deserto. Anne bufava quando foi surpreendida por uma voz familiar:

- Você costuma se perder com freqüência?

Era Gambit. Estava encostado na parede casualmente, com os braços cruzados e uma expressão de falsa reprovação. Ainda estava com o chapéu, mas dessa vez Anne conseguiu ver seus olhos. Estavam negros.

- E você sempre costuma aparecer sem fazer barulho? – Retorquiu ela.

Gambit riu, como se estivesse se lembrando de uma piadinha particular.

- Vamos, senhorita, vou levá-la até a saída. Se vai ficar por aqui, acho bom decorar o caminho.

A primeira coisa que Anne fez foi pular em Andrew e Alexander.

O abraço triplo durou alguns segundos, de modo que todos tiveram de largar o que seguravam para receber Anne. Ela estava, sem dúvida, mais forte.

- Anne, vai com calma! Você não era tão forte assim... – Comentou Andrew, esfregando os braços.

- Senti tanto a falta de vocês... – Comentou ela, chorosa.

Gambit deu um aceno discreto de cabeça e, uma vez que todos retribuíram, voltou para a SHIELD.

- Foram só algumas horas... – Disse Alexander, acariciando os cabelos de Anne. – Vamos para casa. Precisamos conversar, não é mesmo?

A viagem nunca passara tão rapidamente.

Em questão de minutos chegaram ao seu apartamento e todos foram logo se sentando no sofá da sala de estar. Anne sentou-se no meio, com um irmão de cada lado. Aparentemente sem saber como começar a falar, Andrew quebrou o silêncio:

- Então... Aqueles caras da SHIELD ligaram pra gente... Eles disseram que você estava bem, mas que precisava se recuperar. Disseram que você está diferente. O que aconteceu, Anne?

Anne suspirou. Passara alguma parte da madrugada ensaiando um discurso para os irmãos. Ensaiou como poderia contar a eles o que lhe acontecera, mas agora, tudo lhe fugia de sua mente. Ela precisou organizar os pensamentos antes de contar.

- Bom... Sabe aquele choque que eu levei? Então... Ele originou minhas dores de cabeça. E, bem, originou mais uma coisa...

Anne contou tudo aos irmãos. Dessa vez, não omitiu nada e caprichou ao descrever os detalhes de cada coisa. Contara a eles das dores de cabeça, de sua última crise e também contou sobre o fato de ter desligado a energia da Torre Stark. Fato este que desencadeou tudo o resto. Contou que possuía poderes de manipulação energética e do convite que Nick Fury lhe fizera. A parte mais dolorosa foi contar a eles que pretendia passar um tempo na SHIELD para treinar e conhecer mais sobre esse novo poder.

Depois de quase uma hora contando, Andrew se manifestou, quase caindo do sofá, tamanha era sua surpresa:

- Caramba, Anne! Você tem super poderes! Nunca imaginei que isso fosse acontecer com você... E, olha só! Você vai estudar pra ser agente da SHIELD! Vai trabalhar do lado da Viúva...

Então Alexander o interrompeu com o olhar, dizendo:

- Anne. Primeiramente, nós te devemos desculpas. Não acreditamos quando você nos contou do choque. Isso foi muita ingratidão da nossa parte... Mas quero que saiba que nós amamos você e vamos te apoiar. Você continua sendo a pequena Anne... Nada muda para nós, está bem?

Anne chorou, sendo abraçada pelos irmãos. Ela os amava mais que tudo nesse mundo e saber que tinha o apoio deles facilitava as coisas demasiadamente.

- Tudo bem... Não há do que se desculpar... Eu sei que era meio difícil de acreditar. Eu mesma quase estava achando que enlouqueci... Mas aconteceu. Sou uma mutante. Tudo o que quero por enquanto é treinar e aprender. Não posso decidir mais do que isso... – Comentou Anne, engolindo o choro.

- Sinceramente, eu achei tudo isso muito legal. É como o Alex falou... Nada muda para nós. Você continua sendo a nossa Anne... Estaremos aqui, juntos, para tudo que der e vier. Sempre foi assim, não é mesmo?

Anne sorriu.

- Quanto à questão dos Vingadores, acho que você deveria aceitar ajudá-los. Se você vai receber treinamento e vai se capacitar, porque recusar? – Indagou Alexander, ponderando.

Anne ficou estática. Alexander, em geral, era voz da razão da família. Se ele dizia que Anne deveria aceitar, era porque de fato ela precisava considerar essa possibilidade. Pensando no que o irmão sugerira, Anne percebeu que fazia sentido.

Se ela se tornasse uma agente da SHIELD, apta a lutar e a controlar seus poderes, que mal haveria em aceitar a proposta de Fury? Ora, com preparação, tudo ficava diferente. Ela se sentiria capaz de ajudar os Vingadores e a ajudar quem mais precisasse dela.

- Eu não sei... Vou pensar nisso enquanto estiver aprendendo mais sobre meus poderes... Acho cedo demais para tomar uma decisão. Mas vou levar em conta o que você falou, Alex. Seus conselhos sempre foram os melhores... – Disse Anne, feliz por pelo menos ter algum raciocínio formulado.

- Quero só ver o que você vai achar quando ele aconselhar você a arrumar o quarto... – Reclamou Andrew, imitando a postura séria de Alexander.

Todos riram.

- No momento, apenas aconselho que você vá pedir uma pizza e que Anne vá arrumar as malas. Você terá um grande dia amanhã. – Pediu Alexander, levantando-se.

Assim, Anne tomou um banho e foi adiantar a arrumação das malas. Enquanto a arrumava, tinha um plano em mente. Primeiro, concentrar-se-ia em treinar o máximo que pudesse, em aprender mais sobre seus poderes e sobre lutas. Esforçar-se-ia para ser uma grande agente.

Quando estivesse familiarizada com a coisa toda, com convicção de que era capaz de usar seus poderes e de se defender, Anne aceitaria a proposta de Fury. Mesmo porque, desde o início, sempre quisera ajudar. Tinha apenas medo de falhar, mas, com o treino bem executado, ela não poderia se preocupar com isso. Se treinasse, poderia aceitar a proposta e fazer o que sempre desejara: Ajudar os Vingadores e o Universo, sem medo e sem remorso.

Pensou também no tempo em que passaria confinada na SHIELD. Sentiria saudade dos irmãos, mas tudo isso se fazia necessário. Além disso, poderia conversar com eles via internet em seu tablet ou visitá-los esporadicamente. Afinal, não estava indo embora definitivamente. Por mais preocupada que estivesse, sabia que os irmãos a entendiam e que a apoiavam. Eles queriam o melhor para Anne e a sabiam que, nessa nova condição, ela precisava de treino. Sentiriam saudades, obviamente, mas sabiam que era lá onde Anne deveria estar.

Quanto ao dinheiro, também não haveria preocupações. O salário de Alexander era bom o suficiente para mantê-lo e para manter Andrew, uma vez que Anne estaria na SHIELD. Além disso, como estaria treinando para ser uma agente oficial do governo, Anne receberia um salário. Era quase tão bom quanto o que ela recebia normalmente, exercendo sua profissão de engenheira elétrica. Isso facilitaria em muito as despesas que pudessem aparecer.

Depois desses devaneios, Alexander veio chamá-la para jantar. Tivera, então, um jantar à base de pizza bem agradável com seus irmãos. Tudo parecia quase normal. Andrew fazia as costumeiras piadas e Alexander contava como fora seu dia. Anne parou uma ou duas vezes para contar alguma piada que Stark fizera e isso deixou a atmosfera da cozinha ainda mais leve. Mal Anne fora dormir, já começava a desejar outro jantar como aquele.