O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 15
Capítulo 14 - A Segunda Recordação




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/333339/chapter/15

A velha praticamente o obrigou a ir para casa com ela. Era uma casa antiga e com odores estranhos, embora não de todo desagradáveis. A estranha lhe deu uma bebida quente e uma toalha. Não tinha roupas secas para ele, portanto entregou um lençol para que o garoto escondesse sua nudez e acendeu a lareira. Leharuin sentou-se próximo ao fogo, mesmo que o desprezasse. Seu crepitar lhe eram gritos. Gritos que nunca pudera escutar, mas que ele sabia que estavam lá. Os gritos de sua família em chamas.

— Você teve um passado turbulento, garoto. — A voz da velha retirou-o repentinamente de suas lembranças. As borboletas dormiam presas ao lençol e ao estranho cabelo azulado do garoto. Nenhuma palavra veio a sua mente e ele permaneceu em silêncio. Esperava que pudesse sair daquele lugar em breve. Iria para outra cidade, talvez até outro reino... tinha que se afastar de Clara. — Ouça, o pai dela está em casa.

Leves notas de piano chegaram até ele, quase que sussurradas, quase que imaginárias. Afastou-se do fogo e caminhou até a janela, ali era possível apreciá-las melhor, mesmo que fosse apenas uma melodia abafada. O garoto recordava-se de Clara e dos segredos que compartilhavam. Dos traumas sofridos e de como foram abandonados...

Suas histórias foram escritas em um caderno de desenhos. O filho de sereia não tinha muito que contar, não sabia o que contar. Contou o significado de seu nome, contou sobre sua única família e como ela morreu. Falou vagamente de sua passagem pelas cidades até que chegasse ali. Quanto às borboletas... não sabia sobre elas, apenas que elas o acompanhavam onde quer que ele fosse. Disse também que assistia sua morte e seu nascimento... a primeira vez que viu um casulo, como ficou maravilhado! Acompanhou a transformação dia após dia, apegando-se a detalhes mínimos como o fato de que o casulo tornava-se mais transparente conforme se aproximava o grande momento. Com o passar dos anos, Leharuin deixou de observar todo o processo, era demorado demais. E também, as borboletas novatas sempre o encontravam... e mesmo que aquilo lhe encantasse inicialmente, tornou-se corriqueiro.

Clara prestava atenção em suas histórias, extasiada e por vezes narrava as aventuras de seu mundo silencioso. As histórias de Clara sempre eram as mais interessantes e, por vezes, as mais tristes. A silenciosa garota escreveu no caderno sobre a Dama Proibida, que era a forma que chamava sua mãe. Quando indagada a razão, a menina explicou que tanto sua avó quanto seu pai jamais falaram sobre ela. Era um assunto reprimido que pouco a pouco apagava a existência da Dama Proibida.

A Dama Proibida pode ter feito algo realmente ruim no passado, algo que a tenha banido do mundo das histórias e conversações. Seja qual for seu pecado, não a torna menos interessante. A única coisa que se sabe a respeito da Dama Proibida é que ela deu origem à Donzela Silenciosa. Talvez o silêncio da donzela tenha sido uma vingança programada pela Dama e um aviso de que, enquanto a Donzela vivesse, ela jamais seria esquecida.

Leharuin pedia para que Clara continuasse a contar as histórias e vivências da Donzela Silenciosa e a garota o fazia com prazer, mesmo que adorasse ver o amigo curioso e assim não escrevia nada por dias, apenas para saborear aquele poder que o jovem ladrão considerava tão cruel.

O pai da Donzela Silenciosa a abandonou. Não da forma como muitos podem pensar: largada na sacada de uma casa ou de um abrigo para crianças. Isso o levaria a ser mal falado por seus clientes. O pai da Donzela a abandonou de uma forma mais cruel: Ele ignorava sua existência. Eram estranhos, mesmo que tivessem o mesmo sangue. A Donzela entendia, obviamente, pois seu pai era o Pianista. A vida do Pianista deveria ser igualmente miserável, com uma filha que não podia apreciar sua grande paixão e que ainda o lembrasse da Dama Proibida. O Pianista dificilmente parava em casa, quando voltava, era tarde da noite. A Donzela por vezes o assistia tocar, mesmo que nada pudesse ouvir... sentia vontade de se aproximar, talvez assim pudesse captar aquele vago som para que pudesse ter uma ideia de mundo. Nada estava perdido, no entanto, pois a Donzela conhecera o Perseguido Azul e eles tornaram-se grandes amigos.

— Ora, esse foi o nome mais criativo que conseguiu arrumar para mim, Donzela? — Aquelas palavras arrancaram uma crise de riso da garota. Leharuin percebeu que, mesmo não tendo som, aquele era o riso mais belo que já presenciara.

Ao lembrar-se daqueles dias, o coração de Leharuin se comprimia. Não queria que aquilo acabasse, queria que Clara e ele ficassem juntos para sempre... naquela noite, porém, assim que a velha adormeceu, Leharuin fugiu. Procurou ficar o mais longe possível do Porto, daquela rua estreita...

O Sol da manhã acariciava seu rosto. Sentia o corpo pesado, preso e abriu os olhos desesperadamente, temendo o lugar onde poderia estar.

Estava no seu quarto do castelo, ainda. As imagens do sonho estavam vívidas em sua mente. Um sonho de lembranças. Um sonho que poderia arrancar lágrimas de seus olhos, contudo ainda não chegara a ocasião de Leharuin libertar suas lágrimas… não agora, queridos amigos.

— Ei, Leharuin. — A presença inesperada de Henry fez com que o ladrão se sobressaltasse. Sentia-se frágil, exposto... e completamente envergonhado por aquele susto. Para sua sorte, entretanto, Henry não o olhava. Sua visão estava perdida em algum ponto da paisagem que a janela lhe oferecia. — Você se lembra do nosso primeiro encontro? Daquele buraco?

Um calafrio percorreu a espinha do ladrão. O que estava acontecendo com ele? Lutou contra a sensação de estar sendo sufocado e permaneceu em silêncio, esperando que Henry continuasse.

— Você disse que ficou preso naquele lugar durante quatro dias... acho que a sorte se afeiçoou a você. Alguém sempre acaba te salvando, não é? — Um sorriso forçado surgiu lentamente e logo depois desapareceu. — Quando Evangeline morreu, eu me perguntava se... se eu não tivesse te salvado, que se tivesse o deixado morrer naquele buraco... talvez Moros me permitisse ter salvado Evangeline naquele dia. Mas eu não sou assim, não é? Você sabe disso.

— Sim. Esse tipo de pensamento não combina com você. — Ao olhar para suas mãos, Leharuin poderia visualizar a terra e os arranhões. O desespero de ficar preso naquele lugar... apenas a visão de suas borboletas lhe dava alguma esperança. Esperança de que elas chamariam a atenção de alguém e então esse alguém pudesse finalmente tirá-lo dali.

— Imaginei. Depois do que você disse eu tive certeza disso. — Seus olhos se encontraram após Henry dar uma risada curta, infeliz. — Mesmo que não concorde com seus pensamentos... eu nunca desejaria sua morte. Aquele pensamento apenas me pareceu apropriado. Sentir ódio parecia apropriado, mesmo que ele nunca fosse verdadeiro. Fiquei assistindo enquanto você dormia. A princesa Analiese apareceu uma vez para visitá-lo.

— Deve ter sido uma visão interessante. — Ambos sorriram e Leharuin ajeitou-se na cama. A leveza costumeira de seu corpo havia voltado. Não existia uma única sensação dolorosa, era como se nunca houvesse se machucado.

— Na realidade, foi. Ouvi você conversando. — A expressão do ladrão congelou, podia sentir seu coração batendo rapidamente. — Bom, na realidade, eu vi. Seus lábios se moviam, entretanto não saiu nenhum som. Exceto...

— Exceto? — Clara teria conseguido entender suas palavras e Leharuin nunca esteve tão feliz de que apenas ela possuísse essa capacidade.

— Desculpe-me. — Com certo alívio, Leharuin percebeu que aquelas palavras faziam sentido. Estava se desculpando por ter abandonado Clara, por tê-la transformado na Donzela Silenciosa e Solitária... — A quem você deve um pedido de desculpas, Leharuin?

— À Donzela Silenciosa. — Por mais sincera que fosse, aquela não era a resposta que Henry esperava... Acredito, meus amigos, que em algum lugar ele sentia esperanças. Esperanças de que Leharuin se arrependesse daquele dia. Ele fez um bom trabalho em controlar sua frustração, afinal aquele era um lado de Leharuin que o rapaz não conhecia. Aquele era um lado que Henry gostaria de conhecer. — Foi antes de nos conhecermos. Ela foi minha primeira amiga e não há um dia que eu não me arrependa de tê-la abandonado.

— Por que não voltou para ela? — Não foi preciso que Leharuin respondesse, seus olhos entregaram a resposta. Porque seu olhar era tão assustado... que Henry por um momento pensou ter compartilhado do mesmo sentimento. — Por que tem tanto medo?

— Eu mesmo não sei a razão. Ela ainda espera o meu retorno e eu tomei minha decisão. — O ladrão levantou-se rapidamente da cama, apreciando a ausência de dor. — Tenho que me desculpar, dizer que sinto muito... tenho que cumprir minha promessa.

— Você tem uma obrigação para com o rei agora, Leharuin. Não pode ir embora. — Não era o tipo de resposta que Henry daria. O ladrão olhou mais atentamente para ele. Como fora um idiota! Deveria ter reparado na ausência de roupas de pescador, aquelas roupas de couro certamente não combinavam com ele. O brasão da Guarda Real não parecia encaixar naquele retrato.

— Quando resolveu virar um fantoche? — Tentou soar calmo, mas seu tom falhou em algumas palavras.

— Quando decidi que deveria proteger o reino. — Uma resposta treinada, Leharuin o conhecia. Podia ver o que se passava no coração dele, era quase o mesmo tipo de medo... na realidade, Henry estava quase sendo mesquinho.

— Essa não é a razão, ambos sabemos. Você quer se afastar da sereia, sabe que se apaixonou por ela. — A expressão de Henry endureceu e sua boca fez menção de abrir, contudo o ladrão o interrompeu. — Não é questão do feitiço, você já a amava antes do beijo. Evangeline nunca permitiu que você aceitasse esse amor, é claro. Você não quer deixar seu amor morrer, a sereia não quer deixá-lo viver. É quase poético, não é? Agora, Analiese... talvez você pudesse se apaixonar por ela, logo a princesa... que, de certo modo, é uma versão mais bela de Evangeline. Olhando por esse lado, elas são parecidas, não são?

— Cale a boca. — Não foi a frase e sim a mão de Henry que fez o ladrão se calar. Ela tremia violentamente, como uma folha numa tempestade. Sim, meus amigos, existia uma tempestade dentro de Henry. As palavras de Leharuin poderiam ser verdadeiras... e, se fossem, o que deveria fazer? Sempre tentou agir da maneira correta, sempre tentou agir com a razão. E se de fato existissem sentimentos dos quais ele não tinha consciência? E se esses sentimentos estivessem nublando sua visão? Não poderia deixar que Leharuin o confundisse. Estava agindo da maneira que acreditava ser correta e tinha conhecimento de que até o mais digno dos homens poderia errar. O rei lhe designara a tarefa de manter Leharuin no caminho certo e que desse modo acabaria com a guerra. Estaria salvando a vida de diversas pessoas se fizesse isso. Não, nada disso estava relacionado ao que ele sentia ou ao que ele imaginava sentir. — Não fale como se tivesse total conhecimento sobre mim. Eu mudei e você também. Não é como no passado, não somos melhores amigos. Somos apenas pessoas que Moros decidiu unir por um motivo maior. Devo levá-lo para um encontro com o rei, onde ele irá explicar seu papel nessa guerra.

— Falou como um perfeito servidor de Moros. Ele deve se orgulhar de ter limpado seu sangue. — Não fez questão de esconder o tom amargurado. Estivera sustentando uma amizade existente em apenas um dos lados. Fazia sentido, é claro. Como Henry dissera, ambos mudaram e, pela primeira vez, Leharuin estava disposto a fazer o que era certo e não o que ele julgava ser correto. Parece que Moros resolveu cobrar por todas as vezes que a sorte salvou sua vida.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Queridos leitores, miiiiil desculpas pelo atraso anormal da fic! Tive vários problemas que me impediram de publicar, porém irei postar um capítulo duplo, para me desculpar por essa demora. Espero que gostem! Qualquer erro, já sabem! Beijinhos :)