Como Se Tornar Completamente Irresponsável escrita por isafelix


Capítulo 1
O Paraíso




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19 de janeiro. Sexta. 


    Há duas semanas, dia 5, eu, numa festa com meus cinco melhores amigos, em Frankfurt, Alemanha, aproveitava os melhores dias da minha vida. Podia ver todas as estrelas no céu, por baixo da leve névoa gerada pelo frio da noite. Comemorávamos o momento sublime na cobertura do prédio de meu amigo. Ventava tanto que eu podia sentir meus ossos trincarem, apesar dos casacos grossos.

     O menino ruivo carregou três copos em direção às espreguiçadeiras brancas em que a menina loira e eu, o menino loiro, nos deitávamos e cantávamos “Life is Now”, uma música da banda “If The Kids” que descrevia todos meus sentimentos: vontade de gritar, pular, congelar aquele momento. O ruivo sentou-se ao lado da garota magra de cabelos desgrenhados, entregando-a um copo de Bacardi. Ela não se levantou, apenas subiu o joelho ossudo, coberto pela meia calça preta, formando um arco com a perna, e aceitou o copo de plástico vermelho. Seu nome é Sky. O que eu mais gosto nela: seu lápis de olho borrado, seu nariz fino, lábios grossos e vermelhos, cabelo enorme, loiro e bagunçado. O jeito como bebe devagar, sem a pressa que Theodor, o ruivo, e eu apresentamos ao virarmos nossos copos.

       Ah, e lá vamos nós perdermos as nossas consciências.

       Theodor deitou-se na espreguiçadeira de Sky como se ela já não a ocupasse. Ela não protestou, apesar do garoto ser corpulento. Eu via aquilo, mas raciocinava já lentamente. Só soltei uma gargalhada, estendi os braços e agarrei o ombro de Theodor, empurrando-o, para tomar seu lugar. Metade do seu corpo deixou qualquer contato, mas ele se equilibrou, enquanto parte de minha barriga a substituiu.

       Dirk apareceu nessa hora, praguejando muito, pois deixara seu celular caro cair no chão. Virou uma garrafa de cerveja que trazia na mão esquerda, fechando os olhos. Ele é o menino do cabelo preto e espetado, dentes estragados e senso de humor macabro. Quebrou a garrafa no chão depois de terminá-la. Os cacos se estilhaçaram e voaram, como pequenos pedaços de gelo, mas eu não me importei. Tudo estava feliz, tudo estava legal, livre, leve, solto.  Fechei os olhos e aproveitei a sensação de quase flutuar. 

         Eu conheço esses garotos desde quando eu tinha dois anos de idade. Meus pais são amigos dos pais deles. E quando eu volto para a Alemanha fico no Paraíso (é como chamamos o apartamento de Theodor).

          Sabine, a outra garota, morena, cabelos alisados, corpo também magérrimo, veio correndo e pulando para nós. Tirava fotos, ria, e usava meias cor-de-rosa até o joelho. Eu me lembro disso, pois nunca vira uma meia tão colorida. Ela subia e descia conforme a menina pulava. Faixas rosa em minha mente. Eu acompanhava com olhos perdidos e movimentando a cabeça conforme os pulos. Theodor apontou o dedo em minha direção, rindo muito. Eu fiquei muito feliz, pois ele estava feliz. Eu comecei a rir também. Já não estávamos no colo de Sky, sentávamo-nos no chão, um de frente ao outro, não sei como. Sky também se aproximou, rindo, e nos abraçou por trás. Os corpos meu e de Theodor não resistiram e se curvaram, nossas testas bateram devagar e eu senti seu hálito alcoólico por um segundo, antes de cairmos no chão, Sky deitando-se entre nós.

        Só vi as estrelas então.

        Acordei com o toque do meu celular. Minha primeira visão foi o teto distante e desfocado, creme, tomado pelas sombras da manhã. Ainda me lembrava da felicidade de ontem como um eco esquecido, mas agora não podia mais senti-la. Meu estômago revirava muito e meus músculos doíam. Eu me sentia tenso. A música insuportável do meu celular piorava tudo.

       - Caralho, minha cabeça... – Xinguei, enquanto tateava o carpete ao meu lado à procura do aparelho barulhento. Não conseguia encontrá-lo, passei a mão por meu peito nu. Eu estava sem camisa. Eu estava sem camisa? Cheguei ao cinto de minha calça, ainda abotoado. Depois, ao bolso. Agarrei o celular, mas já era tarde demais. A música cessara. Décima chamada perdida de meu pai.

         Acalmei-me e voltei a olhar o teto. Nele já não havia mais a distinção sonolenta matinal, em que tudo parece vultoso. Agora era só um teto. Suspirei. O aquecedor, ligado, me causava ondas de calor desconfortáveis. Eu suava. Chutei o cobertor que descansava em minhas pernas para longe. A persiana maldita, semiaberta, permitia um feixe de luz me acertar bem no olho. E a música infernal recomeçou.

          Eu encarei a tela do celular por um instante. Era meu pai. Eu tossi duas vezes para disfarçar a voz grogue e atendi, meditando para não mandá-lo a merda no segundo em que começasse a gritar.

         - Leonardo! Já são dez horas da manhã e seu voo sai daqui três horas. Você me prometeu que estaria aqui a tempo! – ele gritou, como previsto. Eu respirei fundo.

  

       Eu devia desligar e não aparecer no aeroporto, fugir e começar uma vida clandestina, viajando pelo mundo. Afinal, eu não concordei em viver, nem mesmo em nascer.      

Eu murmurei algo em resposta. Desliguei antes da conversa continuar.  Eu dormira no chão e Albert, o de cabelo grande, loiro, jogado na cara como um cachorro, ressonava ao meu lado, com os cabelos na cara. Dirk  já estava acordado, sentado à mesa da cozinha americana com Sky e Sabine ao seu lado.    

       Eu me coloquei apoiado em meus cotovelos e eles me olharam, ao mesmo tempo, por um segundo. Depois voltaram a sussurrar as conversas, para não acordar Albert. Sabine fumava e empesteava o apartamento com aquele cheiro. Dirk engolia uma torrada junto a uma xícara de café. Sky só sorria e brincava com uma ponta do cabelo. Uma das pontas pretas. Seu cabelo tem duas cores misturadas, amarelo e preto. É lindo. E desgrenhado.

     Pus-me de pé e segui até a mesa.

         - Eu tenho que ir. – falei, me aproximando de Sky, dando-lhe um beijo melado no rosto. – Onde estão minhas roupas?   

        - Você não vai. – Sky protestou, calmamente, voltando a atenção para seu cabelo. – Eu as escondi. Você não vai.   

        - Qual é. A gente se falará pela internet. – eu disse, mexendo eu mesmo em seus cabelos loiros despenteados. Ela se remexeu e o puxou, voltando a olhar pras pontas. Eu dei de ombros e me sentei ao lado de Dirk. Ele, depois de me encarar por um segundo com seus dentes tortos e cara de mau, soltou uma risada audível. Ele tem quatorze anos como eu.

         - Brasil, cara? – Falou, cheio de escárnio – Fazemos um favor por não te deixar ir.

         - Eu não posso escolher, cara.     

        - Estão embaixo da almofada do sofá, Ly. – Sabine disse, sorrindo.


      Após ela ter pronunciado a última palavra, Sky levantou-se, como um cachorrinho ao ouvir a palavra “comida”. Nossos olhares se cruzaram por um milésimo de segundo e ela arrancou para o sofá. Eu a segui, o mais rápido possível. Ela saltou no estofado de couro creme e agarrou as roupas. Eu pulei cima dela, sem me sentir estranho, apesar do seu traje ser apenas um pequeno short rosa de pijama e uma camisa cinza enorme de algum dos meninos. Nós passamos a batalhar por minha camisa. Ela sorria, embora fizesse muita força, perceptível por sua expressão.  Eu a beijei repentinamente. Ela vacilou e soltou, então me levantei e corri.     

       Ela se deu por vencida e relaxou no sofá, chateada. Nós sempre nos beijamos mutuamente. Sabine e eu, Sky e eu, Sky e Albert, Sabine e Dirk. Sky e Theodor.


     Tiramos a última foto de despedida. Sky e Sabine não tinham penteado seus cabelos e seus olhos castanhos denunciavam as poucas horas de sono, assim como os meus olhos azuis, fundos e vermelhos. Eu fiz uma cara de chapado, como sempre. Só Dirk parecia arrumado, graças ao gel de cabelo de todos os dias.

        Quando eu já me vestira e estava perto da porta, Theodor chegou, mais esculachado que nós, com olheiras fundas e usando só um short largo e verde. Ele parou no final do corredor e nada disse, só sorriu. Eu fui embora, já sentindo o pesar de voltar ao mundo real.


     Devia fazer uns cinco graus negativos lá fora, embora o sol reluzisse claro demais. Os carros se amontoavam nos sinaleiros e as pessoas andavam rapidamente para qualquer lugar. Eu peguei um táxi e rumei o aeroporto. Meu pai me esperava na área de check-in combinada. Ele usava seu uniforme da aeronáutica, porque estava atrasado para o trabalho. Olhava impacientemente pra o relógio e a carranca era tão feia que eu quase desisti e voltei para o plano da fuga.    

       - Nunca mais deixarei você dormir na casa de Theodor – Esbravejou, me fuzilando com seus olhos azuis, mas eu o ignorei – Sua mãe te espera em São Paulo. Vou deixá-lo dentro da área de embarque agora. Faça uma boa viagem. E comporte-se. 


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