O Julgamento Da Bruxa escrita por Storyteller


Capítulo 5
V




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V

Ilenna respeitou o tempo que levei para compreender o fato. Mesmo sendo tão jovem, eu percebia a anormalidade que era não possuir uma sombra.

— Ilenna. – Chamei-a pela primeira vez depois de algum tempo, meus olhos ainda observando o chão de pedra. A vela iluminava a cama em que estávamos sentadas, nossos corpos, o livro vermelho na mão de Ilenna... E, no chão, a sombra da cama juntava-se a sombra de um corpo de uma mulher adulta sentada sozinha com um objeto – a sombra do livro quase não era perceptível junto ao colo de Ilenna -. Meu olhar foi, lentamente, do chão ao rosto preocupado de Ilenna. Suas feições denunciavam que ela sabia alguma coisa – O que significa isso? É alguma... magia? – Perguntei com receio em usar a palavra. Em minha vila, palavras como essa não eram bem vistas.

Ilenna respirou fundo. Seu olhar baixou novamente para o livro vermelho e ela virou algumas páginas antes de falar algo.

— Kala. Você é...muito jovem. Sinto-me constrangida em estar na posição em que me encontro. Mas não temos alternativas. – Ela parou de folhear o livro. Uma página continha diversos dos rabiscos que eu não entendia; a outra, um desenho que eu facilmente compreendia: um céu negro e cheio de estrelas ao lado de um céu claro que somente continha uma gravura do sol.

— O que é isso? O que tem a ver com os deuses? – Perguntei. Era lógico que tinha algo a ver com eles, desde minha chegada Ilenna dava um jeito de trazer o assunto à tona.

O que se passava em minha cabeça era que Ilenna era alguma espécie de feiticeira e que precisava de mim para algum de seus feitiços. Ou que eu também era uma, mas se eu fosse, saberia desde que nasci, não saberia? Teriam me levado embora junto com todas as outras que um dia foram acusadas disso, não teriam?

Ilenna não me respondeu, apenas começou a ler as páginas do livro em voz alta para mim:

”Antes de tudo, existiu o nada. Um céu escuro formou-se desse nada, e, por vaidade, enfeitou-se com o que batizou de estrelas. Algumas dessas estrelas juntaram-se e revoltaram-se com o céu escuro; Elas o abandonaram e criaram um céu só para si que era iluminado pela maior delas. Esse novo céu era claro e brilhante, ofuscando o céu escuro. Assim, da escuridão fez-se a luz. Fez-se o dia e fez-se a noite. — Ela dizia enquanto passava os olhos pelos os rabiscos que eu não compreendia – Um só poderia existir na ausência do outro. Mas, não poderia existir sem o outro. O equilíbrio entre ambos era o que os mantinha vivos.

As estrelas que ainda estavam com o céu escuro sentiam saudades de suas irmãs que haviam se rebelado. Elas criaram um lugar onde poderiam rever suas irmãs queridas. Mas, o céu da noite não queria retomar contato com o céu do dia. De suas brigas surgiram grandes pedaços de terra; e das lágrimas das estrelas, surgiram os oceanos. As estrelas do dia se esforçavam tanto quanto suas irmãs da noite para se reunirem novamente, mas eram prisioneiras do sol, a estrela que cresceu e terminou por assumir poder sob as outras. As estrelas decidiram, então, se apropriar das terras e oceanos que foram criados. Juntaram ambos para formar um território neutro, onde dia e noite reinariam em intervalos de tempo justos e onde, da transição de um para o outro elas poderiam reencontrar suas irmãs da noite.

A grande estrela do céu do dia , o sol, não aprovava o plano e, com raiva, transformou suas estrelas em ventos. As estrelas da noite choraram quando souberam. Em homenagem à suas irmãs, misturaram terra e água para uma nova criação. Sem saber o que faziam, de sua mistura surgiram três novas vidas. Três bebês. Trigêmeos.

O céu da noite se encantou tanto pelas criaturas que permitiu que os ventos vivessem sobre seu domínio e reencontrassem suas irmãs sob aquela nova forma. A estrela do dia, comovida pela atitude, enfeitou seu céu com nuvens; um sinal de paz que ele também presenteou ao céu da noite.

Finalmente, ambos concordaram em reinar em paz, permitindo o encontro entre as irmãs - estrelas e ventos -. Ás vezes ocorrem brigas entre ambos, daí surgem as grandes tempestades. Mas, como uma família, eles sempre retornam à paz.

Suas três criaturas acabaram crescendo e desenvolvendo extraordinários poderes.

Nargot, o mais velho dos três, era um rapaz alto e forte. Tinha longos cabelos negros, olhos da cor da terra e pele escura como a noite, mas simpatizava mais com o dia. Era criativo como suas mães estrelas, mas vaidoso como a noite: ele usou a terra e a luz do sol para criar seres espelhados em si e chamou-os de 'homens'. Ensinou-os a conviver, a construir coisas e a ter curiosidade e uma mente criativa. Mas, ele não podia usar toda a terra que existia para os homens e desejava criar coisas novas. Logo, ele criou as montanhas, as cavernas, a neve, o fogo, entre outras – mas vivia decepcionado por não conseguir criar mais homens.

Nella era a segunda bebê criada pelas estrelas. Seus cabelos eram encaracolados e longos - mas ela os prendia sempre pois dizia que atrapalhavam sua visão – e a cor deles era vermelha como quando os céus trocavam de lugar. Seus olhos eram verdes como águas do mar em dias calmos e a pele era da cor da areia que usaram para cria-la. Ela amava o dia e a noite, mas, assim como o irmão mais velho, tinha preferência pelo dia. Divertindo-se com as criaturas de seu irmão, Nella se inspirou para criar suas próprias. Assim, criou as que chamou de mulheres. Usou a brisa do mar e alguns fios de seu cabelo para sua criação. Deu a elas sabedoria, ensinou-as a serem corajosas e persistentes. Ensinou tanto a elas que, logo se tornaram independentes de sua criadora e foram ter com os homens. Nella nunca abandonou suas mulheres, mas deixou-as seguirem seus caminhos e partiu para criar outros seres: fez os animais, as florestas e os alimentos para os – agora nomeados pelos irmãos criadores – humanos. Em algumas criaturas ela depositou um pouco de sua magia.

Os irmãos estavam felizes com suas criações. Divertiam-se entre elas e dedicavam-se quase que integralmente a elas. Mas elas estavam agora, reproduzindo-se sozinhas e em uma velocidade alarmante. Estavam lotando as terras e não podiam viver nos mares. Desse modo, logo não seria sustentável a forma como viviam.

Preocupados com a superpopulação que se formava, consultaram a noite e o dia para saber como remediar aquilo. O dia e a noite disseram então que, como na relação deles, deveria existir um equilíbrio para a paz reinar. Mas os dois irmãos já não tinham forças para criar algo novo.

Nault, o terceiro irmão e o mais novo, surgiu com uma criação. Sua pele era branca como a luz forte do sol em um dia quente e seus olhos muito claros e negros como a noite. Os cabelos eram claros como o dia, mas, ao contrário de seus irmãos, ele simpatizava com a noite. Depois de conversar com suas mães estrelas, Nault decidiu que, para as criaturas de seus irmãos se sustentarem, deveria criar na Terra um equilíbrio que as mantivesse. Ele criou então, a morte. A fome, as doenças, os acidentes, as dores e até mesmo o tempo foram suas criações para reparar o excesso dos irmãos.

Estabeleceu-se o equilíbrio nos céus e nas terras. Nargot, Nella e Nault estavam satisfeitos. Mas, a última criação de Nault mudaria as coisas.

O tempo, assim como transformava as criaturas dos três deuses, transformava-os também. Sem os três, o equilíbrio não poderia ser mantido e tudo iria perecer. Mas o seu envelhecimento só acontecia enquanto os três estivessem juntos; quando se distanciavam, o tempo não os alcançava e suas forças retornavam.

Decidiram então, se separar. Nargot transformou seu corpo em uma grande rocha e se atirou nas profundezas do oceano.

Nella, não querendo se afastar de suas criações, enraizou seus pés na terra e transformou-se em uma enorme árvore, mais alta e mais cheia de galhos e folhas que todas as outras.

Nault, temendo que os irmãos nunca voltassem a verdadeira forma, jurou que iria encontrar uma maneira de reverter o envelhecimento dos três. Ele foi para longe das terras, no meio do oceano onde a luz do dia quase não alcançava, e ali fez uma ilha de terra escura onde nada poderia brotar. Isolou-se de tudo e de todos.

Afastados, os três continuam imortais. As estrelas, os céus e os ventos olham por nós, criaturas, no lugar deles. Conta-se que, alternadamente, um dos três deuses volta para olhar por nós e garantir que exista sempre um equilíbrio para nos manter em paz. Um equilíbrio para manter as forças em seus devidos lugares. Um sistema harmônico e estável com condições propícias para a vida e a morte acontecerem. ”-

Ilenna falou todas as palavras com calma e sempre me observando para garantir meu entendimento. Quando terminou, ela fechou o livro e passou a me encarar.

— Você entendeu? – Ela perguntou finalmente.

— Nunca tinha ouvido isso antes, – eu respondi – mas gostei. –

Isso— Ilenna disse deixando o livro na cama e levantando-se em direção a porta – sobre o equilíbrio ser o que nos mantém em harmonia. Sobre a estabilidade para se ter a vida. É tudo verdade, Kala. –

“É tudo verdade, Kala.” ouvi o sussurro repetir em meu ouvido e senti um calafrio gostoso passar pelo meu corpo. Era confortável aceitar tudo aquilo.

— Vou buscar outra vela – Ilenna disse indicando a vela em sua mão quase no fim – trarei um candelabro para o seu quarto também. Está muito escuro aqui. - E com isso, ela saiu deixando-me no quarto escuro e cheia de pensamentos.

Imaginei eu e meus irmãos tendo que viver os três separados. Bom, eu já vivia assim. Passei a pensar nas histórias que meu pai e as pessoas na aldeia contavam sobre os deuses: como os dois primeiros haviam criado tudo e o terceiro trouxe a morte porque tinha inveja de seus irmãos. A história de Ilenna sobre os deuses me parecia muito mais interessante e divertida.

Quando eu estava me questionando sobre como aquelas histórias tinham a ver com a sombra que eu não tinha, vi a luz que Ilenna trazia entrar no quarto seguida por ela. Seu rosto parecia carregado de preocupação.

— KALA! – Ela me chamou depressa – VENHA! – Me puxando da cama com a mão livre e me levando em direção à sala caótica, ela não se preocupou com explicações; era uma emergência. – Aqui – ela disse puxando um baú debaixo de uma mesa – entre, agora! Não faça nenhum barulho e me espere! – Foi quando ouvi vozes se aproximando do lado de fora da casa. Entrei no baú sem questionar – já tinha plena confiança em Ilenna –.

Ela me lançou um último olhar preocupado antes de fechar o baú. Senti ela empurrá-lo de volta para baixo da mesa com rapidez – mesmo comigo dentro – e o som do que pareciam vários objetos sendo jogados em cima dele.

De repente, o silêncio absoluto pareceu reinar. Então ouvi a grande porta de madeira se abrir e vozes que eu não distinguia surgirem.

Feche os olhos.” a voz sussurrou para mim como um aviso. Mesmo dentro daquele espaço mínimo e escuro, percebi que não estava sozinha. Que nunca estivera.

Obedeci.


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