O Julgamento Da Bruxa escrita por Storyteller


Capítulo 4
IV




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IV

Existiam seis cômodos na casa de pedra: a sala- que eu carinhosamente apelidara de caótica-, a cozinha, uma biblioteca tão bagunçada quanto a sala, a latrina e dois aposentos - meu e de Ilenna. Eu tinha uma cama com colchão e cobertas pela primeira vez e que era só minha. Meu quarto era quase vazio comparado ao resto da casa: havia uma pequena mesa, uma cadeira, uma estante e um armário, ambos vazios.

O celeiro continha galinhas, porcos, uma vaca e os dois cavalos que nos trouxeram até ali. Ilenna me mostrava tudo e explicava como as coisas funcionariam. Nas primeiras semanas nós iríamos, juntas, limpar a arejar a casa inteira. Ela também acordava mais cedo para cuidar dos animais. Depois, colocaríamos a casa em ordem para “ser um local habitável outra vez”, como ela dizia. Só então, teríamos uma divisão de tarefas e eu iria ter aulas com ela sobre o reino, os deuses e outras coisas que eu “deveria saber”.

Os primeiros dias foram os mais difíceis. Eu sentia a falta de meu pai e de meus irmãos todo dia. Cheguei até mesmo a acender uma vela e suplicar o bem deles aos deuses. Com o tempo, Ilenna e o trabalho na casa começaram a me distrair.

Depois de uma semana limpando os quartos e organizando a cozinha, entramos na sala caótica para transformá-la em algo minimamente organizado. Separamos cadeiras em um lado e mesas – eram três – em outro. Ilenna separava os livros em categorias que ela criava enquanto eu tirava o pó deles. Foi quando me deparei novamente com o livro marrom.

— Ilenna! – ela estava imersa em uma pilha de livros, mas veio ao meu encontro – o que é isso? – Questionei apontando para o grande livro.

— Ah isso – ela tomou o pedaço de pano de minhas mãos e limpou a capa do livro. – Aqui - e apontou para o título, escrito em uma tinta dourada já desbotada.

Olhei aquilo sem compreender absolutamente nada. Para mim, eram estranhos rabiscos. Eu sabia o que era um livro – pouquíssimas pessoas em minha vila possuíam-. Mas a finalidade que lhe davam normalmente era para apoiar alguma perna de mesa ou cadeira.

— E isso? O que significa? – Perguntei tocando os rabiscos dourados.

Ilenna me olhou de cima a baixo.

— Às vezes me esqueço que você é uma criança... – e sorriu, algo que ela vinha fazendo muito – vamos deixar ele no seu quarto. Quando terminarmos tudo, sua primeira lição será a de leitura. –

Deixamos o livro pesado na mesa do meu quarto e voltamos para a sala. Ilenna ia às vezes para os aposentos, enchendo as estantes de livros e pergaminhos.

 Cada dia que passava eu me esforçava um pouco mais para terminarmos as tarefas o quanto antes e eu ter acesso àquele estranho objeto que parecia ansiar por mim tanto quanto eu ansiava por ele.

Limpamos janelas, chão, objetos e os separamos. A sala ainda estava lotada de cacarecos, mas o caos agora era compreendido por nós. Aprendi nomes e a serventia de diversos utensílios que antes eu sequer imaginava a existência – lentes, por exemplo, que serviam para melhorar a visão -. Durante toda a limpeza, Ilenna me perguntava coisas do meu passado: como minha mãe havia morrido, quantos vizinhos eu tinha, quem eu conheci, de que brincava com meus irmãos e o que eu fazia em meu cotidiano. Ela buscava entender tudo que eu, em meus poucos anos de vida, havia passado. Até que ela fez uma estranha pergunta.

— Kala, você nunca reparou em nada... diferente? Algo relacionado a você, algo que ninguém mais tenha? – Parecia uma pergunta como as outras, mas os olhares rápidos de Ilenna para mim mostravam que não era.

— Não. – respondi prontamente sem olhar ela nos olhos enquanto devolvia um dos potes de vidro que eu havia acabado de limpar para a prateleira.

— E sua aparência, nunca chamou atenção? – Ela perguntou com insistência na voz – Seu cabelo... bem, ele é cinza, nenhuma criança tem cabelo cinza assim. E os olhos também. – Ela disse olhando para mim. Na época, meu cabelo era cinza e curto. Mamãe, quando viva, passava lama para tentar escurecer, mas de nada adiantava. O cinza sempre foi algo presente em mim.

— Seus olhos são brancos. – reparei, ainda sem olhar para ela, pegando mais um pote da prateleira – e você manda nos cavalos. Não precisou de cocheiro para a carruagem. E você acende velas sem precisar de fogo. – Despejei tudo de uma vez só, esperando que ela ficasse surpresa e explicasse os fatos que eu citava. Tudo que ela fez foi me olhar por um longo tempo e dar uma gostosa gargalhada.

— É verdade. Bem, que importa para mim se chamava atenção ou não? Características marcantes são dons que não devemos tentar esconder do mundo, não é mesmo? Se você é assim, não tem porque esconder de ninguém quem você é. Não deveria pelo menos. – ela disse retomando a limpeza de uma estante cheia de gavetas.

Depois de um tempo pensando naquilo, decidi questioná-la novamente sobre os olhos brancos.

— Você nasceu com eles assim? –

Ela demorou para dar a resposta.

— Sim. Claro que nasci. Como eu disse, são dons que deveríamos poder mostrar ao mundo. – sua voz continha certo tom de tristeza, então não resolvi não insistir. Continuamos a limpeza caladas até o momento em que ela foi preparar o jantar - mingau e leite -. Ela estava sentando-se para comer quando anunciou:

— Amanhã vamos começar as aulas de leitura. –

Não deixei de esboçar um sorriso. “Finalmente” pensávamos eu e minha voz interior.

— Tenho saudades da minha família. - Falei de repente. Não era para ter sido em voz alta já que eu vinha guardando o sentimento pra mim.

— Que bom. - Ilenna disse com seriedade - Fique triste. Sinta saudades. Chore o quanto precisar.  Temos que nos permitir sentir as coisas e falar sobre isso sem se reprimir. Não guarde pra si uma tristeza dessas, pode te fazer mal. - 

Baixei a cabeça para o mingau. Eu já estava esquecendo os rostos de meu pai e irmãos.

— Você sabe quem criou o leite que você está tomando? – Ela perguntou, mudando de assunto de repente.

— A vaca do celeiro. – respondi séria, mas abri um sorriso quando vi que minha resposta lhe divertia.

— E quem criou a vaca? – Ela continuou, sorrindo.

— Nargot? – Arrisquei. Eu sabia que ele era nosso deus criador, mas não tinha certeza se ele ou Nella havia criado os animais.

— Quase. Foi a irmã dele – ela respondeu ainda sorrindo.

Aquela conversa me pôs a pensar nos nossos deuses. Eu conhecia a história que meu pai havia me contado, o sol e o mar se casaram e tiveram trigêmeos. Nargot era pai dos humanos, Nella a mãe da natureza e Nault o deus de coisas ruins. Meu pai sempre contava como cada um realizou suas criações e como Nault era sempre o último, e acabava por trazer desgraças e tristezas. Em algumas casas da vila, nem o nome dele podia ser citado.

— Você prefere Nargot ou Nella? – Perguntei para Ilenna esperando a resposta óbvia: Nella, deusa que protegia as mulheres.

— Nenhum. Os três são importantes para manter as coisas em equilíbrio. – Ilenna respondeu sem pensar duas vezes, como se esperasse essa pergunta de mim – E você? –

Pensei por alguns instantes. Os deuses não ficariam bravos se eu tomasse partido de alugum?

"Não"

— Nargot e Nella nos trazem muitas coisas boas. Já Nault é... - Tentei medir as palavras. Papai dizia para nunca ofender um deus, ainda mais o deus da morte – diferente. –

Ilenna sorriu.

— Todos nós temos nossas diferenças, Kala. Sabe de uma coisa? Vamos terminar esse mingau e eu vou contar uma história – ela disse tomando um grande gole de leite.

Terminamos o jantar e ela colocou as louças sujas na bacia de sempre. Depois, me mandou ir para o quarto enquanto buscava um livro na biblioteca. Alguns minutos se passaram até ela entrar segurando uma vela em uma mão e um livro de capa vermelha em outra. Ela colocou a vela sob a mesa e começou a buscar algo dentro do livro. Fez uma careta para algumas páginas e sorriu para outras, até que, suspirou aliviada.

— Sente-se – ela disse indicando a cama e eu obedeci. Ilenna recolheu o livro e a vela e juntou-se a mim, sentando-se com o livro no colo – Kala. A história que você conhece dos deuses, apesar de real, está incompleta. – Ela apontou para a página aberta do livro, iluminando com a vela que tinha na outra. Nela, uma gravura de um céu estrelado acima de três bebês, cada um segurava um símbolo: uma espada, uma semente e uma ampulheta.

Eu estranhei a figura. Não por ser a primeira vez que eu via uma gravura daquelas, mas justamente por não parecer ser a primeira vez.

— Nargot, Nella e Nault. – exclamei sem dúvidas.

— Exato – Ilenna disse, os olhos brancos encarando a figura com certa tristeza – Kala. O mundo não foi feito para ser dividido. Existem as mais diversas criaturas. Cavalos, galinhas e humanos como você já viu... mas existem muito mais que isso. Aqui, Nargot segura a espada pois protege os guerreiros. A guerra, por pior que seja, nos proporciona um recomeço. Nella – ela apontou para o bebê do meio com a semente – é o desenvolvimento. Nosso crescimento, e como no início, somos todos sementes, mas, depois crescemos e nos tornamos diferentes uns dos outros. E aqui, Nault com a ampulheta – ela acariciava as imagens – além das coisas ruins, como você citou, ele também é o deus do tempo. Pois, inevitavelmente, seremos todos engolidos pelo tempo. O tempo pode significar várias coisas, mas para nosso deus é o equilíbrio. -

Franzi as sobrancelhas. “Pergunte da lenda” ouvi o sussurro fraco em meu ouvido e não me contive.

— Existe uma outra lenda? – Perguntei sem tirar os olhos da figura. Ilenna sorriu. Colocou uma mão em minha cabeça e iluminou o chão com a outra.

— Kala. Olhe para nós – ela disse. Olhei bem para ela – porque você acha que eu te trouxe aqui? – Eu tinha a resposta pronta, mas tinha medo de me arriscar em responder algo e me decepcionar. - Você é especial – ela disse; a luz da vela pareceu crescer e iluminar ainda mais o aposento – veja – ela me entregou a vela. Usando a sombra de suas mãos, Ilenna projetou figuras no chão enquanto eu segurava a vela, encantada com o truque dela.

— Você vê? – Ela perguntou de repente.

— Sim. Você sabe fazer animais com a sombra. – Respondi encantada e sorrindo. Ela pareceu murchar de decepção e eu parei de sorrir.

— Kala, veja de novo. Melhor, faça você – ela disse tomando a vela de minhas mãos e indicando o chão. Receosa, brinquei com as mãos próxima ao fogo da vela, sentindo seu calor mas sem me machucar. Então eu vi. Ou melhor, não vi. O chão que Ilenna usava para projetar a sombra de suas mãos não continha nada além da luz da vela.

Me aproximei mais da luz, quase me queimei e nada aconteceu. Então me afastei, fiquei de pé e tentei me projetar toda contra o chão. Não surgiu sombra alguma, a não ser das roupas que eu usava. Mas, no chão, ninguém as vestia. Olhei com certo desespero para Ilenna. Que tipo de truque era aquele?

— Alguma vez você conseguiu ver sua sombra, Kala? – Ela me perguntou com calma e paciência. Parei de tentar projetar algo com a vela. Eu nunca tinha brincado daquilo. Na verdade, em casa nós não pensávamos muito, só tínhamos afazeres para cumprir. Pensei bem: mesmo quando mamãe era viva e eu vivia com ela, nunca havia reparado em tal fato. Nossas sombras não eram algo que nós parávamos para pensar sobre. Mas, agora eu havia finalmente percebido que eu nunca tivera uma.


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Notas finais do capítulo

Oi gente, eu tô buscando alguém pra betar a história, mas está sendo extramamente difícil. Assim que, se algum de vocês tiver interesse de se juntar a liga, me avisem! :)



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