Um Anjo Em Minha Vida. escrita por Hikari


Capítulo 1
Viver?


Notas iniciais do capítulo

Oooi, gente! Aqui estou eu com mais um pequeno conto original. Realmente espero que gostem. Nos vemos daqui a pouco. (:



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Minha vida mudou quando eu estava morrendo. Na época em que minhas esperanças estavam se dissipando. Os sentimentos de quando era jovem, e podia fazer o que bem quisesse, desaparecendo, deixando-me um incrível vazio que nunca – até aquele momento – consegui preencher. Como se todas aquelas oportunidades que apareciam quando era criança, adolescente, e adulto (na juventude em que poderia escolher onde quer que eu possa passar a vida trabalhando e fazendo, me dedicando) tivessem sido perdidas. Quando eu já havia vivido; me arrependido; sofrido e estava apenas esperando que a Morte me levasse. Desamparado e não entendendo o porquê. Naqueles tempos, eu ainda não tinha entendido o significado de viver, o porquê estava ali naquela vida, o porquê eu tinha que ter passado por tudo aquilo para agora chegar onde estou. Perdendo as forças, perdendo a energia... Até que eu não passasse de um corpo no chão, sem mais nenhum traço de respiração. Pode parecer algo dramático, sei disso, mas não é nada além da verdade. O triste fato de que foi só naquela época em que eu aprendi realmente a viver, o que aquilo representava, aprendi a dar valor a o que nós somos. Coisa que antes passavam despercebidas, sem valor para mim. Ignoradas por vários aglomerados de pensamentos de que eu tinha do que antes era aproveitar a vida – mas o que eu fiz, não chegava a ser algo que se chamava aproveitar. Sei disso, e me arrependo do que fiz. Algo que nunca poderei alterar, tendo que ter aquele peso carregado nos ombros novamente, já como a única pessoa que poderia ter me auxiliado já tinha partido. Quem me fez mudar me mostrou isso e me ajudou a carrega-lo apesar de não notar. Não são todas as coisas que pensamos estar fazendo certo, que nos agradam, que são sempre a melhor opção. Quem dera poder ter conhecido a pessoa que me ajudara a reconhecer isso, antes.

Já faz três meses que havia chegado ao hospital, me internaram e eu sabia que minha vida ia se esvaindo aos poucos, aliás, meu câncer se espalhava muito rápido, como em uma represa que se quebrou, toda a água escorrendo para fora, depressa...

Eles colocaram-me em uma sala onde já havia uma menina, uma pequena garota. Ela olhava para a janela e sorriu para mim quando me viu entrar, ela aparentava não ter mais do que treze anos, seus cabelos eram tão loiros que chegavam a ser brancos. Seus olhos azuis cintilavam de animação. Ela estava conectada a muitos fios que por si estavam ligados a vários aparelhos com vários líquidos diferentes, seus remédios. Ela parecia ser frágil, como vidro, sua pele pálida parecia quase translúcida. Ela era magra, e parecia que aquela doença pela qual estava passando era algo muito doloroso, algo que a fazia sofrer, mas ela continuava sorrindo. Um sorriso doce, genuíno e singelo. Como se estivesse de férias, como se não sentisse nada.

Logo percebi que ela era muito curiosa, eu mal chegara e já começara a me fazer perguntas, perguntas das quais a maioria eu nunca escutara em meus oitenta e quatro anos de vida. Ela era afável, gentil, e respeitava quando eu não respondia, ela compreendia minha dor.

Mas não posso dizer que depois de um tempo, em certo momento, eu havia começado a ficar irritado, apesar de tudo. Aquela garota falava demais, fazia perguntas demais. E não conseguia entender sobre o porquê de sua extrema curiosidade em excesso. A enfermeira ia três vezes ao dia para aplicar-lhe uma injeção e arrumar os fios, mas ela não ligava. Na verdade, parecia estar acostumada a isso. Porém, apesar de no começo eu ficar irritado, aos poucos me acostumava a ela, do mesmo jeito que ela se acostumara aos medicamentos.

Ela me fizera rir, chorar e pensar, refletir. Tinha me afeiçoado a ela. Era como uma filha para mim, uma filha de que nunca tive. Mas ela ficava de mal a pior a cada dia. Sua pele passara de pálida para amarelada, suas veias saiam da pele, pulsantes, e seu rosto estava magro, muito magro.

Mas ela continuava agindo normalmente, como se não sentisse nada. Como se nada houvesse acontecido. Sorrindo, rindo. Com o mesmo tom suave, brando e puro dela.

Ela morreu há uma semana, e quando ela se foi, minha vida parecia estar definhando rapidamente, a Morte estava chegando mais rápido. Costumava sentir medo dela, mas não sentia mais. Havia aprendido a não sentir, pela única pessoa que mudou minha vida. E que se fora. Mas eu iria voltar a vê-la, ela mesma me dissera.

Um dia antes de morrer, reconheci-a sendo a pessoa mais humilde e otimista que nunca encontraria mais. A pessoa que todos deveriam ter conhecido e respeitado. Alguém que merecia descanso. Descanso e carinho.

Foi naquele dia que tudo mudou.

-O que estamos fazendo aqui? –ela me perguntou, abruptamente.

-Vivendo. –respondi vagamente, estava com o jornal do dia na mão, lendo-o vorazmente, mas mesmo assim, sem muito entusiasmo. De que adianta lê-lo se eu não faria parte de toda a agitação daqui a alguns dias? Quem sabe se não algumas horas? Porém, era a única coisa que pensava em fazer, em poder fazer. 

-Hum, e... O que é viver? –ela questionou, virando a cabeça para mim e inclinando-a para frente esperando minha resposta.

Franzi o nariz, que pergunta era aquela, afinal?

-É estar aqui... Respirando. –abaixei o jornal, depositando-o no meu colo. Suspirei profundamente, fechando os olhos. Já podia supor que não iria ter paz para lê-lo, mais.

-Quer dizer que plantas não vivem?

Gargalhei, roucamente.

-Quem disse que elas não respiram? –abri os olhos, encarando-a desafiadoramente. Ela ainda estava com a expressão desconcertada, as veias azuis e roxas destacando-se em sua pele sem cor.

-Então elas vivem? –ela retrucou surpresa, arregalando os olhos para mim. Os profundos azuis de sua íris eram como o céu. Eram vívidos, audaciosos, espertos. Fazia-me – ao olhá-los – esquecer-me de que sua dona estava sumindo, cada vez com o aspecto mais horrível.

-Claro. –falei mansamente, assentindo com a cabeça. A outra apenas desviou os olhos para a parede a sua frente, aparentando estar meditando, ponderando sobre minhas palavras.

-Hm... –pausa. Pensei por um instante que ela não diria mais nada. Mas quem ela seria se não as dissesse? -E os peixes?

Fiquei um pouco desorientado com sua pergunta. Peixes? O que isso tinha a ver com o rumo de nossa conversa? Mas isso era algo natural dela, direcionar o principal assunto a outro destino, no que, às vezes, não era tão sem sentido assim.

-O que têm eles?

-Eles também vivem? –ela explicou, mexendo as mãozinhas e entrelaçando seus dedos, inquieta.

-Por que não viveriam?

-Porque eles estão na água...

Ai, ai. Ela e suas perguntas. Suspirei tranquilamente, não hesitando em minha resposta. Quando se tinha que conviver com essa garota em particular, você tinha que estar preparado para o que ela soltaria no segundo seguinte, algo que aprendi conforme os dias se transcorriam lentamente.

-E quem falou que eles não respiram na água?

-Quer dizer que eles respiram? –a garota parou de mexer as mãos e virou-se para mim, o sorriso radiante rompendo seu rosto aturdido. O som de seu batimento cardíaco, vindo de um aparelho ao seu lado, chegava aos meus ouvidos. Acelerando-se em questão a ansiedade.

-Sim. –respondi oferecendo-lhe um sorriso terno. Ela, dessa vez, olhou para cima, pensativa. O sorriso desapareceu de seu rosto enquanto ela formulava mais uma bomba.

-Hm... Posso te perguntar mais uma coisa?

-Já está perguntando. –cruzei as mãos em meu colo, em cima do jornal, fazendo-o soltar um ruído discreto enquanto amassava as suas folhas com o peso de meu membro.

-Não, outra! –ela falou, ranzinza, com a testa franzida. Deixei escapar um riso, achando graça de sua postura nervosa.

-Pode falar.

-Você responderá, sem mentir? –a garota retornou, sem olhar para mim.

-Claro que responderei. –prometi, agora eu tornava-me confuso pelo que ela diria. Parecia séria, sem a suavidade de sempre.

Ela virou o rosto para mim, abriu a boca, relutando em deixar as palavras sair. Não parecia brava ou triste quando finalmente as soltou. Estava serena, de um jeito brando.

-Eu vou morrer?

Silêncio. Não conseguia lhe dar essa resposta, porém. Um nó formou-se em minha garganta.

-Vou, não vou?

Mais silêncio. A chuva batia no teto, estrondosa.

Ela voltou a olhar fixamente no teto.

-Pode falar. Eu não tenho medo.

Dessa vez, eu que tive que olhá-la assombrado. O estupor me abandonando, minha curiosidade vencendo o pânico e o desespero.

-E por que não tem medo da Morte?

-Por que ela me levará a um lugar melhor. Eu sei disso. –ela encarava a chuva com uma expressão calma e aterrorizantemente feliz.

Eu já havia pensado sobre isso antes, mas nunca realmente acreditei nessas coisas. Como um velho como eu poderia pensar nisso? Estava morrendo, sem nenhuma dúvida, mas sofria muito. Para mim não existia paz, ou lugar feliz. Se eu morresse, iria me dissolver, e sabe-se lá o que aconteceria depois. Mas pensando desta forma, era bem melhor. Se tivesse que escolher entre as duas alternativas, qual eu decidiria tomar como verdadeiro?

Houve mais uma pausa, dessa vez maior. Longa e cheia de vibrantes pensamentos colidindo-se, misturando-se, tornando-se um só.

-Você está certa. –disse balançando a cabeça em tom de aprovação, determinado em quebrar o silêncio. Fazendo a minha decisão ao mesmo tempo.

-Estou? –ela virou-se bruscamente, tão depressa que fiquei com medo de algum osso dela se quebrar, de tão frágil que parecia.

-Com toda a certeza. –falei, acabando com qualquer outra dúvida que teria caso ainda tivesse alguma, àquela altura.

-Eu sabia. Minha mãe sempre disse que eu estava certa. –ela aconchegou-se no travesseiro.

Uma pergunta não parava de batucar em minha mente, nunca havia visto uma pessoa sequer a visitar, em todos os três meses nos quais estava ali com ela; o que era estranho. Que pais desnaturados não visitavam uma filha? Ou parentes... Ou amigos. Por que ela não recebia nenhuma visita? Nem um dia, ao menos?

-Garota. –chamei-a e ela me olhou com seus olhos azuis anil, como diamantes, esferas brilhantes que faiscavam, reluzindo como safiras. Seu rosto estava amarelado pela doença, e seu corpo já estava com as trilhas da doença rara se espalhando mais e mais, ninguém havia descoberto a cura. Porém os olhos continuavam deslumbrantes, cheio de expectativa, esperança e vida. Ela nunca reclamara de uma só dor. Eu a admirava secretamente.

-Sim, senhor? –Ela se pronunciou, agora, orgulhosa por alguém, finalmente, ter perguntado algo a ela.

-Me perdoe o intrometimento, mas... onde estão seus pais? Por que ninguém a visita?

Ela sorriu, exultante. Como se esperasse esta pergunta há tempos.

-Ah, senhor. Eu não tenho pais. Eles morreram na guerra quando eu era pequena. Moro em um orfanato onde  nenhuma criança gosta de mim, na verdade, nem minha tutora gosta muito de mim, já como faço muitas perguntas. –a garota estava concentrada, os olhos estreitados como se estivesse se recordando de algo. Então prosseguiu: - O senhor é o primeiro que tem a paciência de respondê-las, e de falar comigo. –Inclinando a cabeça para o lado ela riu docemente. –Por isso: obrigada.

Fiquei estupefato com a resposta, estaria ela falando a verdade? Era o que parecia. Mas nunca havia pensado nessa possibilidade. Como uma garota daquela poderia ter uma vida tão árdua? Ter passado por situações penosas com apenas a sua idade e ser como ela era? Fulgurante, acolhedora, humilde, bondosa e compreensiva? Sabia que era provável que isso tenha acontecido. Sabia que ela não estava mentindo. Mas como ela se demonstrava, não parecia nada ser daquele jeito.

Talvez, afinal, não fosse o único a sofrer, entretanto ela parecia ter passado por muito maus bocados, mais do que eu mesmo tive em toda a minha vida. E como ela conseguia ainda ter aquele sorriso no rosto? Aquele sorriso tão ingênuo que parecia que tudo estava bem. O sorriso de esperança de uma criança que espera ir ao zoológico, ou ganhar um sorvete.

Não acreditava no que escutava. Na verdade, desde que me entendo por gente, o que é há muito tempo, não conhecia uma criança tão amável quanto ela. Nunca tive filhos, e minha mulher – a que sempre me auxiliara e que eu amo mesmo depois de ter partido – havia morrido anos antes. Por isso nunca tive o prazer de educar alguém, de poder ver um filho crescer.

Mas ela era como minha filha, como disse antes. Sentia-me como um pai protetor. E sabia que iria perdê-la logo, ambos estávamos morrendo.

 -Sei que quando morrer poderei ver minha família novamente, mamãe e papai estarão esperando por mim, assim como meu irmãozinho, que perdi pela doença que ele teve. –levantou os pequenos braços e apontou para a chuva, fechando as mãos e apertando os punhos como se pegasse algo no ar. –Assim poderei estar ao lado deles, como antes.

Seu rosto estava determinado, e falou para mim, austera em suas palavras:

-Por isso não precisa ter medo da Morte. –ela acenou com a cabeça, anuindo. Concordando com a própria frase. –Eu sei que ela não poderá me afastar das pessoas que amo. Ela irá deixar juntar-me a elas.

Sorri fracamente para a menina e a olhei afetuosamente, ela quase instantaneamente adquiriu uma expressão preocupada.

-O senhor também irá ver sua família! Por isso não fiquei triste... –ela gaguejou rapidamente, o queixo tremendo como se estivesse à beira das lágrimas. Eu ri.

-Poderei vê-la lá, quando chegar?

Ela enrijeceu-se, a tremedeira parou e ela focou os olhos nos meus, desnorteada.

-Do que está falando? Mas é claro que sim! Todos nós nos veremos! Vou conhecer sua esposa da qual você tanto fala. Ela parece ser tão gentil quanto à foto que você observa a noite.

Olhei-a e percebi que ela já não estava tão forte quanto à primeira vez que a vi, mas tão segura quanto. Abri a boca para dizer algo, porém, antes que fosse possível eu proferi-las, os seus olhos fraquejaram, as pálpebras fechando-se, os braços trêmulos que a garota se apoiava ao tentar se sentar fê-la desabar e o corpo caiu na cama.

Sobressaltei-me e chamei a enfermeira em completo desespero. Os médicos entraram, eu gritava. Um enfermeiro me segurou enquanto dizia coisas incompreensíveis. Debatia-me tentando sair para ir ao encontro da garota. Ela já havia desaparecido de minha visão por causa dos vários médicos que entraram em sua frente, lutei para escapar dos braços do enfermeiro que me prendeu e me sedou. A fraqueza que já sentia foi intensificando-se e, depois daquilo, foi apenas tudo um grande e imenso confuso borrão.

Levaram-na para outra sala, a sala de cirurgia. Ficaram lá a tarde inteira e quando voltaram... A menina não estava mais lá na cama. Tudo o que se encontrava em seu lugar era lençóis novos, arrumados e limpos. Brancos como tudo o que havia em minha volta. Perguntei ao médico o que tinha acontecido, e a resposta? Ela não havia aguentado a cirurgia. Um eufemismo para afirmar que ela tinha partido, falecera.

Naquela noite estava tudo muito quieto, havia me desacostumado àquilo. Chamei a garota em certa hora, para me lembrar de que ela não estava mais ali.

Algo úmido apareceu em meus olhos, havia muitos anos que não chorava, já havia esquecido como era tal ato. Era como se tirasse um fardo de minhas costas, sentia falta daquilo.

Nunca me esqueceria daquela criança, das perguntas - um tanto bizarras - que ela fazia. Das suas histórias, e principalmente, de sua companhia.

Mas sabia que a veria de novo. Ela me contara. Ela me prometera.

Por isso, no último dia de minha vida, fechei os olhos. Feliz e agradecido. A Morte não era tão ruim assim. Eu não tinha mais medo dela.


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Notas finais do capítulo

Então... o que me dizem? Gostaram da pequena historinha? Dos personagens? Querem me deixar um comentário dizendo sobre o que acharam? Me deixaria muito feliz. Obrigada por lerem! :D Nos vemos nos reviews (?). Ou não (?).



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