Contos De Uma Página escrita por Skakim


Capítulo 3
Mad


Notas iniciais do capítulo

Esse conto aqui deu duas páginas de caderno A4, mas precisava de espaço para poder ser narrado completamente.



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Aquela praga mudara o mundo rápida e permanentemente. No início foi tratada como uma doença não-letal, mas mutações provocaram o contrário. Nós éramos um dos poucos sobreviventes, por termos nos mudado para o sítio de minha avó dias antes das primeiras notícias. Eu, minha namorada Eliene e minha mãe Elena. Maria, minha vó, falecera por não podermos mais buscar seus remédios para pressão. Meu pai por não aguentar mais viver isolado do mundo. Elena estava cada dia mais depressiva pela ausência do marido, passava horas a fio olhando pela janela, esperando ele voltar, mesmo já tendo partido há uma semana e sabendo que, ainda que voltasse, não poderia entrar. Na verdade, esperava que ele viesse para que pelo menos morressem juntos, mas sabia que, naquela altura, ele deveria ser um dos 7 bilhões de mortos.

MAD, Muscular Atrophy Disease como havia sido chamada inicialmente, fora descoberta há cinco meses, quando das primeiras mutações. Provocava atrofia de músculos subcutâneos inicialmente, tendo sido colocada na lista de Doenças de Baixo Risco, caindo no esquecimento. Aos poucos o vírus se modificou, tornando-se cada vez mais infeccioso. Uma rara medida de meses antes da explosão da doença indicou que assustadores 80% da população mundial estava infectada. Pesquisas começaram a ser realizadas. Descobriu-se que o vírus sobrevivia vários dias no ar e estimava-se que podia se manter presente no corpo de mortos por dois meses. Ninguém, porém, havia sido morto pela infecção. Cientistas notaram que pequenas mutações aconteciam a cada hora, e grandes em questão de dias.

O problema quando começou quando ele desenvolveu dois sintomas em questão de minutos de diferença entre si: atrofia repentina do miocárdio e transmissão através de todos os gases liberados por humanos, mesmo depois de mortos. Em questão de horas, devido à altíssima facilidade de infecção e letalidade, o número de infectados subiu para 7 bilhões, o de vítimas em um dia alcançou 100 milhões. Os que não tinham acesso à televisão enterravam seus mortos, infectando-se no ato.

Nessa época, para nossa sorte, estávamos no sítio, longe de tudo. Vimos as notícias via televisão. Hospitais ainda mais lotados que antes, o que também ajudava a proliferar. Qualquer parente saudável era inevitavelmente infectado. Apenas pessoas isoladas, como nós, ainda estavam livres. O resto simplesmente acabava entrando em contato e morria.

A televisão mostrava imagens estáticas. Câmeras que ainda tinham bateria e transmitiam via satélite. As emissões fizeram isso antes de seus funcionários falecerem. Apenas viam-se mortos nas ruas, raramente aparecia um sobrevivente prestes a morrer. A cada dia a imagem era pior, devido a não-manutenção da rede. Geralmente deixávamos desligada, eram imagens perturbadoras, mas eu estava olhando, refletindo, tentando entender o porquê de tudo isso. Nem animais estavam sobrevivendo, as plantas lentamente começavam a tomar espaço.

Ouvi os passos e me virei, vendo Eliene chegar na sala, recém-banhada. Sorri, um sorriso preenchido de melancolia. Ela era o único motivo de eu querer viver e não fazer o mesmo que meu pai. Seu olhar também tinha tristeza, mas alguma esperança.

– Talvez cientistas isolados em algum bunker, manipulando adequadamente o vírus, descubra uma cura... - Dizia sempre que me via. Era a única possibilidade de sobrevivência. Não sabíamos quais novas mutações apareciam, nossos estoques de comida estavam findando. Só não acabara pelas plantações de minha vó, que a gente conseguia manter. Carne, porém, já havia acabado.

Fiz sinal para ela se sentar no meu colo e a abracei, silencioso, dividindo minha angústia com ela. Tentávamos viver algo próximo de normalidade, mas, no fundo, um sentimento parecido com luto continuava a existir. Suspirei após alguns minutos daquele jeito com ela, soltando-a. Sorri um misto de tristeza pelo mundo e felicidade de estar com ela. Senti seu dedo passear em meu peito e vi seu olhar em mim. Deitei-a no sofá, acariciando seus cabelos, beijando-a com mais avidez. Gostava de brincar com ela também.

No dia seguinte, acordei com ela em nossa cama. Tinha acordado antes dela. Fui até a cozinha, encontrando minha mãe lá. Estava preparando ovos fritos direto do galinheiro e esquentando o pão que havia acabado de fazer. Dei-lhe bom-dia. Ela se virou e percebi as olheiras. Ela não dormira bem.

– Sonhou com meu pai novamente?

Ela apenas assentiu. Frequentemente eu ouvia seu soluçar durante a noite, embora ela tentasse esconder. Sentia falta do homem que a desposara. Peguei os dois pratos, meu e de minha companheira, e voltei para o quarto. Coloquei-os na mesa de cabeceira e acordei-a com um beijo. Sorri para ela, comendo juntos o café da manhã ali na cama. Eu faria qualquer coisa para ficar com ela e para que fosse feliz ao meu lado. Assim que terminamos, fomos para a plantação, irrigando as plantas com água do poço. Estava calor, logo estava empapado de suor. Voltamos apenas para almoçar e trabalhamos mais, até o último raio de sol.

Entramos cansados em casa. Fui tomar um banho. Enquanto passava o sabonete, Eliene entrou sem avisar, com um sorriso explícito no rosto, o banho se tornando bem mais demorado que o previsto e muito mais relaxante. Fechei o registro após terminarmos, secando-me e ajudando-a a se secar. Vestimo-nos e fomos jantar com minha mãe. Ela notou o que acontecera instantes antes, o que a lembrou de seu falecido esposo, mas ficou quieta. Segurei a mão de minha namorada embaixo da mesa enquanto jantávamos em silêncio. Fomos nos deitar. Beijei os lábios de minha companheira e adormeci rápido.

Sonhei que estava no meio de uma cidade que era mostrada por um dos canais estáticos de TV. São Paulo, minha terra natal. Estava com meus amigos andando para um restaurante, durante o dia. Todos vivos, felizes. Podia sentir até o cheiro da cidade novamente, os odores de carros passando, da garoa que cairia no fim da tarde, o som das buzinas, de jornaleiros, de passos acelerados de pessoas apressadas. Minha São Paulo. Mas, de repente, o caos surgia, a pele das pessoas enegrecendo enquanto elas corriam e caíam no chão. Era o MAD.

Acordei, suando frio. Sentia um frio na barriga, um mal pressentimento. Levantei-me da cama, percebendo que Eliene já havia acordado. Saí do quarto e direcionei-me para a cozinha.

Parei na frente da porta, sentindo o coração subir à boca. Minha mãe estava enegrecida e caída no chão. Minha namorada me olhou, de dentro da cozinha. Sua mão estava negra. Eu podia ver o preto subindo por seu braço lentamente, seu olhar cheio de medo.

– Amor, vá... - Sim, daria tempo de me salvar, não havia me aproximado por muito tempo. Atrás dela, vi que a janela estava aberta. O raciocínio me veio rápido: provavelmente uma nova mutação havia se desenvolvido. Resistência prolongada no ar ou transmissão por animais voadores. Olhei para ela, lágrimas vindo. Ouvi ela repetir: - Vá logo, meu amor, você pode sobreviver... - Ela estava desesperada.

Eu também estava. Por ela.

– Sobreviver para quê? Sem você? Eliene, só não fugi como meu pai porque eu sou feliz com você. Uma vez sem isso, eu morreria de desgosto. - Andei até ela e a abracei. - Prefiro morrer logo com você a viver longamente sem. Eu te amo, Eliene, não viveria sem você.

Beijo-a. Ela estava atônita, mas logo percebi o seu sorriso e começar a retribuir, me abraçando. Assim que terminou, senti ela pousar a cabeça em meu ombro. Também senti a dormência começar na minha mão.

– Louco... Sou a mais afortunada... mas isso não te deixa menos louco...

Ri, dando-lhe um selinho. Sorri para ela, apaixonado, bobo e desejoso.

– Bem... Acho que temos que aproveitar enquanto podemos, né?

Primeiro enterramos minha mãe. Depois fomos nos aproveitar. Quando o sol estava se pondo, deitamos no sofá, cansados. Nossos corpos completamente enegrecidos, sem muita sensibilidade. Estávamos abraçados. Ouvi ela me perguntar, sussurrando em meu ouvido:

– Amor... será que existe mesmo céu...?

– Não sei, talvez seja outra coisa, algum outro lugar... - Disse, sentindo angústia. E felicidade.

– Seja onde for... Quero te ver lá.

Beijamo-nos. Era estranho, lábios mortos. Fechamos os olhos, para nunca mais abrir.


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Notas finais do capítulo

Betado por Andreina Silva.



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