O Caminho de Sandren - Livro 1 (Caminhada) escrita por Aviatorman


Capítulo 9
O ferreiro selvagem




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09

– Já terminamos? – o ferreiro se dirigia ao seu ajudante, enquanto fazia o ajuste final no anel de proteção em torno do pescoço de Midler. Ele então se ergueu, ultrapassando em muito a altura do discípulo, como se este não passasse de uma pequena criança.

– Em um momento, mestre Tallamir – Alenthor terminava de fechar a última fivela que mantinha uma espessa guarda de metal firmemente presa à perna de Midler – Pronto, agora está terminado. Como estão as amarras, meu amigo? Elas devem estar bem justas e firmes, mas não apertadas demais, para que não o atrapalhem.

Midler ergueu os braços, em um amplo movimento, enquanto observava as delgadas lâminas presas a eles deslizarem suavemente sob as grandes placas que lhe cobriam os ombros. Ele podia sentir o peso da longa túnica de uma espessa cota-de-malha que o revestia por completo, sob as peças da pesada armadura, mas esta se dobrava tão facilmente quando ele se movia que parecia ser feita de um fino tecido.

– Nunca usei uma armadura antes, mestre Tallamir, mas não esperava por algo assim. Acreditava que me sentiria muito mais sobrecarregado e desconfortável do que estou.

– É o que deveria esperar do trabalho de um simples ferreiro, meu discípulo, mas não de uma obra que nasceu pelas habilidosas mãos do maior entre eles – sentado em um pequeno banco, Laertes colocou sua caneca na mesa ao lado e se inclinou para trás com um agradável sorriso no rosto, apoiando as costas em uma das colunas da grande sala onde estavam. Por trás das grossas paredes, podia-se ouvir o abafado crepitar da madeira a arder e o agudo e repetido som do violento encontro do martelo com o malho. Apesar das grandes forjas estarem bem próximas, seu calor não conseguia chegar até onde estavam e o ar ali se mantinha extraordinariamente leve e agradável, quase primaveril, apesar do inverno que se aproximava. Uma grande mesa preenchia o centro da sala, de frente para uma larga estante com inúmeros livros e uma pequena escrivaninha ao lado desta, onde muitas folhas, tinteiros, penas e suportes para velas cobertos por uma envelhecida cera derretida eram visíveis. Do outro lado, diversas armas de vários tipos estavam penduradas cuidadosamente, formando um intrincado e belo desenho. Em frente destas, três suportes para armaduras, um deles agora vazio, pareciam-se com enormes soldados em seu serviço de guarda sem fim. Ao fundo, ao lado da porta que levava aos aposentos do mestre ferreiro, havia uma estátua de um homem pequeno, magro e muito envelhecido, feita de um metal escuro, com um longo manto de fino tecido claro a lhe cobrir todo o corpo desde os ombros. Ela parecia olhar serenamente para a desgastada escrivaninha, em eterna vigília. Em todos os cantos havia largos jarros de argila com pequenas árvores, de onde brotavam delicadas flores douradas, estranhas a esta terra, mas que traziam mais do que simples beleza àquele cômodo. Traziam uma leveza que não se esperaria encontrar na casa de um ferreiro – Não há magia ou sorte em ação aqui, meu jovem, apenas o trabalho cuidadoso e incomparável de um mestre, ao qual sou muito grato.

– Não há o que agradecer – limitou-se a responder Tallamir, enquanto limpava e guardava suas ferramentas, sem se virar para Laertes.

Midler se voltou para observar mais atentamente o grande ferreiro, enquanto sentia as manoplas em suas mãos moverem-se quase tão suavemente quanto delgadas luvas. Tallamir era realmente enorme, o maior e mais forte homem que Midler já vira. Seu rosto era marcado por linhas duras e castigadas, dando-lhe um semblante sempre severo e ameaçador. Os muitos anos de trabalho pesado, sob o calor das forjas, haviam deixado marcas profundas em seu corpo como testemunhas de sua passagem, fazendo com que aparentasse possuir mais anos do que realmente deveria ter, apesar de Midler não conseguir encontrar nele nenhum sinal de fraqueza ou declínio. Seu porte era intimidador, assim como a voz, forte e grave, que não se alterava em nenhum momento, mesmo quando se dirigia respeitosamente a Laertes. O cabelo era da mesma cor do cobre, descendo longamente por suas costas, presos em uma única grande mecha. Eram do mesmo tom de uma barba solta e muito bem cortada, que lhe alongava o rosto. O peito tinha a largura de dois homens adultos e era coberto por tantos pelos quanto sua cabeça, assim como os braços, largos e firmes como pesados barris. De um grande cinturão que usava pendiam muitas ferramentas que pareciam ser frágeis demais para as imensas mãos que as manuseavam com tanta perícia. Mas o que mais chamava a atenção do discípulo eram os olhos. Estavam sempre parcialmente fechados, aparentando serem pequenos demais para o tamanho do gigante, mas seu olhar era muito mais penetrante que qualquer flecha poderia ser, mal contendo uma força ainda maior que o próprio ferreiro, selvagem e brutal, que Midler esperava nunca ver liberada. Tallamir era um homem que gesticulava pouco e falava menos ainda, mas cujos olhos diziam muito, quase sempre mais do que se gostaria de ouvir.

Midler deu alguns passos, sentindo a pesada armadura puxá-lo com força para baixo, mas sem machucá-lo. Sentia como se pudesse usá-la até a exaustão, cansando-se muito antes de sentir dor. Com esforço, conseguia mover-se quase tão livremente quanto se não a estivesse usando, apesar de suas pernas lembrarem-lhe a todo instante do pesado fardo que carregava. Laertes observava o discípulo com atenção, bebendo lentamente de um forte vinho que Tallamir lhe oferecera. Midler se movia com desenvoltura, parecendo ter se adaptado rapidamente ao peso que carregava, como se houvesse nascido com ele sobre os ombros, mas seu mentor não estava admirado, pois já havia presenciado esta mesma naturalidade quando Télan era ainda mais jovem que Midler, mas Laertes sabia que ele não era como o pai. Sua impaciência tinha de ser domada, a fé em si mesmo, fortalecida a cada dia. O caminho até Sandren ainda era longo o suficiente para que o discípulo se acostumasse com a armadura, mas o velho mentor sabia que alguma coisa sombria se ocultava nos gelados ventos dos últimos dias, como o cheiro da fumaça que não se pode ver, mas cujo fogo queima inclemente mesmo assim. Havia algo ainda velado aos seus olhos e ouvidos, algo que mesmo o velho peregrino não conseguia precisar, mas que o deixava inquieto e apreensivo, como apenas a certeza do destino poderia fazer. Seus instintos lhe diziam que mesmo as habilidades que seu discípulo ainda não aprendera se tornariam necessárias, muito antes dele chegar a Torre de Marfim, e isto o alarmava. Por mais de uma vez, na longa noite insone na casa de Malent, temeu pela estrada que o jovem teria de trilhar para realizar seu sonho e pensou em persuadi-lo, mas, quando olhava para Midler e encontrava em seu rosto tanta avidez e perseverança, seus temores cediam lugar a uma tímida esperança.

– Não viemos até aqui apenas para vê-lo caminhar com uma simples vestimenta de passeio, meu jovem. Para mover-se adequadamente dentro de uma armadura, deverá exigir muito mais dela e de si mesmo. Lembre-se dos atributos que terá de desenvolver para isto: hábito, paciência e treinamento. O primeiro irá conseguir rapidamente nos muitos dias ainda por vir. O segundo, bem, espero ainda estar vivo quando o adquirir. Quanto ao terceiro, deve começar o quanto antes – Laertes levantou-se e pegou uma espada de treino que repousava em uma mesa, arremessando-a para ele. O discípulo surpreendeu-se ao gira-la nas mãos, enquanto a experimentava. O metal escurecido possuía exatamente o mesmo peso e comprimento de sua espada, uma réplica perfeita que se adaptava facilmente em suas mãos – Pedi ao mestre ferreiro para forjá-la junto com sua armadura – Laertes parecia ler os pensamentos de Midler. Então, apontou para a parede onde as outras obras de Tallamir estavam expostas – Alenthor, pegue uma daquelas espadas e o ajude.

O jovem ferreiro prontamente atendeu ao comando do mentor e posicionou-se em frente a Midler, empunhando um escudo e uma bela espada de lâmina mais curta e grossa que a do discípulo. Ambos fizeram uma saudação cordial com as armas e tomaram posição, começando a investir timidamente contra o outro. Inicialmente, seus movimentos eram cuidadosos e aleatórios, enquanto exploravam o oponente, mas rapidamente se tornaram mais vigorosos, até estarem desferindo golpes com grande força e destreza. Midler movia-se mais lentamente do que estava acostumado, lutando contra o peso da armadura a cada ataque ou defesa, enquanto procurava se desviar dos golpes que sua espada não conseguia bloquear. Apesar de o discípulo ser um guerreiro mais experiente que o jovem ferreiro, não estava claro quem detinha a vantagem. Alenthor era mais forte e muito hábil no manuseio da espada, mas seu conhecimento de combate se limitava ao que aprendera nas forjas de mestre Tallamir com os muitos soldados que por lá passavam, enquanto Midler havia treinado exaustivamente durante toda a vida para isto. O discípulo há muito já empunhava uma espada como aquela como se fosse uma extensão do próprio braço, conhecendo intimamente seu peso, balanço e alcance, mas a armadura que estava usando constantemente o desequilibrava, tornando seus golpes lentos e desajeitados, sendo facilmente bloqueados pelo escudo de Alenthor. Os dois continuaram a se enfrentar por um longo tempo, sem que nenhum deles conseguisse sobrepujar o adversário. Midler sentia o suor a escorrer abundantemente pelo rosto e o cansaço começava a tomar conta de seus braços e pernas, enquanto via a lâmina de Alenthor aproximar-se cada vez mais de seu peito. Então, segurando o cabo com as duas mãos, girou-a em um grande círculo à frente do corpo, desferindo um violento golpe que arrancou a espada das mãos de Alenthor, fazendo-a se chocar ruidosamente contra a parede, enquanto o grito de seu esforço final ecoava alto pela sala.

Laertes havia permanecido em silêncio, observando atentamente os dois guerreiros a frente, enquanto percebia, com o canto dos olhos, o grande ferreiro ao seu lado se tornar cada vez mais inquieto, como um animal enjaulado, cruzando seguidamente os largos braços e passando a mão longamente pelo rosto e pela barba. Quanto o combate terminou, Laertes virou-se para Tallamir, apenas para encontrar um severo olhar inquisidor sobre si, a vir de muito acima, que ele logo compreendeu. O mentor acenou levemente com a cabeça, concordando com o silencioso pedido do ferreiro, ao que Tallamir ergueu com facilidade seu pesado martelo de combate, Avalanche, que repousava junto a uma coluna próxima, tão grande quanto uma alta cadeira. Seus muitos adornos, feitos de um metal branco como a neve, brilhavam fortemente sob a luz do sol que entrava pelas janelas, como pequenas joias. Com apenas dois largos passos, colocou-se ao lado de seu ofegante ajudante.

– Descanse. Os assuntos deste guerreiro são agora comigo.

Midler ergueu os olhos e esforçou-se para endireitar o corpo, curvado sob o cansaço e o peso da armadura, inspirando profundamente, enquanto procurava dentro de si por forças que não tinha certeza se poderia encontrar. Apenas a visão do grande ferreiro com seu martelo já seria suficiente para intimidar qualquer guerreiro, mas era dos pequenos olhos de Tallamir que parecia partir a maior ameaça. Ele procurou evitar aquele olhar, concentrando-se no imenso oponente que tinha a frente. Assim que ergueu sua arma, indicando que estava pronto, Tallamir girou Avalanche sobre a cabeça, descendo-o velozmente sobre o discípulo que se defendia, atingindo com violência a espada que Midler teve de segurar com todas as forças para não perder. Um segundo giro, tão veloz quanto o primeiro, atingiu-a novamente e a empurrou para ao lado, juntamente com o exausto braço que a segurava, deixando-o sem qualquer defesa. Para desviar-se de um novo ataque, Midler curvou subitamente o corpo para trás, preparando-se para atacar assim que o grande martelo passasse novamente sem encontrar o alvo, tentando frustrar o ataque do ferreiro. Para sua surpresa, em vez de girar novamente o martelo, Tallamir segurou-o com apenas um dos braços e o esticou na direção de Midler, quase displicentemente, abrindo completamente a guarda e ficando sem posição ou apoio para atacar, mas fez Avalanche empurrar pesadamente o peito do desequilibrado discípulo apenas o suficiente para que este caísse pesadamente para trás, ficando atordoado por um momento. Quando olhou para cima, viu o grande martelo descendo velozmente sobre ele, acabando por enterrar-se profundamente no chão ao lado de sua cabeça, quebrando com um estrondo as tábuas que o revestiam. Um incômodo silêncio se seguiu, determinando claramente a derrota do discípulo e o fim do combate, apenas alguns segundos após este ter se iniciado. Midler continuava caído e exausto, grato pela breve pausa que se apresentou, mas a grave voz de Tallamir, escapando com dificuldade por entre dentes cerrados, soava como um trovão a retumbar dentro de seus ouvidos, não permitindo que descansasse.

– Confie na armadura que está usando ou a tire! Levante-se!

Midler podia ver uma chama a arder intensamente nos olhos arregalados do gigante, uma chama de pura fúria incontida. Em nada lembrava agora o nobre e gentil homem que ele conhecera quando chegaram, a cumprimentar seu mentor em uma bela língua que o discípulo nunca ouvira, curvando-se tão respeitosamente quanto o mais ilustre dos nobres, em uma longa vênia. Ele não conseguia encontrar na ameaçadora figura do bárbaro a sua frente o menor reflexo daquela cordialidade ou da reserva do calado ferreiro. O que via agora era uma força indomável, selvagem, prestes a romper a frágil casca de temperança que se esforçava para contê-la.

O discípulo ergueu pesadamente o braço, esticando a mão na direção do ferreiro para que este o ajudasse a se levantar, mas Tallamir empurrou-a abruptamente para o lado, dando um passo para trás. Pegou a clara espada do discípulo da mesa e a jogou no chão ao seu lado, erguendo novamente o grande martelo sobre os ombros, pronto para atacar.

– Vamos, de pé! Levante-se, ou eu o atingirei onde está!

Midler girou o corpo e pegou sua espada, apoiou-se dolorosamente nela para erguer-se, tão devagar quanto o severo olhar de Tallamir permitia, procurando recuperar-se e não irritar ainda mais o gigante. Era grato por seus membros ainda lhe obedecerem, apesar de já não conseguir senti-los. A pesada respiração o fazia experimentar o mesmo calor que ardia nas forjas a queimar dentro do peito a cada inspiração. Midler esfregou a manopla no rosto, tentando sem sucesso afastar o abundante suor que o cobria, apenas para conseguir olhar para Tallamir. Não acreditava que poderia vencer o grande ferreiro mesmo se estivesse totalmente descansado e sem o peso de sua armadura, mas sabia que se não o enfrentasse sua fúria seria ainda maior. Inalando profundamente o agradável ar da sala, apesar de há muito já não perceber seu frescor, Midler ergueu preguiçosamente a espada, colocando-a em posição de combate, enquanto pensava no que faria, sem conseguir encontrar uma resposta. Tallamir havia observado atentamente o combate com Alenthor e já sabia como o discípulo lutava e se movia dentro daquela armadura, além de ser um guerreiro muito mais forte e experiente que seu ajudante. Para enfrentá-lo, Midler precisaria de mais do que perícia, teria de surpreender o gigante.

Assim que adotou uma posição defensiva, segurando quase displicentemente a espada, o discípulo viu Tallamir começar a girar impacientemente seu grande martelo sobre a cabeça, preparando-se para atacar. Midler então investiu contra o gigante, sem qualquer aviso ou cautela, com a espada abaixada e seu lado esquerdo totalmente desprotegido, deixando claro o cansaço que tomava seu corpo. Parecia que ele apenas avançava contra Tallamir, quase sem forças para realmente atacá-lo. Antes que pudesse colocar o ferreiro ao alcance de sua arma, Midler viu o grande martelo girar no ar, vindo velozmente ao seu encontro, mas não se deteve, limitando-se a erguer o ombro esquerdo e dobrar o braço, colocando-o junto ao corpo, como um pequeno escudo, preparando-se para receber o duro golpe, ao invés de apenas desviar-se como o ferreiro esperava. Percebendo que atingiria o discípulo com toda a força, Tallamir tentou conter a pesada arma, mas nem mesmo seus imensos braços podiam mais domá-la. Com um grande estrondo, Avalanche chocou-se violentamente contra a lateral de Midler, fazendo os pés do discípulo se arrastarem por mais de um palmo pelo chão, quase o arremessando pelo ar, não fosse pelo peso de sua armadura, enquanto ele se esforçava para manter-se de pé.

O mesmo silêncio de antes se fez presente, perturbado apenas pela respiração dos dois guerreiros. Midler estava ofegante, tentando sentir em meio a dor que fazia seu braço latejar, se ele havia sido quebrado, enquanto Tallamir respirava de forma pesada e impaciente, como um grande touro. O ferreiro ainda mantinha o martelo pressionado firmemente contra o ombro de Midler, enquanto lhe dirigia um olhar de fúria e desapontamento. Quase era possível ouvir as ásperas palavras a galgarem velozmente pela garganta do enfurecido gigante, procurando por explodir em liberdade na grave voz, mas uma leve pressão entre as costelas, logo abaixo do braço esquerdo, as deteve. Girando lentamente a cabeça, ele viu a afiada espada de Midler espetada contra seu tronco, reta como uma flecha prestes a atravessá-lo de um lado a outro. Apenas a firme mão e a destreza do discípulo a haviam impedido de cortar facilmente a pele e a carne sob o colete do ferreiro. Tallamir percebeu então que Midler havia se deixado atingir, atraindo Avalanche para onde queria, para onde conseguiria se proteger melhor. Seu braço poderia ter se quebrado sob o peso do grande martelo, mas a espada teria inevitavelmente tirado a vida de seu adversário. O ferreiro olhou novamente para Midler, baixando lentamente Avalanche até a pesada cabeça repousar no chão. Compreendeu então que havia mais no jovem do que podia supor ou que seus olhos podiam enxergar. Ele trazia consigo mais do que apenas força e destreza, mas também inteligência e astúcia, qualidades raras em um guerreiro. Possuía uma determinação e uma tenacidade que Tallamir só havia visto em poucos de seu povo. A inexperiência em combate era compensada com habilidade, além de aprender rapidamente no calor da batalha. O ferreiro havia duvidado que Midler fosse realmente digno dos elogios que Laertes havia lhe feito, na última vez que esteve em Caendlia, mas o jovem havia provado ser muito mais do que isso, muito mais do que uma simples promessa.

Tallamir deu um passo para trás e cruzou o martelo a frente do peito, baixando a cabeça em um formal cumprimento. O discípulo não conseguia mais encontrar a fúria selvagem de antes naqueles pequenos olhos, mas algo que lhe pareceu oscilar entre a surpresa e o respeito, enquanto Midler o saudava dolorosamente à forma dos homens de Sandren, com a mão esquerda a cobrir a outra, junto ao cinturão, empunhando firmemente a espada a frente do rosto, com sua fronte a tocar levemente a fina lâmina, quando baixou a cabeça, fechando os olhos por um momento. Tallamir se virou e cumprimentou Laertes com um sutil movimento de cabeça e olhou uma última vez para Midler, antes de deixar a sala sem nada dizer, através de uma larga porta que conduzia a um extenso galpão aberto para a rua, de onde se erguia a grande chaminé sobre as forjas. Alenthor aproximou-se de Laertes e pediu que o desculpasse, mas deveria acompanhar o grande ferreiro e reassumir seus trabalhos na oficina. Após despedir-se respeitosamente do velho mentor, olhou longamente para Midler, que se esforçava sem muito sucesso para não aparentar o quão exausto e dolorido estava. Então, com um largo sorriso no rosto, o jovem ferreiro curvou-se em uma longa saudação e seguiu Tallamir.

– Já pode desmoronar, meu teimoso jovem – Laertes aproximou-se com um sorriso do discípulo, alcançando-lhe um pequeno e robusto banco em que Midler se sentou, quase desabando sobre ele, deixando-se finalmente vencer pelo cansaço – Não se preocupe. Com o passar do tempo, as dores e o peso desta armadura desaparecerão por completo e se sentirá quase despido quando não a tiver sobre os ombros. O que me recorda, como está seu braço? Vejo que não o quebrou, mas foi um duro golpe que recebeu, mesmo que o estivesse aguardando.

– Não se incomode com isto, meu mentor, por favor. Ele não está me incomodando. Na verdade, mal o sinto neste momento – Midler sabia que Laertes podia aliviar facilmente a dor que latejava em seu braço, mas esta o lembrava da lição aprendida há pouco e, assim como ao resto da armadura, acreditava que também deveria aprender a carregar este fardo e se acostumar com ele, se queria realmente se tornar digno de Sandren.

– Está bem, está bem. Como quiser, bravo guerreiro, mas servir a Baltur não significa sofrer sem necessidade. Quanto ao mestre ferreiro, não deixe que seu silêncio o perturbe. Ele é um nobre homem e um bom amigo, mas vê quase nenhuma utilidade nas palavras, usando-as com demasiada parcimônia, sendo muito melhor ferreiro que orador, mas sei que você muito o impressionou, Midler, por mais motivos do que imagina.

– Tenho mais medo agora de suas palavras do que de seu silêncio – o sorriso que trazia nova vida ao abatido rosto de Midler era fruto do alívio que sentia, não apenas por poder finalmente descansar, mas pelo que viu nos olhos de Tallamir quando ele deixou a sala. Havia algo novo neles, uma aceitação, uma consideração que somente poderia existir de um grande guerreiro para com outro companheiro de armas. Era o mesmo olhar que o ferreiro havia dirigido a Laertes quando chegaram a sua casa e, para Midler, não poderia haver melhor saudação ou elogio.

– Tallamir é um homem fascinante, Midler, e ele agora o respeita. Não tome isto como pouca coisa, pois ele pode enxergar o que até muitos paladinos não conseguem. Ele não pode ser enganado pelas armadilhas e dissimulações dos homens, por mais astutos que estes sejam. É algo inato, quase instintivo. Se prestar bastante atenção e conseguir deixar conceitos equivocados de lado, verá que mesmo nas poucas palavras duras que escolhe, palavras que parecem pertencer a um selvagem inculto, há muito mais sabedoria do que em muitos dos livros da biblioteca desta cidade. “Palavras não aquecem forjas ou moldam o ferro”, como ele costuma dizer em nossas curtas conversas. Mas não se deixe enganar, Midler. Não é à intolerância com o que dizem os eruditos ou os eloquentes a que ele se refere, mas à efemeridade e a inconstância de suas palavras, que facilmente se perdem sob as marés da mudança. Seu próprio significado se altera se forem ditas sob a luz do sol ou sob o manto da lua, se forem bradadas aos quatro ventos ou sussurradas em segredo. Tallamir acredita apenas no legado duradouro que os homens podem deixar aos que vierem depois deles, em atos, obras e escrituras.

Midler olhava com interesse para o mentor. Começava a entender o fascínio que Tallamir exercia sobre Laertes. Eles eram tão diferentes quanto semelhantes e o discípulo sentia-se feliz por saber que ainda existiam homens como o mestre ferreiro fora dos muros de Sandren. Apesar de conhecer todo o prestígio que o velho mentor possuía junto aos maiores entre os paladinos, Midler surpreendeu-se ao achar graça, tentando imaginar, naquela longa amizade, quem seria considerado o professor e quem seria o aluno.

– Deixe-me contar uma estória sobre este legado, se não estiver cansado demais para ouvi-la – Laertes havia se levantado e pego uma grande jarra de água que estava sobre a mesa e serviu uma taça para Midler, com tanta naturalidade que pareceu ao discípulo que seus lugares haviam sido trocados por um momento, o que lhe causou certo desconforto. Após sentar-se ao seu lado, Laertes continuou – Lembra-se do que lhe falei sobre Padul, o escravo tradutor? Pois bem, quando o dia da libertação de Tallamir chegou, seu amigo há muito já havia envelhecido além de qualquer utilidade para seu senhor, mas Tuabi Sywandi nunca permitiu que ele fosse abandonado à própria sorte, como é o costume das caravanas. O velho escravo não poderia mais sobreviver sozinho, fraco e debilitado como estava, mesmo que seu senhor, contrariando suas próprias leis e despertando a desconfiança de seus homens, o deixasse livre e abastado com muito ouro e joias, como bem sei que era de sua vontade. Mas Padul também não conseguiria fincar raízes em nenhum outro lugar, pois havia sido comprado ainda muito jovem, quando o pai de seu atual senhor era o mestre daquela caravana e ele não mais se lembrava de sua vida antes disso. Ele ainda era um escravo, é verdade, mas passou a ser cuidado e alimentado nas tendas dos filhos do Tuabi, como se fosse um deles. Vivia os últimos dias entre lençóis de seda e almofadas de veludo, comendo e bebendo o melhor que a caravana tinha a oferecer, mas não era feliz. Não queria encontrar a morte como um escravo, acreditando que assim sua alma estaria condenada à eterna servidão, não podendo ser liberta de um corpo que nunca fora livre, mas não havia nada que pudesse fazer e, com o passar dos meses, aceitou o que o destino lhe reservava, assim como todos os escravos faziam. Todos, menos Tallamir, que partilhava do mesmo medo que habitava o coração de seu amigo e que o fez trabalhar sem descanso, até conseguir comprar sua liberdade.

Midler olhava curioso para Laertes, enquanto ele fazia uma pausa para beber. Seu mentor era um exímio narrador, capaz de tornar o mais tedioso dos contos em uma fábula épica, mas sua voz, sempre forte e constante, alterava-se enquanto lhe contava aquela história, exaltando-se quando falava das atitudes do Tuabi e tornando-se triste e pesada, quase inaudível, quando narrava a coragem de Tallamir. Aquele não era apenas mais um conto, como tantos outros que o velho mentor já havia narrado para o discípulo. Havia algo diferente agora, mas não era em relação ao que contava, mas a algo que estava distante daquelas palavras, algo que se escondia atrás delas, no coração de Laertes.

– Não, Tallamir não poderia aceitar que fosse este o final de sua estrada. Não enquanto tivesse força e vontade para tomar as rédeas de sua vida e fazer o que fosse necessário para mudar seu destino e daqueles que lhe importam – Laertes continuou, com o olhar ainda mais distante, parecendo conversar consigo mesmo ou com alguém que não estava ali, como se houvesse se esquecido por completo do discípulo ao seu lado – Durante a festa que o Tuabi Sywandi fez para a despedida de seu melhor ferreiro, Tallamir surpreendeu seu antigo senhor, ao lhe oferecer uma chance de tê-lo de volta aos seus serviços, se assim o Tuabi desejasse. Para isto, o melhor guerreiro da caravana deveria enfrentá-lo e se uma única gota de sangue do ferreiro fosse derramada, ele se tornaria novamente seu escravo até o fim de seus dias. “Você agora é um homem livre, Tallamir, senhor de seu destino! O que pode desejar de tão precioso para arriscar seu maior bem? Diga-me, e apesar de querê-lo de volta ao meu lado mais do que tudo, será seu”, foi a resposta que recebeu. “O que quero não pode me dar, grande Tuabi, pois não lhe pertence, apesar de ter estado em sua posse por tempo demais. Desejo a liberdade de Padul, para que seu espírito possa voar livre, quando seu corpo se juntar a terra”. O senhor da caravana ficou ainda mais surpreso, mas insistiu em sua oferta, dizendo-lhe que, se Tallamir quisesse, Padul seria entregue a ele, não mais como um escravo, mas como um homem livre, uma justa recompensa pelos seus muitos anos de serviço leal, mas o ferreiro não aceitou. “Não desejo um presente ou um escravo, grande Tuabi, pois não poderei libertá-lo. A liberdade de um homem não lhe pode ser dada, tem de ser conquistada, arrancada das mãos que seguram seus grilhões” – neste momento, a voz de Laertes pareceu ficar ainda mais distante e melancólica, quase um sussurro – Sim, meu querido Midler, o selvagem e inculto bárbaro arriscou seus dias de liberdade, conquistados tão arduamente depois de tantos anos, apenas para salvar alguém que não tinha muitos dias mais, sem saber o que aconteceria e mesmo assim não hesitou ou temeu.

Midler levou a mão em direção ao ombro de Laertes, pensando em interrompê-lo, temendo que sua tristeza se aprofundasse ainda mais, mas se deteve. De alguma forma, sentia que seu mentor queria e precisava continuar, mas não conseguia imaginar onde poderia ou queria chegar. Recolhendo o braço com um abafado suspiro, aguardou em silêncio. Após uma breve pausa, em que Laertes manteve os olhos a divagar pelo chão da sala, parecendo procurar por algo na madeira manchada em que pisava, sua voz voltou a ser ouvida, desta vez em um tom muito próximo daquele que o discípulo sempre admirou.

– Tuabi Sywandi ordenou então que seu sobrinho, Iadhen, o Tigre de Khytallo, como era chamado pelo grande desenho que tomava toda a extensão de suas largas costas, um forte guerreiro de pele dourada, quase tão grande quanto o próprio Tallamir, se erguesse e enfrentasse o ferreiro. O khytallês havia sido instruído por diversos professores em muitas das cidades em que a caravana estivera, tendo se tornado um mestre das mortais espadas curvas de Khytallo. “Um pequeno corte, uma gota de sangue, é tudo que desejo e nada mais, querido Iadhen”, disse-lhe seu tio, enquanto o guerreiro pegava sua imponente espada, Kanaih, presente do próprio Tuabi para seu melhor espadachim, feita de uma larga chapa dourada de gume prateado. Iadhen a fazia girar com grande habilidade, enquanto o reflexo das tochas dançava em sua lâmina, em meio aos desenhos de grandes garras que a enfeitavam, que pareciam ganhar vida em suas mãos. Tallamir então desenrolou um pesado embrulho que havia trazido consigo, um grande martelo de combate chamado Avalanche, terminado havia poucos dias, e o apresentou a todos. Sim, é o mesmo martelo que você conheceu aqui hoje e cujo peso deve ainda estar bem vivo em sua memória ou pelo menos em seu ombro – Midler era grato pela leveza das últimas palavras, mas esta não perdurou na voz de Laertes – Bem, foi assim então, empunhando sua arma e um largo escudo, que ele se colocou de frente para o guerreiro khytallês, saudando-o. Pelo que me foi contado, por muitos que lá estiveram, nem mesmo os deuses da guerra poderiam ter realizado um espetáculo ao mesmo tempo tão belo e assustador, enquanto os dois titãs se digladiavam sem fim, ofuscando todos os contos de grandes batalhas que qualquer um dos presentes havia narrado, ouvido ou inventado. Ninguém ousava fazer qualquer ruído, acredito que até pararam de respirar por mais tempo do que seria possível, e tudo o que se ouvia era o choque do metal e o clamor do esforço que ambos faziam, tentando sobrepujar seu oponente. Por mais que se esforçasse, Tallamir não conseguia atingir Iadhen, que era muito mais ágil que ele e escapava com facilidade de suas investidas. Os golpes do khytallês eram rápidos e precisos, consumindo as forças de seu adversário e despedaçando o escudo, até que, em um giro veloz, ele fez avalanche rodar sem controle nas mãos de Tallamir e cair pesadamente ao chão, desarmando-o. Encurralado e sem opções, o ferreiro investiu com o que restava de sua proteção contra a espada de Iadhen, incerto se sua única defesa iria aguentar, mas ele é capaz de confiar sua própria vida naquilo que nasce de suas mãos. Com o impacto, Kanaih ficou presa por um breve momento, mas, para Tallamir, foi o suficiente. Puxando o escudo com violência, ele trouxe o guerreiro para perto de si, agarrando seu pescoço e erguendo-o no ar, como se este fosse um mero boneco. “Desista, irmão. Acabou”, ele gritou para Iadhen, mas o khytallês não lhe deu ouvidos. Reunindo suas forças, ele conseguiu soltar a espada, despedaçando o que ainda restava do escudo que a prendia, e ergueu-a alta no ar, pronto para atacar. Não havia nada que Tallamir pudesse fazer para se defender, então ele apertou com toda a força o pescoço de Iadhen, que se partiu com um estalo seco. Com um gemido, o corpo do khytallês estremeceu e se aquietou, como tudo mais na grande tenda. O único som que se ouviu foi o do cair de Kanaih, quando a hábil mão do Tigre de Khytallo se abriu pela última vez.

Laertes fez uma pausa para beber e ficou em silêncio por algum tempo, com o olhar distante, parecendo meditar sobre as próprias palavras. Abriu sutilmente a boca, para falar algo, mas se deteve. Midler cerrou os punhos, esforçando-se para sufocar o ímpeto de questionar o velho mentor sobre o que tanto o atormentava. Angustiado, esperou que ele continuasse.

– Tallamir colocou suavemente o corpo do bravo guerreiro no chão e respeitosamente o saudou, despedindo-se à sua maneira. Então, olhou com pesar para o Tuabi, encontrando um misto de raiva e tristeza nos olhos de seu antigo captor. Pegando seu martelo, deixou a grande tenda sem nada dizer. Na manhã seguinte, antes do raiar do sol, ele partiu com suas ferramentas, alguns mantimentos e uma pequena e confortável carroça, onde Padul repousava. Após uma longa e silenciosa viagem, ele o trouxe para cá, onde veio a morrer em paz, muitos meses depois. Seu corpo foi queimado em uma alta pira, como é o costume dos homens do longínquo norte e sua alma agora voa por terras ainda mais distantes, livre e feliz. Aqui restou apenas a lembrança e a homenagem de um grande amigo – Laertes apontou para a estátua do outro lado da sala e soltou um longo suspiro, virando-se para Midler. Estava visivelmente aliviado por haver terminado aquela estória, mas não satisfeito. Seu discípulo podia ver em seus olhos que havia algo ainda por dizer.

– Por que está me contando isto, meu mentor? Diga-me o que realmente deseja... – Midler calou-se, quase não acreditando na ousadia de suas próprias palavras, mas não pôde domar sua língua a tempo. Não conseguia compreender o que se passava dentro do coração de Laertes. Queria dizer-lhe que a história que ouviu deveria preencher a todos de orgulho e coragem com seu exemplo, e não com a vergonha e o desespero que via nos olhos dele, mas se conteve. Apesar da crescente afeição que sentiam, ele ainda era um discípulo de Sandren e Laertes seu mentor.

Dois cansados olhos se encontraram longamente com os de Midler, tremendo sutilmente, no mesmo compasso de um angustiado coração. Havia algo a lhe dizer sim, mas ele não podia. Não tinha este direito. Ao observar atentamente o jovem homem que tinha a frente, Laertes podia ver coragem, firmeza e bondade, mas, acima de tudo, tantos potenciais ainda por se realizar e sonhos por acontecer. Seu discípulo poderia se tornar o maior entre todos os paladinos, assim como seu maior fracasso, mas ele sabia que não lhe cabia mais esta decisão, nem poderia passar seu temor adiante. Midler não deveria saber de suas inquietações e incertezas. Precisava concentrar-se no caminho que tinha a frente, na longa e difícil jornada que ainda faria. E havia ainda outro que iria depender desta mesma determinação.

– Meu querido Midler! Não deve se preocupar com nada, a não ser com o que tento lhe ensinar, se há ainda alguma coisa a aprender com este velho, e não com o que não foi dito. Lembre-se das doutrinas de Baltur: não suponha, saiba; não duvide, acredite; não tenha suspeitas, mas certezas. Estas são as lições que lhe serão cobradas quando chegar a Sandren e for colocado sob a responsabilidade de Lorde Mellanos.

– Mas aprendi com o maior dos mentores que também devo prestar atenção ao que os ouvidos não escutam e os lábios não pronunciam, pois a verdade ou o que se quer dizer pode facilmente esconder-se atrás do que foi dito.

Laertes foi pego de surpresa pelas palavras de Midler e não pôde evitar que um largo sorriso se formasse em seu rosto, sentindo o coração saltar alegremente no peito, repleto de orgulho, esquecendo-se por um momento dos temores que sentia, enquanto se esforçava para que o discípulo não visse seus olhos a se umedecerem.

– Chega, por Baltur, é suficiente! – Laertes se levantou rapidamente, seus gestos exagerados e o tom brincalhão de suas palavras tentando tranquilizar Midler – Não posso suportar receber tantas lições de um discípulo e ainda poder me considerar seu mentor, por tudo que é mais sagrado! É humilhante demais. Vá! Vá até Alenthor, para que ele lhe mostre como deve retirar este peso dos ombros, pois não pense que serei eu a lhe servir como escudeiro quando deixarmos esta cidade. Agora me deixe a sós, antes que eu não consiga nem mais colocar meus olhos sobre você sem sentir vergonha!

Midler hesitou por um momento, consciente que Laertes apenas tentava esquivar-se de sua pergunta, mas devia acatar sua vontade, por respeito e por desconhecer suas razões. Levantou-se e, com uma formal despedida, de um discípulo para um mentor, deixou a sala. Laertes então se sentou em sua cadeira e permaneceu assim, sozinho, por um longo tempo, com uma caneca já há muito vazia em suas mãos. Sua mente vagava por lugares próximos e distantes por onde caminhara nos dias que já se foram. Apesar de ainda sentir, por vezes, o mesmo temor de antes, fruto do que sabia que não poderia mais evitar, sua alma estava mais leve, não por resignação, mas por alívio. Sentia-se pleno pela longa estrada que percorrera e pelas firmes pegadas que nela deixou. Ao olhar para frente, sabia que, se o caminho que nascia sob os pés não o conduziria para onde desejava, isto não o enchia mais de angústia ou pesar, mas de esperança. Foi com este espírito que Tallamir o encontrou, vindo das forjas para banhar-se antes de se recolher. O dia já havia se perdido no oeste, sem que Laertes houvesse percebido sua passagem. Ao olhar para o velho amigo, o ferreiro se deteve, mas nada disse, apenas se sentou do outro lado da mesa, em sua alta cadeira, e aguardou pacientemente, puxando uma das canecas de água para si.

– Partiremos pela manhã, na primeira hora de luz – Laertes finalmente quebrou o silêncio, após longos minutos – Se puder, gostaria que dispensasse Alenthor de suas obrigações por alguns dias, meu amigo, para que ele nos acompanhe até Anthara. Ele e Midler estão a se tornar grandes amigos e acredito que meu discípulo poderá aprender muito em sua companhia. Também sinto que ambos precisarão muito um do outro, nos tempos por vir.

Tallamir respondeu com um leve movimento de cabeça, aceitando o pedido de seu amigo, e o silêncio voltou a se fazer presente, como era comum quando conversavam. Após um longo gole, que terminou por secar completamente sua grande caneca, o ferreiro se dirigiu a Laertes, na áspera língua dos homens do norte, que apenas os dois em toda Caendlia conheciam.

– Por que acredita que não voltaremos a nos ver, Driann? – poucos conheciam o primeiro nome de Laertes e menos ainda possuíam a intimidade para chamá-lo assim.

– Por que diz isto? – Laertes surpreendeu-se com aquela pergunta. Mesmo conhecendo como ninguém seu dom, seu instinto para conhecer a alma humana, não esperava que Tallamir pudesse perceber o que se passava dentro dele.

– Desde que chegou você está se despedindo, tanto de mim quanto de Alenthor. Ele é um homem digno e capaz, Driann, e lhe tem em grande estima. Não merece ser abandonado assim.

– Com quem crê que está falando, filho de Tallaros? Não permitirei que nem mesmo você faça tal juízo de mim! – Laertes levantou-se de um ímpeto, esmurrando com força a mesa e fazendo com que a grande jarra tombasse, derramando o líquido em seu interior, mas Tallamir se manteve impassível, a olhar diretamente para os olhos do mentor. Após um breve instante, as duras linhas no rosto de Laertes se dissolveram, como a geada sob o sol da manhã, e o mentor se sentou, com um longo suspiro a lhe escapar – Há muito anos que meu destino me persegue, meu amigo, e tenho sempre dele me esquivado, enquanto acreditei que minha jornada não estava completa, mas sinto que esta decisão não está mais em minhas mãos, pois em breve terei de confrontá-lo, mesmo tendo tanto ainda por fazer, e não sei o que irá acontecer.

– O que a pequena lhe disse? – as feições de Tallamir não se alteravam em momento algum, assim como sua voz.

– Lydis não tem domínio sobre aquilo que vê ou ouve e não pode explicar o que ela mesma não compreende. Não pedi que o fizesse, pois não quero que sofra com o que poderia ver. Apesar de possuir um dom quase divino e de ser mais velha que você, meu amigo, ela ainda é apenas uma criança, que prezo como se fosse minha.

– Você sempre acreditou que o próprio sol deixaria de nascer, se ela assim o dissesse, – insistiu Tallamir, recostando-se em sua cadeira – mas nunca o vi assim. Se não pode evitar a tempestade, por que temer o trovão?

– Durante esta madrugada, – Laertes olhou desconsolado para seu amigo, sabendo que não era possível esconder nada de Tallamir – na varanda de sua casa, ela se virou para mim, olhando para dentro de minha alma, não por minha vontade, mas dominada por um medo que não conseguiu controlar. Ela havia lido em meus olhos que eu não a veria novamente e desejava saber por que eu a abandonaria, assim como você crê que eu deixarei Alenthor – Laertes deixou escapar um longo suspiro antes de continuar – Ela depois sofreu e chorou, amaldiçoando seu dom e sua precipitação, mas não pude repreendê-la, pois sei que fora seu amor que a impulsionara. Muito me foi dito então, sobre mim, meu discípulo e terras distantes daqui, mas seu significado não está totalmente claro em minha mente. Sei apenas que o caminho de Midler o leva para o norte, em direção a Sandren, mas será mais longo, sinuoso e difícil do que o foi para qualquer outro discípulo antes dele, e não estamos destinados a cruzarmos juntos a trilha das montanhas.

Tallamir pegou um grande odre que estava pendurado na cadeira ao seu lado e encheu duas canecas com o vinho de seu interior, o mesmo que Laertes bebera mais cedo, passando uma para o velho mentor, sem nada dizer.

– Sei que não acredita nas palavras de Lydis, Tallamir, e hoje, mais do que nunca, gostaria de ser como você, em mais aspectos do que imagina, mas não sou, nem nunca serei.

– Sou um ferreiro, Driann. Não acredito naquilo que não posso moldar ou modificar. Respeito a visão dos Primogênitos, mas não me interesso por presságios ou revelações. É com aqueles que estão próximos que me preocupo.

– Sua preocupação por Alenthor é justa e estimada, mas não devida. Nunca deixaria de cumprir uma promessa feita a Malent e Allyna, não importando as circunstâncias. Fique tranquilo e tenha certeza que Sandren não irá abandonar tão talentoso aprendiz, mesmo não sendo eu quem o guiará na estrada por vir.

– E o seu atual discípulo? É corajoso e ponderado. Segue seus passos sem questionar ou hesitar, porque confia e acredita em você.

– Ele realmente é o que diz e muito mais, mas como poderia dizer a um discípulo, ainda mais a um tão querido ao meu coração, que eu, seu mentor, aquele que deveria encorajá-lo a seguir em frente, por mais de uma vez pensei em dissuadi-lo de sua busca, em dizer-lhe para desistir daquilo que dá sentido a sua vida? Que estava com medo do caminho que ele poderia tomar quando estivesse sozinho, com medo que se perdesse? Não posso fazer isto. Nunca duvidei da habilidade, da fé ou da vontade de Midler, mas é ele que tem pouca confiança em si mesmo e nas suas escolhas.

– E o que ele faria, se soubesse?

– Corações como o de Midler são os mais difíceis de encontrar, e mais ainda de dissuadir. Sua tenacidade beira a teimosia, em muito me lembrando dos bravos homens que vivem para alem da Muralha do Mundo – um tímido sorriso começou a se desenhar no rosto de Laertes, mas logo desapareceu – Não, sei que ele não aceitaria este destino e tentaria evitar o que ninguém pode. Se imaginasse, mesmo que por um momento, que minha vida poderia ter fim se ele continuasse em sua busca, sei que desistiria dela sem hesitar.

– Então o admiro ainda mais. Ele não aceita que lhe digam que existe apenas um caminho a seguir. Não tentarei convencê-lo, Driann. Já desisti de tentar. Mas não vejo mais o mesmo medo em seus olhos, a mesma sombra a espreitá-lo quando chegou.

Laertes ficou quieto por um momento, fechando os olhos enquanto tomava um longo gole de vinho. Respirou profundamente antes de responder, consciente da importância daquele momento para seu amigo. Nunca ouvira Tallamir desperdiçar tantas palavras em um único encontro entre eles em todos estes longos anos. Quando voltou a lhe falar, sua voz estava novamente leve e serena.

– Tive medo, é verdade, muito medo. E vergonha por sentir este medo. Sempre repreendi Midler por duvidar de si mesmo, mas, quando a dúvida recaiu sobre mim, não fui apenas incrédulo, mas covarde. Mas agora, sinto-me imensamente feliz por me ter sido dada a oportunidade de conhecer e ensinar a este jovem. E por ter conhecido o nobre filho de Tallaros e sentado a sua mesa como um amigo. A única tristeza que carrego agora é a saudade que sentirei destes tempos, quando no passar de apenas uma vida, os caminhos de um peregrino puderam se cruzar com os de homens como você, rígido e inflexível como o próprio cerne das montanhas, mas sempre um amigo leal e muito querido.

Tallamir se levantou, erguendo alta sua caneca, saudando Laertes com um alto brado, como era o costume de seu povo quando se despediam dos guerreiros que partiam para a batalha, bebendo vigorosamente o vinho. Após esvaziar a caneca, virou-se e se encaminhou para seus aposentos, detendo-se após alguns passos. Falou a Laertes sem se virar, para que ele não visse a dor que marcava seu rosto.

– Até nosso próximo encontro, Driann Laertes, mentor de Sandren.

Laertes sorriu, enquanto observava o mestre ferreiro a se retirar. Despediu-se então de seu amigo com um sussurro.

– Para onde vou, rezarei a todos os deuses para que não me siga em breve, meu amigo...


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