O Caminho de Sandren - Livro 1 (Caminhada) escrita por Aviatorman


Capítulo 10
Encontros pouco cordiais




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10

O sol continuava escondido atrás das pesadas nuvens que cobriam todo o céu, como acontecera em todo o dia anterior, mas já deveria ter iniciado sua longa descida para o oeste quando os dois viajantes pararam para descansar, próximos de um pequeno bosque ao lado da lamacenta estrada. Midler apressou-se para encontrar um lugar que ainda estivesse seco, encontrando-o sob a copa de uma frondosa árvore. Apesar da fria chuva que continuava a cair incessantemente, sua força já havia se perdido, sendo agora pouco mais que uma fina cortina que se desvelava a frente deles, revelando um pouco mais da estrada que havia se ocultado durante toda a manhã. Preparou rapidamente um tardio almoço, com pão e um pouco da carne salgada que compraram na cidade de Anthara, em troca de suas derradeiras moedas. Conferiu novamente os mantimentos que carregava, avaliando a distância que ainda os separava das montanhas que cobriam quase todo o esparso azul de um céu que se abria lentamente ao norte e deu-se por satisfeito. Havia o suficiente para transpô-las com tranqüilidade, mesmo que se demorassem um pouco mais do que previram.

Apesar do caminho que trilhavam conduzir para a parte mais baixa das Montanhas do Gigante, como se para o vau de um largo rio, a esta distância as imensas formações pareciam uma intransponível muralha de rocha maciça. De onde estavam não era ainda possível divisar o único caminho que havia entre aqueles picos, apenas o alto e estreito vale muito adiante por onde o mesmo seguia, como uma profunda rachadura no extenso muro. Midler podia ver a estrada em que estavam continuar sempre em frente, na direção daquele vale, entre pequenas piscinas do mesmo tom cinzento que as pedras que a calçavam, até desaparecer por completo na distância, próxima ao início das primeiras encostas.

A Garganta do Gigante, como era chamada a continuação da Estrada do Norte por entre as montanhas, era a única passagem através da fronteira norte de Graeldar que levava ao belo reino dos sábios, escribas e poetas de Thimeran. Era uma estrada já antiga, aberta à força por entre rocha e neve há mais de duzentos anos, para permitir o proveitoso comércio que crescera para muito além das dificuldades que o grande obstáculo apresentara. Sua construção consumiu muitos anos, moedas e vidas, todos muito acima do que era previsto ou mesmo aceitável. Apesar de ser larga e bem calçada em toda sua extensão, a Garganta exigia cuidado e atenção daqueles que dela se utilizavam, ainda mais quando a travessia se fazia já tão próxima do início do inverno como agora. Algumas torres de vigia e muitos soldados armados eram responsáveis por proteger e patrulhar a longa passagem durante quase todo o ano, contra ladrões e outros perigos que a montanha pudesse esconder. Havia também experientes guias de custos elevados e presença obrigatória em todas as caravanas dos dois lados das montanhas, mas não era de todo incomum o desaparecimento de viajantes solitários ou de pequenos grupos durante a travessia. Midler ouvira sobre os riscos em se cruzar estas montanhas a pé, ainda mais quando as neves eternas já haviam descido dos altos cumes, cobrindo o ponto mais elevado da Garganta e tornando a já difícil jornada em uma tarefa quase impossível ou mesmo suicida, mas jamais questionaria a decisão de Laertes. Olhou respeitosamente uma última vez para as grandes rochas tingidas de branco, antes de abrir um pequeno saco e pegar uma das estranhas frutas de um doce sumo que seu mentor colhera nos bosques junto à estrada, passando-lhe e sentando a sua frente.

Desde que se despediram de Alenthor em Anthara, há três dias, a caminhada havia se tornado cada vez mais silenciosa, enquanto o céu lentamente se fechava sobre eles, refletindo a mesma sombra que parecia se adensar sobre a mente de Laertes. Seus passos se tornaram mais curtos e lentos, cobrindo uma distância cada vez menor a cada hora, como se qualquer urgência que pudesse existir houvesse se desvanecido da mente do mentor. Por muitas, vezes, caminharam durante horas, onde o único som que se ouviu era o deslizar das corredeiras do Lorun, que margeava a Estrada do Rei, desde os portos de Marahin muito ao sul até a bela cidade insular de Latani, de onde partiram antes da manhã tingir em tons de prata e dourado a extensa superfície do Lago Rhallys. As velozes águas que davam vida ao sereno lago vinham de algum lugar para o leste, cruzando avidamente os planaltos que se elevavam na distância, encontrando ali um merecido repouso antes de reiniciarem sua célere corrida para o sul.

A Estrada do Norte nascia ao sul de Latani, a joia do lago, partindo sob o largo pórtico de pedras brancas do Porto do Verão, circundando toda a margem ocidental do lago até o cinzento Portão do Inverno ao norte, antes de seguir reta como uma flecha em direção às montanhas, afastando-se do grande rio.

O dia ainda se vestia de noite quando a pequena embarcação os conduziu preguiçosamente através do Rhallys, onde Midler pôde ver pequenos peixes claros a dançarem sob o negro manto do lago, substituindo as estrelas ausentes muito acima. Eles pareceram acompanhar o cajado de Laertes quando este tocava levemente a plácida água sem perturbá-la, mas o velho mentor os olhara sem demonstrar qualquer emoção ou interesse, parecendo ao discípulo cada vez mais dobrado e envelhecido, como se seus muitos anos o estivessem finalmente alcançando com largas passadas. Apesar de sua crescente preocupação, Midler esforçava-se em adotar o mesmo silêncio que lhe parecia caber a homens maiores e mais sábios, como Laertes e Tallamir, e assim os dois se mantiveram durante toda a úmida manhã que passara lentamente em direção ao oeste.

Apesar de haverem avistado um grande número de lavradores, soldados e comerciantes a caminharem entre as cidades do norte desde que deixaram Caendlia, haviam cruzado com um único grupo durante todo aquele dia, a descer rumo ao sul, levando consigo uma larga carroça com muitos sacos, barris e pesados embrulhos de lona, escoltados por alguns soldados que portavam a insígnia de Nyothar. Eles disseram que retornavam de Thorion, o último abrigo que poderiam encontrar antes da Garganta, pois os vigias haviam informado que a grande passagem poderia estar fechada pela neve que caíra na parte mais alta durante a última semana. A névoa que cobria partes da estrada não permitia que se avistassem as lanternas de aviso das torres mais elevadas e, por isso, eles deveriam aguardar o retorno dos soldados enviados para averiguar. O grupo aguardara na estalagem de Thorion por três dias, até que resolveram retornar para o sul. Mesmo que ainda fosse possível cruzar as montanhas, eles não iriam arriscar a travessia agora, quando mesmo a vigília dos postos mais distantes era suspensa, enquanto seus soldados ainda podiam descer a traiçoeira montanha com alguma segurança. Despediram-se dos dois viajantes sem qualquer cortesia ou pressa, mais preocupados com o lucro perdido e com as poucas moedas que poderiam ainda conseguir, insuficientes para pagar sequer a escolta que os acompanhava, do que com o destino ou negócios que Midler e Laertes poderiam ter em Thorion com a passagem certamente fechada. Mas, se houvera algum interesse do mentor para com as informações sobre a travessia da Garganta, o mentor não demonstrara.

Midler recostou-se em uma pequena árvore, enrolando-se na pesada capa que cobria a armadura, sentindo o forte cheiro que a chuva conferia à grossa pele de que era feita. Ele olhou para o mentor, que parecia estar tão despreparado para uma viagem em meio à rocha e a neve, coberto apenas por enxutas vestes leves. O discípulo imaginava por que ele havia se mantido calado desde que deixaram as forjas do mestre ferreiro, falando pouco mais que o necessário, tanto com ele quanto com Alenthor. Laertes havia mantido seus olhos voltados para o norte a maior parte da jornada, não para a estrada que trilhavam, mas para algo que parecia estar, ao mesmo tempo, muito distante e próximo demais. Não raras vezes, Midler ouviu-o sussurrar uma mesma expressão em alguma língua que ele não conhecia, mas incrivelmente bela, como a que o ouvira cantar durante a noite que passou na casa dos Duharee. Era como se ele falasse consigo mesmo ou com alguém que o discípulo não podia ver.

– Deve procurar comer algo – a distante voz de Laertes quebrou o monótono som do tamborilar sobre as folhas enquanto os olhos continuavam a observar as montanhas – Precisará de todas as forças para a longa subida que terá a frente.

– Precisaremos os dois, meu mentor, já que tenho percebido que tem comido ainda menos do que eu nestes últimos dias – Midler inclinou o corpo para frente e cortou generosas fatias de pão e queijo, dividindo-as com Laertes – Mas bem sei que não é a falta de comida ou de repouso que o incomodam. O que pode haver de tão perturbador naquelas elevações, ou para além delas, para lhe tirar assim a paz e o sossego?

– Não tenho porque temer estas montanhas, Midler – a voz do mentor era desprovida de força ou emoção – Já as cruzei mais vezes do que posso contar, mas sempre as respeitei, como espero que você também o faça, para a sua segurança e a de quem caminhar ao seu lado. Lembre-se do que lhe falei sobre esta traiçoeira passagem. Viaje de dia, descanse a noite, não se demore e não de ouvidos a nada ou a ninguém. Sempre prefira a cama quente à pedra fria, não importando sua pressa ou a angústia para chegar ao outro lado, mas se tiver que dormir sob as estrelas, não acenda o fogo, a não ser para salvar sua vida, e se tiver de fazê-lo, é melhor não dormir. Há mais perigos do que sentinelas nestas montanhas, quando o manto noturno tinge o próprio branco de negro, mas apenas para os despreparados e incautos que deixam para trás a segurança que a estrada e as paredes dão, perseguindo o que existe apenas para os ouvidos e não para os olhos.

– Não se preocupe, meu mentor. Lembro-me de tudo o que disse – a insistência de Laertes para que tanto ele quanto Alenthor conhecessem os segredos da montanha, tão bem como se eles mesmos já as houvessem cruzado tantas vezes quanto ele preocupava o discípulo. Nada mais foi dito pelo velho mentor desde que deixaram Caendlia, apenas o que Midler deveria saber e fazer durante a travessia da Garganta. Apesar da lentidão com que a estrada agora passava sob os pés, não mais do que dois dias os separavam do início da longa subida e ele já podia sentir o vento frio que descia das primeiras encostas. Mesmo assim, Laertes continuava a lhe falar como se não fosse estar com ele – Meu mentor, quando me fala destas montanhas, por que todos seus ensinamentos e conselhos parecem não contemplá-lo?

Com um longo suspiro, Laertes se virou para o discípulo, encontrando seu olhos com os dele. Pensou longamente antes de responder, sufocando dentro de si a vontade de contar-lhe o que realmente queria, voltando a olhar fixamente para o norte.

– Simplesmente porque não sou eu a ser instruído ou aconselhado aqui, jovem impetuoso, ou assim deveria ser, acredito eu. Apesar de caminhar ao lado do mais capaz de todos os discípulos que já conheci, sou eu ainda quem detém o título de mentor.

Midler se calou, aceitando resignado as palavras de Laertes. Não havia nada que pudesse dizer depois desta afirmação, apesar de saber que não era este o verdadeiro desejo do mentor. Recostou-se novamente, aguardando o momento de partir, enquanto mordiscava sem vontade um pedaço de pão, tentando imaginar o que se passava no coração de Laertes.

De dentro da mata próxima, um par de desassossegados olhos escuros observavam os dois homens acampados na orla da floresta. Inquieta, a furtiva figura apertava com força o cabo de sua arma, fazendo-a girar incessantemente nas mãos. Aos poucos, a preocupação com a proximidade deles estava dando lugar a um crescente interesse. Eram apenas dois e ele podia ver que possuíam comida, bebida e roupas quentes com eles. Pelo que conseguia ver de onde estava, um era muito velho e o outro novo demais. Apenas o jovem carregava armas, mas, mesmo assim, ele hesitava, desconfiado. Há muito aprendera a não acreditar ou depender da sorte, que nunca lhe sorrira, mas também a nunca desperdiçar as poucas chances que lhe eram apresentadas. Havia aguardado tempo demais por uma oportunidade como aquela. Apesar de estar muito cansado e enfraquecido, o que o impelia era muito mais forte que suas suspeitas e receios. Usando as árvores próximas, procurou se aproximar, sem despertar a atenção deles.

Os pensamentos de Midler foram subitamente interrompidos por alguma coisa que pareceu invadir o limiar de sua percepção, escondida dos olhos pela mata e pela fina chuva que ainda caía. Uma presença, algo fugidio como uma sensação que não podia precisar, mas que o deixou em alerta, enquanto Laertes lhe parecia totalmente alheio ao que acontecia ao redor deles, mantendo os olhos ao longe e a mente ainda mais distante. Esticando lentamente o braço por baixo da grossa capa, deixou seu escudo escorregar suavemente por ele, tão silenciosamente quanto pôde. Então, levantou-se rapidamente, jogando a capa para o lado e ficando de costas para o mentor, protegendo-o com o escudo. Um silvo veloz cortou o ar, próximo de onde estivera, e algo se cravou com força na árvore onde Laertes estava apoiado, ao lado da cabeça de Midler. Por um momento, o discípulo olhou para a arma que havia sido atirada contra eles, profundamente encravada naquela árvore. Eram duas lâminas opostas, curvadas quase a formar um círculo fechado, com um pequeno e robusto cabo entre elas. Era um pequeno machado de arremesso, mas como ele nunca vira, tão belo e perfeito e, por isso, tão mortal. Aquele não havia sido um ataque, mas um aviso, enviado por alguém com grande perícia.

Por entre as altas árvores que margeavam a estrada, pouco mais de quinze metros adiante de onde estavam, uma inquietante figura apareceu, portando um grande machado com uma forma incomum, como grandes asas abertas, ainda mais largo que a armadura de Midler. Ele já ouvira algumas estórias sobre aqueles que viviam sob as montanhas e, apesar de nunca ter visto nenhum antes, o reconheceu como tal, um guerreiro forte e perigoso pelo que via. Sua baixa estatura não o deixava menos intimidador e a dura expressão em seu rosto, tão sujo que nem a chuva conseguia lavar, não deixava dúvidas da seriedade de seu intento, enquanto avançava com largas passadas na direção de Midler, gritando algo incompreensível até mesmo para Laertes. O discípulo estendeu a mão aberta em sua direção, enquanto falava com firmeza.

– Pare! Não se aproxime mais! Não desejo enfrentá-lo sem motivo.

– Não me parece que ele o entenda ou que iria parar se o fizesse – a voz de Laertes soou por trás do discípulo, estranhamente calma, para em seguida se tornar grave – Tome cuidado, Midler. Posso ver que ele não tenciona feri-lo, mas poderia fazê-lo facilmente, se desejasse.

Midler segurou firmemente o cabo da espada, tentando deixar claro que iria enfrentá-lo se fosse necessário, mas o anão ignorou a advertência, aumentando as passadas até quase correr, passando a gritar palavras que eram, com certeza, incompreensíveis até em sua própria língua. Seu primeiro golpe foi desferido tão velozmente que Midler quase não teve tempo de desembainhar a espada e se defender. Para sua sorte, não era ele o alvo do anão, mas sua arma, que lutou ferozmente para não perder. O anão girava e golpeava tão facilmente com o grande machado que este parecia não pesar nada em suas mãos, como se fosse apenas um pequeno punhal. O discípulo se esforçava em procurar um apoio no lamacento solo e por entre as raízes sob seus pés, mas o anão não lhe permitia este tempo ou o espaço para encontrá-lo, conduzindo o combate por onde queria, rapidamente encurralando Midler contra as grandes árvores, com golpes fortes e precisos.

Laertes se ergueu, observando cauteloso o desenrolar da luta. Mesmo sabendo que o anão não desejava ferir seu discípulo, apenas derrotá-lo, e que Midler era um guerreiro hábil e capaz, ele podia perceber que este adversário estava muito além da capacidade do jovem. A vitória não viria pela espada, isto ele tinha certeza, e lhe preocupava a ira crescente do anão, pois seu discípulo se apresentava um oponente mais difícil do que ele previra, resistindo bravamente aos seus golpes. O grande machado girava cada vez mais furioso, castigando com força o escudo do discípulo, que começava a ceder sob o violento ataque. Por mais que se esforçasse, Midler não conseguia encontrar uma oportunidade para contra-atacar, e, mesmo que a tivesse, sua espada estava ocupada demais defendendo-o. Laertes nunca havia visto alguém lutar daquela maneira, ao mesmo tempo com tanta fúria e maestria. Este guerreiro se submetia por completo à loucura do combate, mas, ao invés de ver diminuída sua perícia por esta entrega, seus ataques se tornavam mais precisos e brutais, parecendo tornar-se um combatente ainda mais completo a cada golpe. O velho mentor sabia que mesmo os cânticos de Sandren, capazes de acalmar a mais furiosa e selvagem das feras, pouco fariam naquele momento, tornando-se uma frágil represa contra a violenta maré de puro ódio que emanava do anão. Com uma ligeira prece e através de olhos que não eram os seus, Laertes percebeu que não era o que vinha de dentro do anão que o motivava, mas algo para além dele, algo exterior. O mentor olhou rapidamente em volta, procurando a razão daquela investida, mas para seu desalento, nada conseguiu encontrar. Fechando os olhos, colocou levemente a mão aberta sobre o tronco da árvore ao seu lado, como se a acariciasse onde o machado do anão a havia ferido, procurando esquecer de tudo mais, falando-lhe em um sussurro.

– Estarei eu tão preso ao que me foi dito que fiquei cego para tudo mais? Irmãs, mostrem-me o que apenas seus olhos podem ver...

A beleza adormecida da floresta se abriu de repente em sua mente, em tons de prata, ouro e verde, tão cintilantes quanto um amanhecer de primavera. Cada galho e ramo parecia aos seus olhos coberto por folhas cheias de vida e de um frescor há muito arrancado pelo frio vento do outono. A chuva deslizava sobre a floresta como rios prateados, cobrindo a tudo com um suave e etéreo manto. Ele sentia nas mãos o calor da seiva a correr pelo tronco, que pulsava em uníssono com todas as outras árvores, em um grande coral. O aroma da eterna promessa de nova vida, a exalar inebriante de cada broto, flor e semente adormecida, preenchia o ar. Tudo que via tinha uma luz própria, brilhante, única, como se as estrelas houvessem descido à terra, mais brilhantes que o próprio sol, e dançassem em torno do velho mentor. Mas, próximo de algumas árvores que formavam um pequeno círculo, mais para dentro da floresta, havia uma luz que destoava de todas as outras, uma pequena chama trêmula, lutando valentemente para não se apagar. A voz da floresta, a cantar docemente em seus ouvidos, lhe dizia que era ali que ele iria encontrar as respostas que buscava. Abraçando o largo tronco que tocava, o mentor pareceu desaparecer para a limitada visão dos homens.

Quando voltou a enxergar com seus próprios olhos, Laertes estava no local que havia visto em sua mente, em um pequeno acampamento dentro do círculo, protegido da chuva que caía, onde alguns pesados sacos jaziam ao lado de uma fogueira há muito apagada. Aos pés da maior árvore, cuidadosamente acomodado entre suas raízes, um anão estava deitado sobre uma cama de folhas e gravetos. Uma grossa pele lhe cobria o corpo, desde a ruiva barba até os pés, e sua testa estava coberta de suor, apesar do frio que permeava o ar. Laertes se abaixou e puxou a coberta, tocando levemente o largo peito, enfaixado por alguém com muita experiência em cuidar de ferimentos. “Veneno, um forte veneno”, pensou, quando rasgou apressadamente as ataduras e descobriu uma profunda ferida, feita há pelo menos uma semana, com a carne já enegrecida e morta em torno dela. Fechando os olhos, colocou algumas folhas avermelhadas que carregava consigo sobre o peito do anão, concentrando-se em antigas palavras de cura e alívio, desconhecidas para os homens de Sandren ou mesmo para os grandes curandeiros de Andelnam, enquanto procurava esquecer-se dos sons dos violentos golpes que lhe chegavam aos ouvidos.

Durante todo o combate, o anão havia mantido sua atenção também voltada para onde estava o mentor, pronto para reagir a qualquer coisa que o velho humano pudesse fazer, mas o súbito desaparecimento de Laertes deixou o guerreiro confuso. Por instinto, ou por algo ainda mais forte, sabia que haviam descoberto seu companheiro caído, apesar do cuidado que tivera de escondê-lo e arremessado seu machado de outro lugar, distante alguns metros de onde o deixara. Começou a lutar com ainda mais furor, como se sua própria vida dependesse de vencer rapidamente o combate. Naquele momento, Midler descobriu, para seu assombro, que o anão havia se contido até então, que não havia ainda lutado com toda a força, arrancando com um único golpe a espada de suas mãos, com tanta brutalidade que o discípulo sentiu que seu braço poderia ter sido arrebatado junto, não fosse pela armadura de Tallamir. Uma dor aguda atravessou seu corpo, quase o fazendo desmaiar, enquanto sua arma desaparecia dentro da floresta, tão velozmente quanto uma flecha.

O grande machado descia inclemente sobre seu escudo, não mais tentando se desviar dele para atingir o discípulo, mas para atingi-lo através dele. As pernas de Midler começaram a ceder sob a brutalidade daqueles golpes e ele já estava tão baixo quanto o próprio anão, que parecia incansável, tomado por uma sede de sangue maior que a montanha atrás de si. Ele sabia que em poucos momentos sua última defesa teria o mesmo destino de suas pernas e tudo terminaria, mas não havia nada que pudesse fazer, olhando fixamente para os olhos de seu algoz, tomados pela mesma selvageria que vira no olhar do grande ferreiro, mas sem nenhum vestígio do mesmo controle. Então, um forte grito de dor irrompeu da floresta, confirmando o temor do anão.

Zartan! – gritou em sua rouca voz, virando-se subitamente para onde havia deixado seu amigo, esquecendo-se por completo do combate.

Midler percebeu que o anão havia se distraído e não teria outra oportunidade. Usando todas as forças que ainda possuía, ergueu-se e atacou com o escudo, em um único movimento ascendente, acertando em cheio o rosto desprotegido de seu adversário, ouvindo um estalo de algo a se quebrar com o forte impacto. O corpo do anão foi arremessado para trás com a violência do golpe, caindo pesadamente após alguns metros. O discípulo pôde sentir o golpe em seu próprio braço, como se houvesse atingido uma muralha de pedras com ele. Ao girar seu escudo, viu uma profunda rachadura a cruzar toda sua extensão, além das muitas fendas causadas pelos golpes do grande machado.

Dentro da floresta, Laertes mantinha a mão a pairar levemente acima do ferimento, a recitar em um contínuo sussurro, enquanto o anão arqueava com força o corpo, quase erguendo-o do chão, como se algo estivesse sendo extraído dolorosamente de dentro de seu peito. As folhas que o mentor havia colocado sobre a ferida começaram a escurecer e secar, tornando-se tão negras quanto a carne sob elas, enquanto absorviam o veneno em seu sangue. De repente, o anão abriu os olhos e segurou com força a mão de Laertes, mas o velho mentor continuou a recitar as preces por entre dentes cerrados para suportar a dor. Quando as folhas ressecadas se transformaram em pó, o corpo do anão relaxou, assim como sua expressão, e com uma longa expiração largou a mão quebrada do mentor. Seus olhos se fecharam lentamente, vencidos pelo cansaço da longa luta que travara e agora estava finalmente vencida, mas Laertes não permitiu que ele descansasse, erguendo sua cabeça e olhando dentro dos confusos olhos recém-despertos de uma noite muito longa e escura.

– Haverá tempo depois para descansar e para as devidas apresentações e explicações, mestre anão, mas peço que chame agora por seu companheiro, pois a vida de alguém que me é querido está nas mãos dele.

– Por Baltur... – Midler deixou escapar um atônito sussurro, quando viu o anão que atingira com tanta violência se levantar rapidamente, como se nada houvesse acontecido. O sangue descia pelo rosto e narinas, levados pela chuva, mas não conseguia mascarar o amplo sorriso que se desenhou em seus lábios, enquanto os olhos avermelhados pareciam não focalizar em nada, mas mantinham-se voltados fixamente na direção do discípulo. Midler abaixou-se e pegou um longo galho no chão, quebrando-o com uma forte pisada para afiar sua ponta e o segurou como se fosse uma lança, sentindo o braço doer imensamente até a ponta dos dedos. Respirando profundamente, procurou acalmar-se e se concentrar, preparando-se para aquela que imaginava que seria a última batalha de sua vida. Em sua mente, todas as lições que seu pai e Oderen lhe ensinaram passaram rapidamente, enquanto assumia a melhor posição que podia, aguardando a iminente investida do inimigo, sentindo a chuva que se intensificara subitamente sobre eles escorrer por seu rosto.

Com um grito inumano, o anão disparou na direção de Midler, como o estouro de um animal selvagem. Não havia mais beleza ou perícia em seu ataque, apenas fúria sem controle, um desejo de sangue que nem mesmo a morte de muitos homens poderia saciar. Midler aguardou que ele se aproximasse, investindo contra seu braço direito, tentando desarmá-lo. A afiada ponta de madeira rasgou profundamente o ombro do anão, atravessando seu braço e prendendo-se ali, mas ele não pareceu sequer perceber que havia sido atingido, atacando com igual fúria. Midler conseguiu esquivar-se apenas o suficiente para que a lâmina do machado fosse desviada por sua armadura, em uma explosão de ferro e luz, mas a brutal investida do anão não poderia ser interrompida.

Em um contínuo movimento, ele atingiu com força o peito de Midler com a cabeça, fazendo o discípulo perder o pouco fôlego que ainda possuía, derrubando-o no solo da floresta. Quando tentou se levantar, uma enlameada bota atingiu-lhe o rosto, jogando-o novamente ao chão, para em seguida pisar com força em seu pescoço, impedindo-o de se erguer ou de respirar. Mais uma vez, Midler era grato pela armadura que usava, ou seu pescoço teria se partido sob os pés do anão. Ao olhar para cima, parcialmente cego pela dor e pela lama que cobria metade do rosto, viu a larga silhueta sobre ele, com a chuva a cair-lhe lentamente por trás.

O mundo parecia ter desacelerado naquele momento, prolongando-o em sua mente. Tentou erguer o braço, mas a agonia que sentia fazia com que os movimentos estivessem ainda mais lentos. Seu coração retumbava nos ouvidos. Não ouvia mais nada, não conseguia gritar, nem mesmo desviar os olhos de seu carrasco, vendo-o erguer alto o machado, com um sorriso insano que só poderia pertencer a um demônio a tomar-lhe todo o rosto. Apenas as imagens de Télan e da Sandren que nunca conheceria passaram por sua mente quando fechou os olhos.

– Pai, perdoe-me...

Bharin, não o mate! – um grito ecoou forte nos ouvidos surdos de Midler, com a urgência e a autoridade de um general em combate. Apesar de nunca ter ouvido aquela língua, ele podia compreender claramente seu sentido. Ao abrir os olhos, viu a face desfigurada do anão lentamente derreter em decepção, como o gelo sob o sol, não apenas por o impedirem de desferir o golpe final, mas pelo fraco desafio que o discípulo havia sido. Midler o viu baixar devagar o machado, mas manteve o pé a pressionar com força o pescoço do discípulo por mais algum tempo, antes de se afastar com um grunhido de desapontamento, arrancando sem sinal de dor ou esforço o galho preso ao seu braço.

Midler inspirou profundamente, sentindo o delicioso ar com gosto de terra molhada passar com dificuldade por sua garganta, queimando-a. A chuva agora havia parado por completo, e as nuvens corriam velozes muito acima da copa das árvores, em direção ao sul, começando a pintar de um tímido azul o cinza que a tudo encobria. Com grande esforço, o discípulo girou o corpo para a esquerda tentando se levantar, mas sem qualquer êxito. A certeza que tinha de que seu outro braço não teria forças para fazê-lo se confirmou e ele apoiou-se no que restara do escudo para se erguer. Quando conseguiu finalmente sentar, tentando afrouxar a proteção de seu pescoço, Laertes ajoelhou-se ao seu lado, como se houvesse aparecido em pleno ar, ajudando-o com a armadura.

– Descanse, Midler, e não se preocupe com nada mais agora. Enfrentou com muita coragem sua batalha mais dura até hoje – o discípulo tentou falar algo, mas as palavras ficaram presas em sua garganta, fazendo-o tossir compulsivamente, mas seu mentor sabia exatamente o que ele queria lhe dizer – Não deve sentir vergonha por ter sido derrotado, pois não havia como vencer e mesmo assim você não desistiu. Estou muito orgulhoso, meu querido discípulo, como você também deveria estar, legítimo filho de Sandren – Laertes pegou um dos pequenos odres que levava à cintura e fechou a mão em torno dele, trazendo-o para perto do rosto, enquanto murmurava algo com os olhos fechados. Em seguida, entregou-o a Midler – Beba. Logo se sentirá melhor.

O discípulo engoliu com dificuldade o viscoso líquido, quente como um chá recém-tirado do fogo. Laertes ajoelhou-se atrás dele e colocou as mãos em suas têmporas, orando por sua recuperação. A mão quebrada pendia quase sem forças, pressionada levemente contra a cabeça de Midler. Estava enrolada em uma faixa de algodão grosseiro, mas com um leve odor adocicado que parecia aliviar a grande dor que o mentor sentia. Os votos que fizera na Torre de Marfim o obrigavam a cuidar daqueles que necessitavam sempre antes de si mesmo, mas não era seu juramento que o movia naquele momento, mas uma preocupação quase paternal. Rapidamente, o calor do líquido se espalhou pelo corpo de Midler e ele se sentiu leve, alheio à dor e ao frio que o castigavam, enquanto seus braços e pernas pareciam tomados por milhares de pequenas agulhas. Em pouco tempo, o calor se foi e ele voltou a sentir o frio do final do outono, mas a dor havia desaparecido por completo. Midler passou a mão no rosto e surpreendeu-se em ver o sangue ainda fresco a se misturar com a lama em seus dedos, mas não encontrou nenhuma ferida ou cicatriz em sua fronte. Sentia-se novo, cheio de energia, como se houvesse recém despertado de uma longa e repousante noite de sono. Ele sabia que o líquido que bebera era o responsável pelo novo vigor que sentia, mas as preces e o poder de Laertes é que haviam tratado seus ferimentos como poucos clérigos das Casas de Cura seriam capazes.

– Se já se sentir em condições venha comigo, Midler. Há outro guerreiro ferido nesta floresta e não acredito que tenha sido apenas o acaso que o colocou em nosso caminho, mesmo que desta conturbada maneira.

Midler enrolou-se na grossa capa e foi em busca da espada, encontrando-a não muito distante, fincada profundamente no solo da floresta. Havia uma dura marca em seu gume que acreditou serem necessários muitos dias de um sol que não teriam para fazê-la desaparecer. Apressou-se em seguir Laertes, mas, apesar de seu corpo estar revigorado, seus pulmões ainda queimavam com o ar frio do fim do outono, e uma tosse compulsiva o acompanhou. Quando se juntou novamente ao mentor, ele já se aproximava do acampamento dos anões, encontrando o que o atacara agachado ao lado de seu companheiro, conversando com ele. Quando viu os dois humanos se aproximarem, ele se levantou em um salto, com o grande machado em mãos e o mesmo olhar que fazia o coração de Midler gelar.

Isto não será necessário, Turbilhão – a voz era a de um comandante seguro de sua posição, serena, porém firme e constante, sem carregar consigo nenhum indício da grande dor que devia estar sentindo – É graças a este nobre humano que não estou mais em perigo.

O anão resmungou algo e caminhou pesadamente até o outro lado do pequeno círculo de árvores, sem tirar os olhos dos dois estranhos, onde se sentou. Fincou ostensivamente um machado de arremesso no solo a sua frente, com o cabo virado em sua direção, enquanto terminava de enfaixar com destreza o ombro ferido por Midler, roendo um pedaço duro de pão. Laertes se abaixou, entregando ao anão caído o mesmo odre que oferecera a seu discípulo, mantendo sua outra mão escondida sob seus manto.

– Por favor, beba. O fará sentir-se melhor. Depois conversaremos – olhando para o outro anão, arremessou-lhe o saco com os mantimentos que trouxera – Coma algo, guerreiro. Deve estar com muita fome, pois vejo que não há nada em suas provisões, senão farelos secos e envelhecidos.

O anão esticou a mão e pegou o saco, mas, ao invés de desatar o nó que o fechava, rasgou-o sem qualquer cerimônia, comendo com voracidade carne, pão e queijo sem qualquer distinção. Laertes observou-o seriamente por alguns momentos, para então se virar novamente para o outro, que terminava de se sentar, sentindo-se muito melhor com aquela bebida. Devolveu o pequeno odre ao mentor com um firme aceno de cabeça.

– Agradeço sua ajuda, generoso senhor. Diga-me o seu nome, para que possa contar aos meus irmãos, quando retornar à Grande Casa, que a nobreza e a dignidade também caminham com largas e orgulhosas passadas fora de nossas fronteiras.

– Sou Laertes, mentor de Sandren, e este comigo é meu discípulo, Midler Summerion, filho de Télan e destas terras. Estou muito surpreso por encontrar dois dos nobres filhos das montanhas tão distantes de sua morada.

– Este que conheceram é meu irmão de armas, Bharin Bolfix, único filho de Bheran e guerreiro de Khedzaer, e assumo toda a responsabilidade por quaisquer atitudes que ele tenha tomado – olhava com amargura a enlameada armadura amassada de Midler, compreendendo o que ocorrera – Conheço seu nobre coração e me orgulho de caminhar ao seu lado, mas sei como pensa e age para conseguir o que almeja ou precisa, além de não falar bem a língua dos homens e, por mais vezes do que deveria, nenhuma outra que não seja as das armas que carrega. Pagarei o justo preço por quaisquer estragos ou danos que ele tenha lhes causado.

– Guarde suas moedas para um melhor uso, meu amigo. Nada que não possa ser facilmente reparado foi quebrado ou ferido. Em verdade, acredito que todos poderemos tirar proveito e lições deste encontro, mesmo que talvez algumas tenham sido ensinadas com aspereza desnecessária – Laertes olhou por um momento para Bharin, sem encontrar nele qualquer sinal de consciência ou interesse – Mas não sei ainda quem é, mestre anão.

– Quanto a mim, nobre Laertes de Sandren, sou o filho mais velho de Zartarian, guerreiro e defensor da digna casa de Balorin.

– Sim, com certeza você é, nobre combatente, e quando encontrar mestre Zartarian, direi a ele o quanto deve se orgulhar de seu primogênito, mas como você é chamado por seus amigos?

– Zartan, Zartan Balorin, a seu serviço – o anão pareceu desconcertado por um momento. Sentia-se tão à vontade a conversar com Laertes que havia se apresentado como o faria se ainda estivesse em suas terras, falando com outro anão. Zartan usava o nome de seu pai não pela posição que este ocupava, mas pela humildade que cabia a um nobre guerreiro, não usando seu próprio nome, mas o de seu comandante, enquanto não se considerasse digno ou fosse por ele questionado. Mas o desconforto logo passou, sob o sereno olhar do mentor. Ao observar a ferida em seu peito, já com as marcas dos dias que passaram a envolvê-la, o anão pareceu confuso, olhando para o céu sem encontrar a resposta que buscava – Que dia é este?

– Hoje é o terceiro dia do mês da Raposa – percebeu os olhos confusos do anão e esforçou-se para recordar como aquele povo marcava a passagem dos meses – Acredito que já se passaram dezessete dias desde as Primeiras Neves, se bem me lembro. Pelos seus ferimentos, acredito que foram feitos há pelo menos uma semana, o que muito me impressiona, mestre Zartan, pois o veneno em seu sangue poderia ter matado muitos homens durante este tempo.

Oito dias! Já se passaram oito dias? – Zartan parecia não ter ouvido as últimas palavras de Laertes, falando consigo mesmo. O Dia das Primeiras Neves era a manhã seguinte ao equinócio de outono para os anões, marcando o início do primeiro inverno, que era como chamavam a chegada do frio ainda pouco intenso em suas sempre gélidas montanhas. Para eles havia três invernos em cada ano, sendo o terceiro chamado de Dzarenyrr, “o Arauto Branco da Morte”. Olhou longamente para seu companheiro, a devorar o que ainda restava da comida, sem demonstrar qualquer interesse pelo que falavam. Bharin o havia carregado por oito dias e, pela grande fenda que via nas montanhas ao norte, sabia que estavam agora próximos da estrada dos homens. Aquela era uma distância grande demais para percorrer em tão pouco tempo, mesmo que Bharin estivesse sozinho e sem qualquer fardo sobre si. Examinando os grandes sacos a sua volta, viu que todo seu equipamento estava ali, assim como a armadura, elmo e machado. A sacola suja com migalhas de que Laertes lhe falara era pequena demais para carregar comida suficiente para ambos, mas ele não sentia fome ou fraqueza alguma, mesmo antes de Laertes lhe estender o odre. Bharin não havia deixado nada para trás, assim como havia comido muito pouco durante toda a viagem, mas não permitiu que nada faltasse ao seu amigo. Zartan sentiu seu coração se apertar no peito, de dor e de alegria. Havia uma grande nobreza em Bharin, como ele sempre acreditou, e ela era muito maior que o necessário para se tornar um Portador do Machado. Por que seus comandantes não o viam?

Laertes se levantou e caminhou na direção de Bharin, estendendo-lhe a última porção da mesma bebida que Zartan tomara, mas o anão repeliu rudemente a oferta com um movimento de mão, derrubando-a. Midler deu um passo em sua direção, levando a mão à espada, mas Laertes fez um sinal para que nada fizesse, enquanto apanhava o odre do chão.

– Peço que o desculpe, nobre Laertes, mas Bharin não acredita em nada que não venha dele mesmo. Sua preocupação é admirável, mas desnecessária, além de não ser por ele merecida – Zartan lançou um olhar de censura para seu amigo, enquanto colocava sua armadura, mas Bharin pareceu não se importar, jogando longe o saco agora vazio – Suas feridas irão se fechar ainda mais rapidamente do que as minhas, mesmo com oito dias de vantagem.

Laertes sorriu sem vontade e se ergueu, fazendo um sinal ao seu discípulo para que retornasse para a orla da floresta, onde deixara seu equipamento. Midler admirou o belo elmo de Zartan antes de entregar-lhe e se despedir formalmente, seguindo na direção apontada por seu mentor. Laertes seguiu seus passos, mas deteve-se por um momento ao passar pelo nobre anão, colocando a mão em seu ombro.

– Estaremos nos preparando para também partir deste local, mestre Zartan. Venha ter conosco antes de se irem, por favor. Não acredito que nosso encontro tenha sido fortuito ou apenas fruto do julgamento equivocado de um insensato. Não precisa se apressar, seu companheiro sabe bem onde nos encontrar.

Zartan colocou a mão sobre a de Laertes e concordou com a cabeça, tentando encontrar as palavras para dar voz ao sentimento que as atitudes de Bharin lhe causavam, mas havia algo no olhar do velho mentor, algo entre a compreensão e a indulgência de um grande mestre que lhe diziam serem desnecessárias. Com um leve suspiro, Laertes voltou a caminhar, deixando os anões para trás. Quando chegou onde Midler estava, entre as árvores que margeavam a estrada, percebeu que ele havia se apressado em arrumar o que o combate havia espalhado, estando quase pronto para partir. Procurava entre a comida suja e pisada o que ainda poderiam usar.

– Termine de vestir sua armadura, Midler. Quero que esteja com ela quando cruzar a montanha. Não se preocupe com os mantimentos. Há o suficiente para a estrada até Thorion.

Midler cumpriu as ordens de seu mentor o mais rapidamente que pôde, em total silêncio. O tom que Laertes usava lhe indicava que aquele não era o momento para perguntas ou questionamentos. Suas palavras estavam mais graves e secas, sua voz ainda mais profunda do que jamais ouvira, enquanto esfregava levemente um unguento parecido com um musgo escuro sobre a mão quebrada. O único som que se escutava era o leve crepitar dos ossos de Laertes retornando ao lugar. A dor marcava o rosto do mentor, mas ele já estava acostumado a ela. Nunca fora um guerreiro ou carregara quaisquer armas, mas ferimentos e ossos quebrados lhe eram quase familiares. Ainda seriam necessários vários dias até que a dor abandonasse por completo sua mão e esta restaurasse a destreza de antes, mas era o melhor que poderia fazer naquele momento. Com um longo suspiro a lhe escapar, fitou mais uma vez o norte, mas seus olhos agora se estreitavam, parecendo querer atravessar com o olhar as montanhas e ver algo muito distante, mas ao mesmo tempo próximo do seu coração. Havia algo a dançar neles, um brilho momentâneo que logo se desfez. Voltaram-se então para o chão sob os pés, detendo-se demoradamente na relva que crescia entre as pedras, antes de se erguerem umedecidos. O discípulo percebeu que o que tanto assombrara seu mentor nestes últimos dias deveria estar muito próximo, prestes a acontecer. Um sentimento de urgência pairava no ar à volta de Laertes, mas ele agora se mantinha calmo, sereno, com os olhos voltados para o céu a se desfraldar sobre eles, procurando preguiçosamente por algo entre os velozes fiapos de nuvens. Midler quase não percebeu a aproximação dos anões, tão absorto que estava em seus próprios pensamentos e dúvidas, terminando de forçar a proteção que Bharin amassara, para poder colocar a armadura.

– Para onde irão agora, senhor Zartan? – Midler chamou a atenção do anão para si, evitando que ele importunasse Laertes naquele momento – Meu mentor conhece todas as estradas que daqui partem e os lugares onde elas podem levar.

O anão olhou respeitosamente para Laertes, antes de responder.

– Meu caminho tem sido incerto e errante nestes últimos tempos, Midler Summerion, desde que deixei minha terra. Minha busca é por algo muito mais difícil de encontrar que joias enterradas ou tesouros guardados, – os olhos se voltaram para Bharin – mas que me encontrou quando eu não o buscava e que brilhou fortemente onde está mais escuro.

Midler virou o rosto para que o anão não visse o sorriso que não pôde evitar. Não era apenas seu mentor que falava por enigmas afinal. Em silêncio, penitenciou-se por fazê-lo, pois a sombra que perseguia Laertes parecia se adensar rapidamente.

– Como chuva, ela disse – o mentor sussurrava tão baixo que nem mesmo ele deveria escutar sua voz, enquanto seus olhos continuam a perscrutar o céu – Uma chuva sem nuvens...

– Deve ser um jovem muito digno, Midler Summerion – Zartan continuou sem perceber a reação do discípulo – Foi escolhido por seu mentor para dividirem a mesma estrada e esta não foi uma honra fortuita, tenho certeza. Homens como Laertes são mais raros do que pode imaginar e não erram em seus julgamentos.

Ao olhar novamente para Zartan, devidamente trajado em sua reluzente cota de malha, Midler não se sentiu desconcertado pelo elogio que julgava indevido, mas contagiado por seu entusiasmo. A voz do anão carregava uma sinceridade e inspiração que, mesmo humildemente, ele não podia contestar. Havia algo a emanar daquele valoroso guerreiro, além da nobreza e da autoridade que se mostravam sem esforço ou intenção. Algo que tocava fundo o discípulo e o fazia ver Zartan como mais do que um comandante nato, mas como alguém mais intenso e verdadeiro, quase paternal. De alguma forma em muito lhe lembrava de seu pai e de Laertes, e suas palavras se aplicam como um todo a si próprio. Midler tentou agradecer, mas percebeu que as palavras eram desnecessárias e o silêncio respeitoso era a melhor resposta que poderia dar.

Bharin se mantinha alguns metros afastado de onde os outros estavam, parecendo não se importar com o que poderiam estar conversando, limpando os muitos farelos de sua barba. Passou lentamente a ponta dos dedos sobre o fio do machado, analisando sem entusiasmo as marcas que a luta contra o discípulo haviam lhe custado, mas não era isto que o importunava, mas algo no olhar que Zartan dirigia a Laertes. Não era o respeito ou a gratidão de um guerreiro, que bem conhecia, pois não havia nenhum que pudesse se comparar a ele ou houvesse salvo a vida de seu amigo mais vezes do que Bharin. Mesmo assim, era algo que o anão nunca vira ou conhecera, nem mesmo conseguia discernir, mas que o incomodava mais que a profunda ferida em seu ombro. Com um grunhido, cruzou a pesada corrente pelo peito, colocando sua arma às costas e puxando o sujo capuz sobre a cabeça.

Não tem mais nada que nos interesse aqui, Zartan! Devemos continuar.

Ao contrário, meu amigo. Acredito havermos encontrado muito mais do que procurávamos, em grande parte por tua equivocada causa, abençoado seja. E ademais, para onde iríamos? Olhes a tua volta, Turbilhão. Não sabemos para onde estas estradas nos levarão, e se soubéssemos, para onde quereríamos ir? Seria leviano partirmos assim.

Bharin já havia se arrependido de haver dirigido a palavra a Zartan muito antes dele terminar, virando-lhe as costas e sentando-se impacientemente na baixa relva, apoiando a cabeça entre as mãos. Sabia agora que não sairiam tão brevemente dali.

Midler estava pronto para partir, a mochila presa às costas, por cima da grossa capa. Puxou com força a proteção em volta do pescoço, tentando afrouxá-la um pouco mais, mas ela não cedeu, continuando a incomodá-lo. Por fim desistiu, voltando a atenção para Laertes, que mantinha os olhos fixos no céu vazio acima deles. Midler nada pressentia, assim como a tranquila fisionomia de Zartan lhe dizia que o experiente anão também estava alheio ao que Laertes buscava, mas apesar do plácido olhar de seu mentor, tão desanuviado quanto à imagem que refletia, sua mão apertava com tanta força o longo cajado que fazia seu braço tremer levemente, indicando ao discípulo a inquietação que tomava seu interior. Com um profundo suspiro, Laertes baixou a cabeça, piscando longamente. Ao abrir os olhos, na direção de Midler, seu olhar estava abatido como o discípulo nunca vira e havia marcas da intensa tristeza que sentia em seu rosto. Por um breve momento, ele pareceu não ser mais do que um cansado e melancólico ancião, muito distante da imagem do vigoroso homem que realmente era. Midler não suportava ver seu mentor assim, mas não conseguiu desviar o olhar, que rapidamente se preencheu da mesma tristeza.

– Escondam-se, rápido! Todos vocês! – Laertes pareceu despertar subitamente de um triste sonho, a urgência em sua voz surpreendendo o discípulo, enquanto empurrava a ele e a Zartan para dentro da floresta, sinalizando para que Bharin os seguisse – Agora, já lhes disse! Vamos!

Midler olhou uma última vez para o céu, procurando por aquilo que sabia ser o sinal que Laertes tanto buscava, que havia lhe entristecido e alarmado ao mesmo tempo, mas tudo que viu foi um grande pássaro negro, como um imenso corvo, a voar muito acima em círculos, antes que as copas das árvores o ocultassem dos olhos. Um calafrio percorreu seu corpo quando a sombra da grande ave o encobriu, como se o calor de seu sangue houvesse sido subitamente roubado, e ele se sentiu grato pela cobertura que as folhas ofereciam, mesmo sabendo quão tênue era esta proteção.

Muito acima deles, um grito estridente ecoou até as distantes montanhas, quando dois olhos sem expressão brilharam subitamente. Haviam encontrado aquele que avidamente buscavam.


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