A Filha Dos Mundos escrita por Devill666
Esse artigo daqui a uma hora; essa reportagem para amanhã; adia o jantar; marca um encontro para terça; ele recusou? fá-lo aceitar; tu aí, desliga esse telefone....
- Saya, almoçamos?
- Hai
Saya vencera na vida, tornara-se rica, temida, poderosa; ninguém lhe fazia frente. Aos vinte e oito anos subira mais alto do que jamais alguém da sua idade o fizera; possuía um jornal de elevada reputação cujas críticas eram temidas e decisivas. Se no seu jornal viesse escrito que um determinado espectáculo era deplorável, esse espectáculo estava destinado ao fracasso.
Contudo, embora tivesse tudo o que se podia desejar, faltava-lhe algo que não podia descrever. Era como um enorme vazio; um vazio outrora preenchido com algo que não conseguia encontrar.
Levantou-se. O almoço! Considerava-o por vezes um desperdício de tempo, uma altura de convívio obrigatório em que se via perante os relatos enfadonhos da manhã que o namorado tivera ou confrotada com perguntas sobre a sua vida. Enfim, dissera que sim e agora tinha de ir. Sorriu ( nunca demonstrar fraqueza é a primeira das regras) e agarrou o namorado.
- Onde me levas hoje?
- A um sítio especial.
- Mmm, misterioso, perigoso....
- Nem por isso.
Pronto, perdera o interesse por completo. Saíram do grande edifício para a rua turbulenta, apinhada de gente apressada, preocupada, tal como eles, que não tinham reparado no círculo em torno da lua na noite anterior a anunciar que algo de especial ia acontecer, nem tinham visto uma águia cruzar os céus da cidade.
- Apanhamos um táxi, Saya?
- Lie. Sinto-me sufocar, preciso de andar.
- Sentes-te mal?
- Lie. É só o ar está pesado.
Ele olhou-a; como era estranha! E que estupidez vinha a ser essa sobre o ar pesado!? O dia estava lindo, o sol brilhava e, para fins de setembro, até fazia calor.
Continuaram a andar por ruas largas e movimentadas, ruas que corriam entre altos prédios como um rio corre entre as suas margens. Ruas carregadas de rostos tristes: a mulher que não consegue arranjar emprego, o jovem que volta para casa com uma negativa a História, a criança que não teve o brinquedo que acabou de pedir à mãe, o pai que sente a familia a afastar-se lentamente. Ruas cheias de gritos, do som dos carros, das buzinas, do ladrar dos cães, dos telemóveis a tocar. Ruas de uma cidade afundada na modernidade, nas novas tecnologias, na pressa e na solidão.
Passaram finalmente em frente de uma pequena pizaria. Entraram; lá dentro estava escuro. As mesinhas cirulares com toalhas de xadrez vermelho, as cadeiras de madeira escura e costas baixas e largas, o balcão de madeira comprido com bancos altos de quatro pernas, os quadros de Itália que povoavam as paredes e a porta de acesso à cozinha constituíam o interior do restaurante.
Saya não compreendia. Que tinha aquele lugar de especial? Não passava de uma simples pizaria! Agradável e sossegada, sem dúvida, mas mesmo assim banal.
- Então? Que tal a surpresa? - perguntou ele ansioso.
- É banal - respondeu Saya, ainda sem perceber qual o interesse daquele lugar.
- Banal? Foi aqui que começamos a namorar. Não te lembras? - Ele parecia quase eufórico.
- Oh! Claro que me lembro - disse e beijou-o ao de leve na face - Arigatou pela surpresa.
Fingiu contentamento. Para ela a resposta ideal teria sido « Lie, não me lembro. Gomenasai». Mas não seria a resposta correcta. Mostraria transparência total e ele não ficaria satisfeito. Numa sociedade que esperava ansiosamente que ela falhasse, não podia dar ao luxo de ser sincera e muito menos de que se pudesse sequer sussurrar que fora mal educada. Sentaram-se e pediram:
- Uma pizza de frango, molho picante, pepperoni e extra mozzarella, para mim, e uma de atum, milho, bacon e ovo cozido, para ela.
O atendente saiu:
- Estás estranha hoje.
Ela olhou-o. Que queria ele dizer? Que ela não agira da maneira correcta com ele? Teria deixado transparecer a preocupação relativamente à estupida sensação de vazio? Não. Era impossivel. Enfim, não compreendia a razão daquela observação. Talvez tivesse sido apenas um comentário menos feliz num dia em que ela não se encontrava de muito bom humor.
- Não digas disparates, Kohaku - respondeu por fim.
- Não são disparates - retorquiu ele - Parece que não estás neste mundo ...
- Chega, Kohaku! - perdera definitivamente a paciência.
- Lie, não chega. - ele parecia furioso e ao mesmo tempo triste - Primeiro aquele disparate de te sentires a sufocar.... E tens passado o dia a ignorar-me. Pensas que não o vejo? Que não o sinto?
- Como te atreves?
- Aishiterumo, mas não me sinto amado. Eu preciso de ser amado! - perdendo toda a compustura, Kohaku berrou bem alto as últimas palavras.
- Acabou, Kohaku. De facto, nem sei porque é que te aturo. És apenas mais um jornalista do jornal - a sua voz subira acima do tom que ela queria usar.
- Apenas um jornalista?! Sou o melhor jornalista daquele jornal.
Era bem verdade. Era o mais aplaudido, o mais lido, o mais respeitado. Só ele estaria em condições de dirigir aquela redação de jornal se lhe acontecesse alguma coisa. Serviram as pizzas. Finalmente calma, pegou na faca e no garfo.
- Mesmo assim... apenas um jornalista - e começou a comer.
Kohaku sabia que a conversa tinha terminado. Haviam tido uma discussão. Passariam algum tempo a tratar-se com indeferença. Ao fim de uma semana voltariam um para o outro. Não falaram mais e o resto do almoço decorreu com uma paz aparente e uma indeferença notória.
GLOSSÁRIO:
Kohaku - namorado de Saya e jornalista do seu jornal
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