Trevas Imortais escrita por Renan Colzani


Capítulo 1
Alta Voltagem, Uvas Multicoloridas e tudo o mais




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Mike Martinés estava sentado na poltrona de seu quarto, jogando videogame com seu amigo. Era meado de junho. Mike ia fazer 11 anos no dia seguinte, dia 21. Sua atenção estava completamente virada ao jogo, já que prestar atenção no resto era difícil.

Desde pequeno as pessoas lhe diziam que era burro ou algo pior, já que sempre tirava notas baixas na escola, e quando um professor lhe pedia para ler algo, as palavras simplesmente saltavam da página, e ele se sentia tão confuso que simplesmente desistia e dizia que não conseguia fazer aquilo.

Fora expulso de muitas escolas, e, depois de tantas expulsões, a maioria das escolas em Nova Iorque se recusavam a aceitá-lo. Até mesmo as particulares. Teve aulas particulares de tudo quanto é matéria, até que sua mãe desistiu de tentar ensiná-lo.

Tinha alguns hábitos estranhos, como os de ficar observando raios pela janela quando relampejava. A maioria das pessoas tinha medo de tempestades, mas Mike não. Ele amava as tempestades, os raios e tudo o mais. Sua mãe disse que seu pai era assim, mas, infelizmente, Mike nunca conhecera o pai.

Certa vez, pegou sua mãe com um pedaço de madeira na mão, que suspeitava ser um pedaço de galho seco. Porém, quando a mãe pronunciou uma palavra (que Mike achava ser em latim), uma luz apareceu no ar, e depois se transformou em uma imagem. Na realidade, era mais como uma vídeo conferência. A sua mãe, Kika Martinés, da qual herdara o sobrenome latino, conversava com um homem de ar imponente e barba muito branca. Os olhos eram como os seus; azuis elétricos, como se raios brilhassem neles, principalmente quando se estressava. Mike chegou a ver o homem se estressas, e se sentiu nauseado ao ver que sua pupila se fechara tanto, que tornou-se quase invisível. Raios brilharam em sua íris, assim como acontecia com Mike. Estranhou aquilo, mas depois percebeu que era besteira e abandonou uma ideia sinistra que invadia sua mente.

Desde que mudara para a Escola Secundária do Brooklyn, seu único amigo era Federico, um garotinho estranho, com uma aparência de quem estava pelo menos três atrasado na escola. Possuía um cavanhaque ralo, cabelos emaranhados, e quando ria, emitia uma espécie de balido histérico.

Jogava videogame com ele todos os dias depois da escola, para esquecer a terrível lembrança da professora de História Americana, e do diretor Parreira, uma baixinho que sempre usava camisa havaiana e cheirava a vinhas, mesmo que aquilo não parecesse apropriado para uma figura de autoridade em uma escola.

Todos os dias precisava ir àquele lugar, e para ele era o mesmo que ter de ir a uma sessão de tortura em período integral. Federico, o Fed, nome que combinava muito bem com o seu cheiro, concordava em tudo com Mike, não somente sobre a escola. Poucas vezes tinha opinião contrária, e ficava dizendo coisas como “preciso de proteger disto”, ou “preciso te salvar daquilo.

Fazia alguns meses que sua mãe vinha lhe escondendo algo. Sabia disso pelos seus olhos. Kika era alta e muito bonita, com cabelos louros e olhos castanhos suaves, que passavam a Mike uma segurança e conforto que ninguém mais o passava. Porém, desde fevereiro, quando foi anunciado que teria de ser avaliado em um certo ministério suspeito do qual não teve informação alguma, sua mãe o omitia tudo em relação àquilo, e falava muito menos sobre seu pai.

Mike estranhou a situação, já que não era normal de sua mãe omitir algo dele. Dizia sempre: “É complicado, o Fed entende...”

E ele se perguntava: “Como pode o Fed saber se nem sequer é da família?!”

O videogame era seu refúgio. Jogava para poder viajar em outros mundos. Sua mãe dizia que ler era melhor, mas, para Mike, ler era tão difícil quanto levantar um elefante de oito toneladas.

Aquele fora seu último dia de aula. Estava feliz por se livrar de tudo aquilo, e, amanhã, afinal, era seu aniversário. Sua mãe ia fazer um bolo de massa branca e cobertura de coco, o seu preferido, e provavelmente ia decorar com um raio em formato de Z, como sempre.

Para ele, aquilo era simplesmente um bolo de aniversário, mas, para sua mãe, a mera presença do raio em Z em cima da cobertura de coco era algo que precisava ser respeitado e tratado com cautela.

Dentro da massa, sua mãe colocava balinhas que explodiam na boca, e isso sempre fascinara Mike. Talvez sua mãe colocasse todas aquelas coisas explosivas, e o raio em cima do bolo porque ele era apaixonado pelos relâmpagos.

Esperava ansiosamente pelo dia seguinte, pois ganharia o presente habitual de sua mãe, o seu preferido, uma viajem para Long Island, perto de uma colina com um pinheiro no alto, no qual sempre acampavam. Era seu acampamento de férias preferido. Montavam barraca próximo ao pinheiro. Por algum motivo, sua mãe nunca passara dele, e, toda vez que Mike o tentava, ela o puxava com força pelo braço e dizia que não podia fazer aquilo, somente na hora certa. Mike queria que a hora chegasse logo.

Passavam das 23 horas, e agora eles desligava o videogame e se preparava para dormir. Fed ia passar a noite lá.

– Quem vai ficar mais velho amanhã? – caçoou Fed.

– Sou eu! – riu Mike.

Os dois se deitaram. Naquela noite, Mike teve pesadelos terríveis. Sonhara com a colina em que acampava com sua mãe, e desta vez não eram somente Kika e Mike, tinha Fed também, o diretor Parreira, com sua habitual camisa havaiana e seu cheiro de vinhas e o homem barbudo que certa vez vira conversando com sua mãe.

Todos estavam ao redor de uma fogueira. Havia também uma mulher com ar sábio e cauteloso. Usava um chapéu de bruxa e segurava um graveto igual ao da mãe, mas com detalhes de floreios.

Todos conversavam entusiasmados, porém, não pareciam alegres. Era uma espécie de reunião, e alguém apertara o botão Mute no controle, porque as bocas mexiam mas as vozes não saiam.

Ao redor do diretor Parreira, cresciam parreiras de uvas de todas as cores, e ele segurava uma Diet Coke. O homem de barba branca segurava um cilindro de sessenta centímetros de comprimento muito fino, com explosivos ao redor. Em sua camiseta se lia “Cuidado, alta voltagem”. A mulher com aparência de feiticeira observava Mike com olhos astutos. Depois, quando todos terminaram de conversar, o diretor se transformou em uma bela parreira de uvas, o homem de barba explodiu em um raio e sumiu, e a bruxa transformou-se em um belo gato listrado e saiu correndo colina abaixo.

Se apavorou ao olhar para o lado. Viu que Fed tinha pernas de... burro?! “Que coisa estranha”, pensou Mike. Depois a cena mudou. Estava em um sótão, e havia uma menina ruiva. Ela virou o rosto para ele e exibiu sardas alaranjadas. Sorriu para ele e falou com uma voz rouca e muito baixa. Estava distorcida pelo som agudo que soava em seu ouvido.

Recuou um passo, e então tropeçou em uma escada e caiu. Acordou com um susto, e notou que já passavam das 10 da manhã. O sol brilhava através da janela. Verão.

Sua mãe entrou no quarto cantando uma canção de aniversário desafinada. Fez Mike levantar e lavar o rosto, e logo depois chamou-o na cozinha. Fed estava lá, arrumado, com pernas humanas novamente.

Então começou mais uma cantoria; “Aha! Uhu! O Mike eu vou comer seu bolo!”

Mike assoprou as velas, pegou um pedaço, mastigou, e sentiu o suave estalar das balinhas na massa. Sua mãe lhe disse que todos iriam juntos a colina, inclusive Fed. Mike entrou em êxtase. Ia ser mais divertido ainda com um amigo por perto. Comeu mais uma fatia e depois se sentou.

O restante do dia foi em função da viajem, até que chegaram às 15 horas e embarcaram no Toyota de Kika. Demoraram cerca de duas horas para chegar a Long Island. Subiram a colina, mas, ao chegarem lá, Mike notou que somente ele e Fed carregavam mochilas. Sua mãe olhou-o profundamente nos olhos.

– Eu fico aqui, vocês vão. – Kika disse com tristeza.

– Mas, mãe... do que você tá falando? – Mike estava assustado.

– O meu limite é esse. Você precisa ir. Agora que completou 11 anos, talvez as coisas não sejam mais as mesmas. Desçam colina abaixo, encontrem uma pedra cinzenta com um raio inscrito, e então toque o raio de olhos fechados. Conte até dez e espere.

Mike estava confuso, obviamente. Sua mãe pirara, só podia.

– O... o Fed v-vai lhe explicar t-tudo! – Kika gaguejou por último, e Mike notou que não adiantaria discutir.

Desceram colina abaixo, sem destino, sem rumo, somente a procura de uma pedra com um raio. Mike parou e pensou: “Essa foi boa!”. E continuou a caminhar. O sol agora se punha na baia de Long Island, e, ao fundo, mesmo num céu sem nuvens, Mike viu um raio brilhar.

Por um momento, sentiu que aquele era seu lugar.


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