O Livro Da Bruxa escrita por Vega Sage


Capítulo 14
Armaduras


Notas iniciais do capítulo

Todos usamos uma armadura
seja de dor...
seja de paixão...
seja de tristeza...
seja de força...
seja o que for
todos usamos armaduras



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Convidei-a para almoçar num restaurante de frente para o mar.Era um dia especial,e eu queria um almoço à altura.

Quando entramos no restaurante,faltavam alguns minutos para o meio-dia,e poucas pessoas estavam almoçando naquele horário.

O maître nos recebeu e indicou uma mesa com excelente vista da praia.

Um garçom trouxe os cardápios e o antepasto.Pedi água e dois cálices de vinho branco enquanto escolhíamos no menu.

Quando o vinho chegou,brindamos à nossa viagem.

-Fico impressionado com a forma como você encara a vida-comentei-Estou aprendendo mais hoje do que nos últimos dez anos.

-É simples.Basta ver cada situação por mais de uma perspctiva...É só uma questão de treino-ela disse,modestamente.

Peguei uma margarida do arranjo de flores que enfeitava nossa mesa.

-Quero oferecer-lhe esta flor como agradecimento pelo maravilhoso dia que você está me proporcionando.

-Obrigada...

Ela ficou algum tempo olhando para o presente.

-Esta flor,por exemplo.Você estudou botânic,não é?-perguntou.

Não entendi a súbita mudança de assunto.

-Botânica?Estudei no colégio,mas faz muito tempo.Não me lembro mais nada-justifiquei.

-As plantas são seres vivos,e as flores são seus órgãos reprodutivos,sabia?-perguntou.

Enquanto eu tentava entender aonde ela queria chegar,ela continuou olhando para a flor com uma expressão divertida.

-O que você acha de alguém que arranca o órgão sexual de outra espécie e o oferece como presente?-perguntou,recriminando-me.

-Nossa!Nunca tinha pensado nisso!É terrível!Nunca mais vou dar flores-exclamei.

Olhei para o enfeite de flores sobre a mesa e imaginei uma noiva carregando um buquê de órgãos genitais.Não pude deixar de riri do absurdo.

A bruxa pegou um pedaço de pão e começou a passar manteiga nele.

-Não quis estragar o seu presente,apenas treinar um pouco mais ver o mundo por um ângulo-disse.

Ela colocou um pouco de sal sobre a manteiga.

-Quanto a nunca mais dar flores,é um exagero de sua parte.Elas são maravilhosas e alegram nossa vida.Adoramos receber flores.Para resolver o problema,basta presentear com flores plantadas,e todos ficarão felizes,incluindo a plantinha.

-Você adora me solapar,não é?

-Solapar é um conceito interessante.De onde você tirou isso?-indagou,interessada.

Comecei a contar uma longa história.

-Quando estava na escola de medicina,eu e uma amiga adorávamos um joguinho que batizamos de solapagem.Tínhamos descoberto que a palavra"solapar"significa minar,arruinar,demolir...E este era exatamente o objetivo da brincadeira.

Fiz uma pausa para tomar um gole de vinho.

-Funcionava assim:quando um de nós contava algo que havia feito ou pretendia fazer,o outro ouvia com grande atenção,procurando por um ponto vunerável que pudesse demolir toda a estrutura,como você fez ao dizer que as flores são os órgãos sexuais das plantas.Quando achávamos o ponto,disparávamos a observação demolidora.Sempre que isso acontecia,ríamos muito e comemorávamos a solapagem.Acho que nosso prazer era comparável ao das crianças que fazem castelos de areia e depois esperam ansiosamente a maré subir e desmanchá-los.

Ela me ofereceu o pedacinho de pão com manteiga que havia preparado.Aceitei o mimo.

-Eu estava com saudade da brincadeira de solapagem.E hoje descobri a mestre suprema desse jogo-comentei.

-Demolir nossos castelos mentais permite-nos evoluir,pos,quando um é derrubado,podemos construir outro melhor com a experiência adquirida.

-É verdade.Um professor me disse,certa vez,que só estamos prontos para fazer algo no momento em que terminamos de fazê-lo,pois é apenas nessa hora que conhecemos todas as dificuldades.

Ela começou a preparar outro pedacinho de pão.

-Por isso é importante construimos de demolimos nossos castelos.Precisamos abandonar nossas certezas para podermos crescer.P problema é que achamos as mudanças assustadoras.Sair da rotina nos deixa expostos e vuneráveis-comentou.

De repente,ela interrompeu o que estava fazendo e olhou para dentro do restaurante.

-Veja,lá está uma amiga que vive enfrentando esse problema-disse.

Voltei-me rapidamente,mas não vi ninguem.Imaginei que a pessoa tivesse passado antes de eu me virar.

-Quem era?Não consegui ver-reclamei.

-Não consegue ver porque não quer...Ela ainda continua lá-disse,sorrindo.

Tornei a olhar.Não havia ninguém na direção apontada,apenas algumas mesas vazias e um enorme aquário no fundo do restaurante.Achei que ela estivesse brincando comigo.

-Desculpe-me por ser um péssimo aluno,mas ainda não consegui encontrá-la.Ela é invisível?-perguntei.

-Venha comigo.Vou lhe mostrar!Ela se levantou,pegou-me pela mão e levou-me até o aquário.

-Veja!Aí está eça-disse,apontando para uma enorme lagosta que caminhava entre as pedras do fundo.

Minha cara de interrogação deve ter sido tão expressiva que ela começou a explicar antes de qualquer outra manifestação de minha parte.

-A lagosta-disse-,diferentemente da maioria dos animais,possui o esqueleto do lado de fora do corpo.Sua carapaça é uma armadura que a protege das agrssões do mundo.Semelhante aos cavaleiros da Idade Média,dentro de sua armadura ela é praticamente inexpugnável.

Ela tocou de leve o videro,como se estivesse acariciando o crustáceo.

-Nós também desenvolvemos uma carapaça semelhante à lagosta-continuou.-Estabelecemos padrões e os utilizamos para nossa proteção.A única diferença é que nossa armadura é feita de rotinas e preconceitos.

-Por exemplo?

-Crenças do tipo:devemos sempre seguir o grupo;quem não frequentou a escola não sabe nada;o trabalho tem que ser desagradável;as pessoas separadas são infelizes;é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente;e assim por diante.

-Com este ´ltimo eu concordo.Com certeza é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente.

-Acho melhor ser rica com saúde do que pobre e doente-ela retrucou,séria.

Levei quase dois segundo para perceber o jogo de palavras.Quando entendi,desatei a rir.

-Você tem razão,é muito melhor-admiti,ainda rindo.

-Este é um exemplo típico de nossos padrões mentais.Parece que temos a obrigação de encontrar sempre um aspecto ruim para compensar algo que acreditamos ser bom.Isso são distorções de nossa cultura.Só os sofredores entrarão no reino do céu é o maior disparate que já ouvi.Deus não quer assistir ao sofrimento de Sua própria criação.Ele quer que sejamos ricos,com saúde,belos,inteligentes,justos,felizes e tudo maravilhoso que pudermos imaginar.Fica a nosso critério estabelecermos nossos próprios limites.

Ela tocou novamente no vidro do aquário.

-Somos iguais a esta lagosta:criamos uma carapaça para nos proteger,mas ao mesmo tempo limitamos nosso espaço para crescer...Para crescermos é necessário aprender sempre novos números no trapézio,dar saltos mortais no escuro,criar brincadeiras.O mais triste é que muitas pessoas só descobrem isso quando chegam ao fim da vida.

-Como se resolve isso?

-Da mesma forma que a lagosta.

-E como ela o faz?

-Quando sente que a carapaça está muito apertada,ela simplesmente a abandona.

-Parece fácil...para uma lagosta-murmurei.

-Não é fácil,não.Sabe por quê?

Balancei a cabeça,revelando minha ignorância sobre o assunto.

-Primeiro porque é bastante complicado sair da carapaça antiga.Depois,porque,quando a lagosta abandona sua armadura,torna-se vunerável e exposta.Qualquer peixinho pode mordia-la sem dificuldade.Imagine então como ela deve se sentir em relação aos grandes predadores...É um período de risco e angústia que dura bastante tempo,até a superfície de seu corpo endurecer e formar uma nova proteção-explicou.

-Não sei se estou pronto para arriscar ser devorado como nossa amiga aqui-confessei.

-O risco faz parte do processo de crescimento-a bruxa sentenciou.

Fiquei em silêncio observando a lagosta.

A bruxa olhou para mim.

-Em seu caso,seu proteção está no fato de você acreditar que pode passar a vida contando histórias aprendidas pela experiência dos outros.Como disse,vim ajudá-lo porque está na hora de se soltar e partir para suas próprias viagens.

-Tomara que não existam peixes muito grandes e famintos por perto-declarei.

-Com certeza eles existem...mas você ira sobreviver.Venha,vamos voltar à nossa mesa e pedir o almoço.

-Tudo,menos lagosta!-gritei.

Ela riu,pegou-me carinhosamente pela mão e conduziu-me de volta à mesa.


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Notas finais do capítulo

A nossa proteção
A nossa vida
Usamos armadura para nos proteger



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