Acordei empapada de suor, assustada e olhando para os lados. Tenho certeza que vi... que estavam todos... eles... Meu coração começou a acelerar ainda mais e tive certeza que ia ter uma possessão de poderes. Quando senti algo acertando minha bochecha, arregalei os olhos e quase ri ao perceber que era minha irmã em seu doce sono sem previsões. Bem, que bom. Me disseram que a pior parte ficou pra ela, mas nunca teve nenhuma visão, apenas ficava um pouco doente de vez em quando, o que não queria dizer nada, pois ela tem asma. Uma gota de suor caiu de minha testa em seus dedos, fazendo-a enrugar a testa e virar para o lado. Suspirei de alívio e voltei a dormir.  Foi apenas um sonho, todos continuam aqui.

Apenas um sonho.

                                                    -*-*-*-

Três dias antes

A areia se infiltrava por entre os meus dedos do pé enquanto corria pela praia atrás de minha irmã. Pouco tempo faltava para o nosso aniversário. A ideia de termos nascido no mesmo dia sempre me fazia sorrir e ela se gabar. Apesar de ser completamente diferente de mim, fomos concebidas e criadas dentro de um mesmo espaço, no mesmo dia, e isso me dá um pouco de esperança. Ao contrário de mim, ela é uma pessoa que ri o tempo todo, nunca está triste e faz com que todos ao seu redor a amem. E eu bom... a acompanho, e ela está sempre ali por mim, e isso significa muito mais do que qualquer um poderia compreender.

Ter poderes parece ser o sonho de consumo geral, mas o que as pessoas não esperam é que realmente... pesa, o seu coração pesa, e você vai ficando com mais medo a cada dia. A parte de poder liberar meu espírito, fazer nevar com a força de vontade é maravilhoso, pois por uma única vez eu sinto como se fosse útil. Mas o resto me faz vontade de apenas... deixar tudo queimar até o íntimo. Eu não apenas vejo o futuro... eu vou nele. E não apenas as boas partes, na verdade quase nunca vejo nada que faça com que essa agonia desapareça... apenas pessoas sendo torturadas, grávidas perdendo bebês brutalmente e crianças chorando, completamente sozinhas. Algumas vezes consigo mudar o que está para acontecer, mas na maior parte das vezes é vago, fica apenas o sentimento da dor se espalhando por minhas pálpebras. Minha única ponte ao mundo real é a minha irmã, com seus sonhos e papos sem sentido. Ela é a minha única alegria.

Parei no meio do caminho pra pensar e a observar brincar com a água enquanto me chamava para junto dela. Mas nem prestava mais atenção. O mar estava particularmente violento hoje.

Dois dias antes

Hanami: o que vocês não entendem é que uma escova de dentes sem o seu cabo é muito mais eficiente que a normal. Ela consegue entrar em lugares desconhecidos da boca. – segurei a risada ao vê-la se enrolar toda pra abrir o pote de geleia. Seu risinho convencido apareceu. Não se cansa.

Aira: Você nunca se cansa de ser interminavelmente estranha, Nee? – ela arrancou a tampa com um ar de triunfo.

Hanami: Jamais!! Ser estranha é minha especialidade, obrigada. – revirei os olhos, apesar de amar isso nela. E sei que ela sabe também. Mas nenhuma de nós precisa admitir isso. Virei o olhar pros meus pais, que riam em silêncio, e apertavam a mão um do outro como se estivessem orgulhosos do trabalho que tiveram em nos transformar nas pessoas de hoje. Ou apenas estavam se perguntando como a Hanami era tão esquisita. Soltei uma risadinha e Hana-nee me passou a geleia, presunçosa.

Pai: Eu nem teria tido problema pra fazer isso, em primeiro lugar. –comentou rindo da cara de ofendida da Hana-nee.

Mãe: Qualquer um teria sido mais rápido que isso! – abriu um sorrisinho irônico enquanto cortava um pedaço de sonho e colocava no prato.

Lambi os lábios para aproveitar mais o açúcar do sonho. Mas o gosto logo se desfez na minha boca. Percebi que estralava os dedos, nervosa. O que havia de errado com o dia de hoje? Era apenas mais uma manhã comum, com minha irmã fazendo gracinhas e meus pais... bom, sendo meus pais. Amanhã seria nosso aniversário de 12 anos e tudo estava correndo perfeitamente bem, afinal seria o dia que nossos poderes se firmariam. Estava tudo... certo. Então porque me sentia tão inquieta? De repente o sonho perdeu o doce.

                                                         -*-*-

Meus dedos batucavam pela cama, enquanto eu tentava permanecer com a cabeça ali. Minha boca gargalhava, e meus olhos observavam Hana-nee dançar, mas minha mente procurava insamante por informações. A cada momento eu sentia mais a sensação de algo estar errado, mas não conseguia alcançar a resposta, como se estivessem além dos meus poderes. Isso nunca tinha acontecido. Estava quase esgotando minha capacidade e mesmo assim continuava no escuro. Mas tudo bem, amanhã é nosso ritual de magia, então com certeza estarei mais forte pra descobrir qual é o meu problema, ou seja lá o que seja essa sensação. Posso ter comido algo ruim, pode ser apenas o riso que não para, qualquer coisa, qualquer coisa...

Mãe: O que vocês estão destruindo?! – minha mãe abre a porta com um baque, com um sorriso de diversão, seguida do meu pai.

Hanami: Eu estou destruindo a sanidade da minha amada irmãzinha! – ela disse fazendo uma pose inocente.

Aira: Irmãzinha? Eu sou tipo, MUITOS segundos mais velha que você! – abri um sorriso e pulei do beliche. Ela deu de ombros.

Hanami: Pareço mais velha que você! – piscou os olhos repetidamente. Mostrei a língua pra ela, que riu.

Pai: As duas são lindas igualmente! – nosso pai nos juntou em um abraço conjunto. Também, sendo grande que nem um lenhador, nem parecia um comerciante. Sua barba vermelha roçou nossas testas.

Aira: Igualmente? Na verdade nem sei como somos gêmeas. Somos muito diferentes!

Mãe: Verdade, Aira querida. Hanami tem um rosto mais fino e um sorriso torto, e o cabelo é mais claro. O seu é quase preto e bochechas marcadas e rosadas. Mas vocês não precisam ser exatamente as mesmas pra serem gêmeas. – ela veio com seu vestido bufado balançando pra lá e pra cá até nós, fazendo um carinho em nossos rostos. – Só precisam ter o mesmo coração bom conectado, e isso vocês têm. – abriu um grande sorriso, coisa que eu amava nela. A sensação ruim diminuiu. Hana-nee me cutucou com o cotovelo.

Hanami: Olha só que profundo!! – ela brincou, mas dava para perceber pelo brilho nos seus olhos que estava emocionada. Eu também mal podia disfarçar. Ela passou a mão nos olhos discretamente. – Mas e aí, por que vieram aqui, senhores pais? – meu pai se juntou a minha mãe.

Mãe: Só queríamos avisar que vamos a uma viagem de negócios hoje. – toda a minha felicidade começou a murchar. Mas e quanto a...

Hanami: Como assim? E o nosso aniversário amanhã? Precisamos de vocês lá! Não temos mais nenhum parente! E também, nós...

Pai: Calma filha! Será só por hoje... e também é uma desculpa pra trazer qualquer presente que vocês pedirem das terras do leste. Sei como amam antiguidades. – ele abriu um sorriso caloroso, que mal aparecia por causa de sua barba. – Nós iremos tentar voltar antes da Meia Noite de amanhã.

Quase dava pra ver a ansiosidade subindo pelo meu corpo. Meia Noite, a hora das bruxas, nossas antepassadas. E a cada doze anos o seu estilo de magia é oficializado, melhorado, mudado... e amanhã será primeira vez que vamos passar por isso. Virei-me pra Hanami, que mal podia disfarçar, mexendo na barra desgastada do vestido. Era um costume que acabava com boa parte de suas roupas, e eu não pude evitar sorrir.

Hanami: As terras do leste? Vocês tem certeza?! É tudo tão raro e caro! – seu rosto sorria, mas eu podia ver a preocupação em seus olhos.

Mãe: Por vocês a gente iria até as Províncias dos Vikings. – ela sorri calorosamente, e qualquer suspeita daquele sentimento que eu estava sentindo sumiu. – Além do que, é a primeira Meia Noite de vocês! Estamos tão orgulhosos! Já nem me lembro das minhas épocas de bruxa... – vejo passar uma sombra de tristeza por seu belo rosto, e sinto uma pontada. Ela desistiu da magia por nós... mas logo ela se recompõe.

Pai: Então, o que as minhas meninas vão querer pra comemorar? – rio por perceber que ele parece estar ainda mais animado que nós.

Aira: Acho que é bem óbvio que eu gostaria de um Cachimbo dos Sonhos! – exclamo, imaginando como seria incrível ter um desses. Viajar pelo sonho das pessoas! Gostaria de me especializar nessa área...

Pai: E você, Hanami?

Hanami: Eu acho que... uma escama... – ela engole em seco, nervosa. – uma escama das Árvores Ancestrais?...

Todos ficamos em silêncio. O sorriso constante de mamãe fraquejou, papai pareceu um pouco mais velho, e o meu ar parecia ter sido soprado pra fora dos meus pulmões. Que pedido era esse? Qual tipo de magia a minha irmã tinha contato? Árvores Ancestrais são conhecidas por serem impregnadas todo o mau agouro... tristezas, guerras, todas essas memórias ficam presas em suas escamas. Pode ser um instrumento usado pro bem, que retira os maus sentimentos, mas ao mesmo tempo pro mal, jogando todo o desespero das escamas em alguém. O que possivelmente ela poderia querer com isso?! Mas logo todos voltamos ao normal. Ela não poderia querer isso por outra razão que ajudar os outros... Poderia?

Pai: É claro filha! Tudo por vocês! – ele sorriu novamente, e um sentimento que não compreendi muito bem me atingiu. Mamãe encarava Hanami, tentando entender. Hanami voltou a sorrir e fazer piadas, e tudo pareceu voltar ao normal. Mas não sei por qual motivo, eu não conseguia fazer outra coisa que senão fingir.

                                                        -*-*-

Hanami: Nee-chan para de andar em círculos, está me deixando mais nervosa ainda! – ela rugiu com o rosto corado e a testa enrugada. Eu respirei fundo e tentei continuar parada, mas o movimento sempre voltava por algum outro membro do corpo. Esse é o problema da Onee, toda vez que bate a ansiedade ela fica extremamente irritável sobre tudo. Suspirei, quase sem paciência. Por que a Meia Noite nunca chega?! E mais importante: por que nossos pais nunca chegavam?!

Pensei que ia cair desmaiada de tanta aflição, quando vi a comitiva deles entrando no parque. Levantei-me do chão de terra sacudindo o vestido e o afofando. Sorri ao pensar que logo o tecido branco se tornaria de outra cor quando a minha magia fosse oficializada... Rosa, a magia do contato? Branco, a magia dos sonhos? Vermelho, a magia dos sentimentos? Amarelo, a magia da fortuna? Varia de todas as cores mais conhecidas até as menos, que são as mais raras, de famílias de longuíssimo prazo. E a magia Preta... que também viaja pelos sonhos, mas apenas pelos... bom, vamos resumir como ruins.

Hanami veio até mim, fingindo não estar inquieta. Segurei sua mão, sabendo que logo finalmente seria a cerimônia. Tentava imaginar como seria, enquanto corria os olhos pelos homens de preto a minha frente, procurando por meus pais.

Aira: Hana-chan, você consegue enxerg... – quando virei para olha-la, lagrimas corriam de seus olhos, que encaravam o nada, e sua mão começou a apertar tanto a minha que achei que fosse sangrar. – Nee-chan o que foi?! – mas antes que eu pudesse estender o outro braço pra tocar seus ombros, ela começou a gritar desesperada, se jogando ao chão e o espancando, mesmo que estivesse cheio de raízes.

 Fiquei paralisada encarando enquanto se abriam cortes em suas mãos e braços, e a comitiva tentava para-la. Tentei entrar por dentro de sua mente pra ver o que estava acontecendo, mas a única coisa que consegui enxergar foi escuridão e várias dela gritando “não” e “é minha culpa” repetidamente. Estranhamente não consegui entrar completamente em seu sonho, como se tivesse uma barreira, mas essa era a menor das minhas preocupações.

Aira: O que está acontecendo? Por que ela está gritando? E cadê meus pais?! – os homens se entreolharam, receosos. Um sentimento de medo me preencheu, e minha boca ficou repentinamente seca. – O que foi? Eles não conseguiram chegar a tempo?!

Homens de Preto: Aira-chan, eles nunca vão conseguir chegar a tempo. – meus olhos começaram a se encher de lágrimas, e senti a negação enquanto eles continuavam falando e falando insensivelmente. – O navio bateu nas pedras no caminho, durante uma tempestade. O caminho que fizeram...

Hanami: por onde eles estavam passando?! – de repente ela tentou gritar, rouca. Eles tentaram relevar, mas ela pulou como um animal em cima deles, e o olhar dela me fez recuar alguns passos. - Eu fiz uma pergunta!!!

Homens de Preto: Era a área das Florestas Ancestrais. O navio foi achado nas rochas que as circundam.

Em meio ao nebuloso que tudo se transformou enquanto eu desmaiava, vislumbrei Hanami em um vestido Preto.

CONTINUA

XOXO