Ismália escrita por Tia Anette Atlas


Capítulo 6
Parte v – exploda-me


Notas iniciais do capítulo

Se vocês ainda existem, espero que gostem.
O final chegou, assim voltamos ao começo.



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Talvez, de todos os dias em que eu dormi e acordei pensando que tudo estaria resolvido e que ninguém havia morrido, nem sido preso, e eu não estava prestes a perder meu emprego e ter que sair daquela casa por não ter dinheiro, os dias em que mais me encontrava perdida foram os que eu decidia ir atrás de Alan.

Após o velório de Sebastian, ele estava estranho. Evitando nossos velhos assuntos, evitando fumar, se empenhando de mais no trabalho. Às vezes ele ficava até mais tarde, coisa que odiava fazer.

– Estamos sozinhos, Ismália. – ele dizia. E quando falava isso eu percebia que ele queria dizer que ele não tinha a mim e nem eu teria a ele. Evitei esse pensamento sempre.

O tempo estava passando e as coisas estavam difíceis de aguentar sabendo que eu estava perdendo tudo. Eu estava sozinha em casa, a achando grande demais para mim, quando alguém tocou a campainha. Claro, esse tipo de noticia não demoraria a chegar aos ouvidos da minha família. Era minha mãe.

Pedi pra que ela entrasse, ofereci água, café, ou qualquer coisa que a fizesse pensar que eu estava bem. Claro que eu não estava, eu estava me corroendo de ódio por tudo ao meu redor.

– Querida, eu andei pensando – falava minha mãe – e conversei com seu irmão e seu pai. Sabemos que está em um momento de dificuldade e queremos te ajudar. – eu não dizia nada, apenas a encarava esperando que ela fizesse a proposta que viera pra fazer – Por que não volta a morar conosco? Podemos refazer seu quarto, você leva suas coisas...

– Não, mãe. Obrigada. – eu disse antes que ela terminasse. Ela era doce e gentil comigo, mas eu não caberia mais em um quarto. Eu havia feito a minha vida e sentia que a casa cheia de limitações e modelos de meus pais não me caberia bem.

– É por causa de seu irmão?

– Não. Atila tem suas convicções, mas eu não ligo pra isso.

Contornei o assunto e tentava falar de outras coisas para que minha mãe não perguntasse sobre eu voltar a sua casa de novo. Funcionou bem, até a hora de ela ir embora. A conduzi até a porta e antes de ir ela me abraçou dizendo:

– Sempre teremos um lugar pra você. Repense se necessário.

Não respondi mais uma vez. Ela foi embora me olhando triste e doce. Eu a amava, mas não me sentiria confortável naquela casa, cheia do que me sufocar outra vez.

Alguns dias se passaram, eu estava de saída para o trabalho com minha bicicleta quando um carro parou na frente de casa. O motorista desceu do carro, era Atila. Logo de cara achei estranho ele ali. Seus olhos azuis estavam com as voltas rosadas de raiva mais uma vez. Fingi que não o vi, estava o ignorando, e já montava em minha bicicleta quando ele subiu apressado na calçada e me segurou pelo braço.

– Escuta aqui! – ele começou – Eu sei que você deve ter um motivo orgulhoso muito convincente pra não ir pra casa, mas eu vim te lembrar que você não tem escolha!

– Me solta, Atila.

A mesma mão que ele soltou do meu braço começou a apontar a minha cara.

– Você não pode querer viver diferente assim, Ismália! O mundo te cobra um dia que você seja igual aos outros! Você não pode fingir que tudo vai dar certo na sua luta contra o mercado, o sistema e seja lá o que for! O sistema funciona muito bem, Ismália, e ele vai matar você de fome!

Dei uma risada debochada para Atila e comecei a pedalar enquanto me sentia uma garotinha de doze anos. Querendo ou não, Atila dizia a verdade. Podia não ser algo justo, correto ou algo assim, mas era a verdade. O sistema funciona muito bem e me mataria de fome se eu não me matasse antes.

Naquele dia o trabalho foi bem complicado, eu não conseguia tirar as palavras de Atila de minha cabeça, nem as palavras de minha mãe. No final daquela semana, fui a casa de Alan. A porta estava aberta como de costume, eu a abri de vagar e olhei para o lado direito da porta, onde seu pé de maconha, geralmente bem cuidado, estava murcho e aos pedacinhos. Eu sabia que aquilo, definitivamente, não era uma boa coisa.

– Alan? – o chamei

Ouvi alguns passos vindos do fundo da casa, então ele apareceu na sala, acabado. Mas não o acabado cheio de olheiras, pele acinzentada e cara amassada. Alan estava de cabelo cortado e penteado, estava sem camisa, mas vestia uma calça nova devidamente presa com uma cinta.

– Oi... não sabia que viria. – ele me disse sem graça

Eu ri de como estava. Os olhos escuros dele estavam em destaque, pois não havia nenhuma vermelhidão para apagá-los.

– Que cabelo é esse? – eu debochava

– Eu tenho um compromisso daqui a pouco. – ele permanecia sério, como se sobrasse no ambiente.

– Nem pra trabalhar você penteia o cabelo... – eu ainda ria, mas era um disfarce. Alan estava estranho e eu começava a ficar preocupada.

– Mas agora eu penteio sim. – ele respondeu saindo da sala e entrando no banheiro, onde pegou uma camisa e começou a vesti-la.

– É algum casamento? – eu perguntei

– Não. – ele parecia estar com vergonha do que estava fazendo. Olhei Alan com atenção. Suas cores estavam sumindo. Observei que ele respirou fundo e me encarou – Minha família me convidou pra ir a um lugar.

Esforcei-me um pouco para lembrar da família de Alan. O tio era pastor em uma igreja. O pai e a mãe eram devotos fervorosos.

– Alan, você vai pra igreja? – eu o olhava. Absurda. Ele me fitou com um olhar de tristeza. – Você nem fala com a sua família, por que eles vieram com isso agora...?

– Eu não vou pra igreja. – ele disse. Eu me senti aliviada. – Meu pai arrumou uma vaga para mim na empresa dele. É coisa pequena, mas eu vou voltar a estudar e um dia eu vou assumir a firma com o meu irmão.

Dei dois passos para trás. Não sei o que era pior.

– Você não quer mais trabalhar no teatro?

– Aquilo não é vida, Ismália...

– Mas você via todas as peças de graça! – argumentei – E também os grandes sarais, debates, tudo...

– Eu sei, mas... Eu preciso de um pouco mais de dinheiro, Ismália. Tem o aluguel da casa e...

– Você pode arrumar uma casa menor. E eu também estou procurando algo do tipo, podemos dividir algum lugar... – eu nem sabia mais o que estava dizendo. Estava totalmente desesperada pela falta de cor de Alan.

– Ismália você também está para perder o emprego... E alem do mais não é tão ruim assim trabalhar com meu pai. – ele se mantinha incrivelmente calmo.

– Mas você odeia aquele lugar! – ele ficou quieto – Uma vez você disse...

– Esquece tudo o que eu disse! – ele me cortou quase berrando – É tudo bobagem, Ismália! Não adianta nada manter a mente e o espírito livre! Isso não existe! – ele gesticulava tremendamente nervoso – O mundo é feito das coisas de agora. Desista. – eu olhei suas cores piscarem e terminarem em tons suaves e horríveis de cinza. Eu sei que Alan queria ver.

Fui até sua cozinha, me virando sem dizer nada. Seus olhos me seguiram. Peguei um copo, enchi com a água do filtro em cima da pia, ele achou que eu jogaria água nele. Passei por ele com o copo e fui na direção da porta. Joguei a água do copo no pé de maconha e coloquei o copo ao lado do vaso. Me virei para olhar para Alan, ele também olhava para mim. Triste. Duas lágrimas já tinham me cortado a bochecha. Uma certa raiva cresceu dentro de mim. Revirei os olhos secando as lágrimas, balançava a cabeça negativamente. Saí batendo a porta. Desse dia até minha morte, nunca mais vi Alan.

Eu não dormia, eu não comia e quando olhava ao redor me sentia triste. Nesses dias eu decidi que não queria mais continuar ali. Toda vez que tentava me enquadrar em alguma coisa eu voltava para casa mais arrasada. Pensava se era possível eu estar tão profundamente errada, tão ingenuamente cega, a ponto de criar um mundo em que só eu enxergava como tão cruel? Eu não conseguia e sei que não queria ser o que seria “melhor para mim”. Não recebi muito quando fui demitida, nem me importei muito com isso. Eu não sabia nem no que gastar aquele dinheiro depois que todas as contas estavam pagas. Passei dias andando pelas calçadas do centro da cidade, tentando enxergar o mundo como algo mais bonito do que eu achava que ele era até então, mas em toda esquina há um mendigo, em cada quadra há uma criança perdida, sem escolaridade ou oportunidade, e na multidão não havia quase ninguém que tivesse alguma cor.

Em um desses dias eu voltei para casa, por algum motivo resolvi mexer em minhas coisas e então achei a minha solução. Peguei o colar que Sebastian me deu no meu ultimo aniversário, há já muitos meses. Deslizei a torre sobre meus dedos. Todo o poema que recebe meu nome me veio a cabeça. Eu sempre o tive décor.

Eu resolvi fazer alguma coisa.

Eu morreria, mas a cidade não se esqueceria de mim.

Era como uma epifania e isso deu uma grande carga de energia em mim. Desci no centro da cidade e comprei um grande tecido vermelho. Era para cortina, tinha quatro metros de largura e consegui comprar sete metros de comprimento. Também comprei tinta para tecido branca, querosene e uma caixa de fósforos.

Quando cheguei em casa, afastei todos os móveis da sala, estendi o tecido no chão e a primeira coisa a fazer foi começar a escrever em uma letra grande. “Eu vou pular, Isso é um fato e você não pode mudar...” Escrevi o suficiente para cobrir todo o tecido e a tinta branca acabar. Ainda sem dormir, no outro dia sai de bicicleta pelo centro da cidade. Havia um grande prédio comercial em construção, mas a obra estava parada há alguns meses. Ficava ao lado de uma das avenidas mais movimentadas. Perfeito.

A decisão estava tomada, eu já sabia inclusive o como faria. Quando voltei para casa, escrevi minha carta para Alan e levei a uma agencia dos correios de manhã. Depois fui visitar Caroline.

– Fazia tempo que não vinha. – ela disse um tanto sorridente.

– E provavelmente não vou vir mais. – eu sorri também.

– Do que está falando?

– Você vai sair daqui.

– Desarquivaram meu caso?

– Ainda não.

Ela não entendeu muito bem, mas eu não insisti em explicar. Perguntei como ela estava, ela perguntou de como eu estava sem Sebastian e eu não menti, disse que sentia muita falta dele e que as coisas estavam difíceis. Ela também me perguntou sobre Alan. Eu disse que fazia muito tempo que não o via, mas não falei do nosso ultimo encontro. Ela disse que estava sentindo falta dele, já que não a visitava há algum tempo. Meu colar, que Sebastian havia me dado, estava comigo. O tirei do meu pescoço e entreguei a Caroline.

– Pode ficar com isso? – perguntei

– Por que? – eu não contaria para ela o porque, claro.

– Apenas fique.

E depois disso não fiquei ali muito mais, havia mais um lugar para se passar. Fui ao cemitério da cidade. Era calmo e o sol brilhava demais naquela tarde. Segui até o tumulo de Sebastian. Fiquei alguns minutos olhando para a pedra com sua foto e seu nome, até começar a me sentir idiota. Não era Sebastian que estava ali, mas de alguma forma, estar naquele lugar era como telefonar a um parente distante avisando que receberá uma visita. Não fiquei muito mais. Fui embora.

Chegando em casa mais uma vez, enrolei todo o tecido e o levei para o prédio que estava quase acabado, demorei um bom tempo para subir pelas escadas, mas consegui. No telhado não havia nada de mais. A volta era feita por uma mureta de concreto na altura do meu joelho. E barras de ferro faziam pontas em alguns pontos. Havia também algumas barras de ferro soltas, usei uma. Enrolei o tecido em volta da barra, prendendo a ponta com a primeira parte do meu texto com arame. A cada volta que dava molhava o tecido com o querosene. Terminei de enrolar o tecido no fim da tarde. Ninguém contava com suicídios a noite e isso me fez parecer genial.

Era sete da noite de um sábado. A avenida estava movimentada de pessoas querendo curtir um bom descanso, mas não seria naquele dia. Prendi a barra de ferro nas pontas sobre o telhado e deixei meu texto se desenrolar, formando uma bandeira no prédio. Os carros começavam a passar de vagar, talvez estivessem lendo. Subi na mureta do prédio e vi que algumas pessoas já se juntavam lá embaixo. Deveria ser agora, se eu deixasse que as pessoas avisassem as autoridades, viriam me deter.

Não houve nada que me parasse. Pensei apenas naqueles meses até ali e em como não era possível continuar. Eu olhava para baixo acumulando ódio daquele lugar, daquela gente... De mim que não faria nada para mudar algo sozinha. Mas no fim, faria sim. Eu sou o primeiro impacto, o primeiro tiro disparado durante a guerra, o primeiro galo a cantar pela manhã.

Você, que lê este texto agora, não precisa se matar como forma de protesto, ou fazer a mesma coisa que eu para manifestar a sua tristeza pela humanidade. Eu já fiz isso, fiz por um grupo grande de pessoas que me veriam cair, que veriam minha bandeira pegando fogo, e leriam ao final do tecido: “Por Caroline, por Sebastian, por Alan e por Atila” Sim, até mesmo por Atila. Só ele não percebe o quanto quer ver. E é todo esse grupo – que vê, que quer ver e que me conhece agora – que já recebeu sinais suficientes de que a mudança precisa ser feita. Eu sou a gota d’água que faz o copo transbordar.

Depois do fósforo já riscado, só foi preciso deixar a chama tocar o tecido para começar um verdadeiro incêndio. Deixei meu corpo cair, passando pelas chamas, e diferente do que pensei, eu parti bem antes de tocar o chão. Não por algum sistema de defesa do meu corpo, mas porque eu estava pronta para isso.

Graças a repercussão do meu caso, o caso de Caroline começou a ser investigado com mais seriedade. Tanto ela como o agressor, respondem em liberdade.

Alguns meses depois, houve meu aniversário. O sol já se punha e algumas pessoas haviam visitado meu tumulo naquele dia. Uma pessoa, que vestia um grosso e longo casaco preto, enrolava algo nos dedos enquanto caminhava até visualizar minha foto. Alan acendeu o baseado e deu o primeiro trago, depois ergueu o cigarro como em um brinde. Era sua vela particular. Logo atrás dele, alguém afrouxava uma gravata enquanto se aproximava. Ele respirava fundo e quando o cheiro de erva invadiu suas narinas, sabia quem estava ali.

– Você ainda usa isso? – Atila perguntou colocando as mãos no bolso e parando ao lado de Alan.

– Você sabe – Alan respondia –, vez ou outra...

– Um bom pensamento. Sei. – Atila completou calmo, aproveitando o cheiro.

O silêncio se estabeleceu por eles alguns segundos.

– Sua irmã me salvou. – Alan disse soltando fumaça.

– Metade das pessoas que me dizem isso ela odiaria ver agora. – era verdade, mas não era o caso de Alan – Eu poderia dizer que ela me salvou também, mas prefiro não falar nada pra que eu não faça parte de um bando de hipócritas. Ela ainda me odiaria se me visse agora.

– Tenho certeza que só pelo que disse agora, ela ficaria orgulhosa. – Isso também era verdade.

Os olhos azuis de Atila miraram por alguns segundos o céu, depois meu tumulo. Os dois permaneceram ali por mais alguns minutos. Calados, ao lado um do outro só por estar. No fim do dia eles foram embora. Só. Não direcionaram nenhuma palavra ou pensamento diretamente a mim. Caroline os encontrou do lado de fora do cemitério.

Eu não sei mais o que contar, para mim essa visão é muito mais do que confortável e seria um ótimo fim, mas claro que fins não existem. Eles seguiram suas vidas, foram felizes, mas isso quem tem que contar não sou eu.

Talvez já seja hora de me dissipar na eternidade.

Adeus.


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Notas finais do capítulo

Obrigada, foi um prazer escrever.