Ismália escrita por Tia Anette Atlas


Capítulo 1
Ismália




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Eu vou pular, isso é um fato que você não pode mudar. Daqui eu posso ver carros e mais carros passando e se eu não morrer pela queda, será atropelada por uma dessas máquinas de ganhar a vida e fazer dinheiro. Uma dessas máquinas que te fazem correr pela vida de tal maneira, que você a aproveita menos do que se tivesse apenas a deixado passar. Nenhuma das duas coisas cabe em mim.

Disseram depressão. Mas só seria se eu estivesse doente, e isso eu não estou. Estou apenas decidida de que não vale a pena. O termômetro da felicidade só será positivo até aqui e eu não quero viver se for pra ser engolida por uma metrópole hipócrita e decadente. Eu prefiro pular e saber que aproveitei enquanto seria fácil. Covarde? Covarde são vocês, que não se arriscam apenas por não ter certeza sobre uma próxima vida. Eu também não tenho, mas se houver uma próxima, não pode ser pior do que essa.

E também depois que meu corpo tocar o chão, o que eu sentiria? Arrependimento? Não. Eu já estarei completamente morta pra sentir qualquer coisa desse mundo. Quando eu morrer, estarei infinitamente superior a esse mundo de desgraça glorificada. Infinitamente superior a realeza e suas pomposidades estúpidas que custaram sangue suficiente para sustentar todo um país à base de chouriço durante gerações, infinitamente superior à minha vizinha ou todas as garotas e garotos mesquinhos que inferiorizam aqueles que não financiaram o trabalho escravo infantil da China, infinitamente superior a mim mesma que não conseguiria mudar nada nessa ilusão capitalista coletiva e provavelmente estaria trabalhando em uma loja de sapatos importados daqui a alguns meses para que eu tenha o meu sustento garantido.

Não é depressão, nem a covardia. Não é a maior parte, mas há quem esteja no comando desses carros, que se aproximam agora, que também já pensaram em fazer o que estou fazendo, exatamente pelos mesmos motivos que eu. Talvez eles pensassem em utilizar a morte de outra forma, mas os motivos eram os mesmos. Sei que sim. E ainda sei que também não conseguiram agir, então se uniram aos endividados com a sociedade hipócrita e estão agora correndo pela vida. Pensam que quando recebem aqueles pedaços de papel sujo e consagrado pelo estado, a estão ganhando, mas a vida não é um objeto para ser dado de presente ou comprado depois de um esforço merecido. Essa palavra não deveria se quer estar classificada como substantivo, porque a vida é um evento, uma ação.

São é quem tira as vendas que sociedade te impôs a usar quando criança e entende a verdade. Mas nunca tirar a venda, ou tirá-la e vesti-la novamente se preparando para vendar e vender mais infinitas gerações, enquanto os sem venda estão algemados, e se sentir livre deste modo, cego, isso sim é uma doença.


“Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”

Ismália – Alphonsus de Guimaraens


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Notas finais do capítulo

Poema "Ismália" completo: http://www.releituras.com/alphonsus_ismalia.asp