Panem Et Circenses escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 25
Recuperação


Notas iniciais do capítulo

O capítulo do meu aniversário, como eu prometi!
Espero que gostem!



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Não posso dizer que recuperei todas as minhas forças depois que recebi aquela fotografia de Mastt.

Mas, de fato, melhorei o suficiente para voltar à luta. Eu não vou me entregar sem lutar. Não vou entrar em depressão depois de tudo que já passei. Não importa qual será o resultado dos Jogos. Falta tão pouco...

Depois de um longo tempo parada, ponho-me em movimento. Eu tive sorte de Aven, Kalle e Coriander não me encontrarem aqui até agora, mas as chances de isso acontecer vão diminuir ainda mais se eu tomasse o cuidado de me manter andando.

De quando em quando, me pego pensando que o que eu estou fazendo pode ser, na verdade, loucura. Uma insistência patética em tentar sobreviver, mesmo sem chance alguma. Mas então leio os dois bilhetes de Mastt e olho para a foto minha com meus irmãos, e continuo em frente.

A minha perna ferida, felizmente, não dói mais tanto, contanto que eu não apoie o peso de meu corpo sobre ela, de modo que tenho de andar mancando. Não estou na situação mais agradável do mundo, tampouco a mais tolerável, mas quanto menores forem as adversidades, menos mau é suportar tudo isso.

Faço algumas pausas para descansar no decorrer do dia, mas não sendo por isso, mantenho minha caminhada o dia inteiro.

Ao cair da noite, faço a única coisa que se mantém constante na minha rotina na arena: Encerro o dia, deixando para retomar minha atividade apenas no dia seguinte.

A noite é extremamente escura e gelada mais uma vez, e não tenho coragem para tirar o meu casaco. Decido dormir sentada, então, encostada a uma árvore.

É a noite mais desconfortável que tenho desde que os Jogos começaram.

É verdade que, nas aulas mais chatas da escola, já baixei a cabeça sobre a mesa, tentando cochilar, mas eu simplesmente nunca consegui. A mesma coisa quando eu tinha menos de nove anos e não precisava trabalhar nas fábricas do meu distrito sob hipótese alguma, e quando meus pais tinham de trabalhar até mais tarde, eu ficava sentada numa cadeira da cozinha esperando-os chegar, tendo já colocado Penn e Kevan para dormir – sendo que Kevan nunca me deu muito trabalho nesta área, pois quando ele nasceu eu já tinha oito anos – e por mais cansada que eu estivesse, nunca dormia.

E aqui na arena não é diferente. Deve ser quase meia-noite quando pego no sono, depois de mudar muito de posição, e mesmo assim acordo várias vezes durante a madrugada, voltando a dormir em seguida.

Quando resolvo acordar de vez, ainda sequer amanheceu direito, e deduzo que sejam cinco horas da manhã. Minhas costas doem muito, por mais que eu tente me alongar depois de me levantar.

Mal começo a andar, me ocorre que faz mais de dois dias que nenhum tributo morre, e sou dominada por sentimentos de pânico. Nos últimos dias dos Jogos, quando são poucos tributos ainda em pé, é realmente mais difícil de eles se encontrarem, mas os telespectadores da Capital se enjoam fácil desta situação, de modo que os Idealizadores tentam, então, juntá-los por eles mesmos. E eu prefiro que isso não ocorra. Torço para que Aven, Kalle ou Coriander estejam fazendo algo interessante para mantê-los entretidos, porque desde que Nydia e Aster morreram, eu praticamente nada fiz. Nem quando os Idealizadores mandaram um bestante para me provocar – o que, penso agora, foi o que aconteceu.

É muito ruim perceber, de súbito, que um de meus valores desapareceu sem que eu me desse conta. Desejo agora com tanto afinco que os residentes da Capital estejam entretidos, quando eu sempre quis do mal e do pior para tudo e para todos que se relacionassem com aquela cidade.

E mais tarde acabo percebendo que não foi apenas um valor perdido: foram dois. Eu também estou agora desejando desesperadamente que alguém morra, como nunca antes. Como nunca imaginei que estaria.

E meu desejo é de fato atendido, já na hora do hino. Estou novamente já sentada do chão, pretendendo retomar a caminhada só amanhã, quando ouço um barulho estranho no meio da tão conhecida melodia, um tanto abafado pela própria.

Levo alguns segundos para ver que se trata de um canhão.

No pouco tempo que falta para o hino terminar e a foto do tributo morto brilhar no céu, a imagem dos meus três rivais passa por minha mente.

Aven, com seus longos cabelos negros presos em uma trança bem elaborada, os olhos verdes sempre frios, o semblante sempre sério. A mais equilibrada dentre os Carreiristas, eu diria.

Kalle, o Carreirista bem alto de cabelos castanhos escuros rebeldes e olhos da mesma cor. Lembro-me do treinamento – enquanto todos os outros da gangue dele estavam preocupados em se exibir para aterrorizar os outros tributos, ele ficava parado perto deles sem fazer algo de verdade na maior parte do tempo, com cara de tédio. Mas ele estava apenas esperando que um deles errasse em algo, para então fazer a mesma coisa de forma melhor, e em seguida sorrir com escárnio para o tal aliado.

E Coriander, meu antigo aliado. O garoto que matou minha arqui-inimiga na arena, Aster, e que nunca gostou muito de mim, mas que parecia gostar de Nydia acima de tudo.

Sem dúvidas eu quero que o mais recente morto seja Aven ou Kalle.

Mas o mais provável é que tenha sido Coriander. Afinal, se ele encontrou os Carreiristas, mesmo que tenha matado um deles, morreria pelas mãos do outro logo em seguida, e seriam dois canhões. A única outra maneira seria se ele houvesse matado os dois Carreiristas, mas também seriam dois canhões. Agora, se os dois o mataram...

Então o hino termina, e a imagem de Coriander se acende no céu.

Ele está com a Nydia agora, é a frase que digo e repito para mim mesma dentro de minha mente, como forma de me acalmar e impedir que a morte dele me deixe mais desesperada ainda. Mesmo que ele não tenha morrido como meu aliado, é difícil ver alguém com quem eu convivia morrer. Ele está com a Nydia agora.

E os dois Carreiristas estão certamente atrás de mim.

Quem diria que eu seria uma dos três últimos?

Minhas costas continuam doendo por causa da noite anterior, então decido-me por dormir deitada com os braços cruzados sob a cabeça. Desta forma não preciso dormir sentada, e nem tirar meu agasalho.

A sensação que tenho de ser a última vez em que vou adormecer em toda a minha vida é a mais intensa que já tive. E o ronco de meu estômago, mais uma vez clamando por comida, parece mais um lamento por eu provavelmente já ter feito a minha última refeição.

Mesmo assim, hoje eu adormeço mais rápido do que ontem.

Estou esperando ter terríveis pesadelos sobre Aven e Kalle me torturando até a morte, mas meus sonhos se resumem a vislumbres rápidos de coisas aleatórias, como a fotografia que Mastt me enviou ontem, eu me arrumando para minha primeira colheita há quatro anos, o dia em que eu e Penn tentamos fazer bolo com creme de coco, ano passado mesmo, e acabamos por queimar a sobremesa.

A única coisa terrível é ter de despertar para a realidade depois – e não para uma realidade em que estou me arrumando para a Colheita, ou fazendo bolo com creme de coco, ou mesmo uma em que estou nos Jogos e terei de andar o dia inteiro, e sim a realidade em que acordo ouvindo o som de passos na neve, não muito longe de mim.

Me ponho de pé o mais rápido possível, olhando alarmada pelos meus arredores.

Eu não quero ter de morrer agora. Eu não quero morrer.

Posso afirmar com certeza que é impossível se preparar para algo como a morte. Já faz vários dias que estou com a ideia de que num futuro muito próximo vou ter de morrer, e podia me dizer acostumada com esse fato. Mas neste momento, é como se eu estivesse pensando nisso pela primeira vez.

Quais as chances de esse barulho ser capcioso, e os Carreiristas na verdade não estarem por perto?

A resposta para esta pergunta é, por azar, “nenhuma”. Vozes seguem os passos depois de alguns segundos:

— Sabe, Aven, o seu eterno mau-humor está tornando os nossos últimos momentos por aqui ainda mais complicados. – Ouço a voz que pertence, indiscutivelmente, a Kalle.

— Bem, como você acabou de assinalar, estes são os nossos últimos momentos por aqui. – Aven, dá ênfase nas últimas quatro palavras. – Você queria que eu estivesse dando pulinhos de alegria?

— Você não se irrita com nada que eu falo? – Ele bufa ao ouvir que o tom dela permaneceu inalterado em sua resposta.

— Eu não sou a Aster.

— Sei que não. E se você fosse, eu teria desmanchado a aliança com você antes da hora assim como nós dois fizemos com ela.

— E estaria certíssimo.

Então a Aster estava sozinha na última vez em que a vi por isso? Desfizeram a aliança com ela? Bem. Isso não é tão estranho. Não sei nem como eles aguentaram tanto tempo perto dela.

Mas eu achava que meu desgostar pela Aster era porque ela era uma Carreirista odiosa. Mas a coisa deve ser pior do que eu imaginava, se nem os outros Carreiristas odiosos gostam dela.

Começo a andar, o mais silenciosamente possível, para a direção oposta da em que as vozes dos dois estão vindo. Mas talvez fosse melhor eu ficar parada esperando – não há mais escapatória. Os Jogos estão quase no final.

Eu simplesmente tenho de enfrentar o que quer que venha agora.

Paro de andar novamente.

Kalle e Aven ficam em silêncio entre o breve diálogo que tiveram e o momento em que eles entram em meu campo de visão – e consequentemente eu entro no deles. Cada um deles está armado com uma espada, e tem uma mochila quase vazia nas costas, com o que sobrou dos itens da Cornucópia.

— É. – Aven suspira, como se eu fosse uma pedra de formato interessante, e não o tributo que eles estavam caçando, parado e olhando assustado para eles. – Vai acabar mais rápido do que nós dois imaginávamos.

E ela se aproxima de mim com passos confiantes, a espada pronta para me atingir. Kalle vem logo atrás dela, como se a estivesse escoltando.

Mas fica claro que não é essa a intenção dele quando eles já estão bem próximos, e de repente o sorrisinho de zombaria típico de Kalle surge em seus lábios de novo, e sem que Aven perceba algo, ele crava a espada dele no tronco dela, com tal força que a ponta sai do outro lado, coberta de sangue.

— É, Aven. Principalmente para você.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo.



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