Hunters Of The Death escrita por Débora Chase


Capítulo 13
A breve história de um prisioneiro


Notas iniciais do capítulo

HOTD saiu do hiatos, minha gente! o/
Eu sei que demorou alguns meses, mas cá estou eu, postando mais sobre Luna, Hans, Quirina e os Refugiados.
Espero que não tenham me abandonado e espero que gostem deste capítulo :)



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Ouvi sons de sussurros onde me encontrava, quase como zumbidos aos meus ouvidos. Senti uma superfície fria sob meus braços, algo metálico. Minha cabeça girava e sentia meu estômago completamente embrulhado, como se tivesse acabado de sair de uma montanha-russa. Uma gota escorreu da minha testa e molhou meu cabelo. Cada músculo parecia ter sido prensado e esticado até além dos seus limites. Sentia-me como se tivesse sido atropelada por uma manada de elefantes seguidos de caminhões de carga extremamente pesada. Temia fazer algum movimento que me causasse mais dor, por isso permaneci imóvel. Tentei, aos poucos, erguer as pálpebras, mas até esta simples ação era extremamente dolorosa.

Mãos suaves e macias tocaram minha testa e senti algo como um pedaço de pano embebido em água gelada ser colocado onde antes as mãos estavam. Era uma sensação boa ter aquele pano ali, como que abrandasse as sensações dolorosas de meu rosto. Tentei murmurar algo, uma pergunta, mas foi igualmente difícil fazer, pois sentia como se estivesse com a bochecha direita inchada. Que ótimo.

Ouvi sons de dobradiças de uma porta ranger e passos enérgicos e apressados se aproximando de onde eu estava.

–- Como ela está? – perguntou uma voz masculina preocupada. Hans.

–- Não acordou ainda nem demonstrou qualquer reação, mas já cuidei dos ferimentos mais graves dela. – informou gentilmente a outra voz, feminina: Suzana. – Só temos que nos preocupar com as sequelas internas, caso ela tenha.

O silêncio predominou novamente no local. Não ouvi nada durante algum tempo, então um som de uma cadeira sendo arrastada quebrou o silêncio e a voz de Hans preencheu o vazio de meus ouvidos.

–- O que ela estava pensando? Como teve a estúpida ideia de ir até lá e tentar enfrentar aquele monstro?

–- Você sabe como ela é, Hans. Bem, pelo menos a conhece um pouco mais de tempo do que nós, mas creio que Luna não imaginava o perigo que teria ao encontrar o monstro, do contrário ela não o teria enfrentado sozinha.

–- Ela foi estúpida, Suzana. O mal dela é achar que pode enfrentar tudo sozinha, quando não pode! Ela tem a mim, tem a todos nós! Por que ela não chamou a mim e Isabela pelo walkie-talk?

–- Hans, acalme-se e fale mais baixo ou irá acordá-la da pior maneira. – pediu Suzana de forma gentil.

Agora tudo retornava a minha mente como películas de um filme: um monstro grande e assustador, o supermercado, um rapaz gravemente ferido, minhas tentativas de escapar. A última cena que me veio em mente foi a de quando fui arremessada contra uma prateleira e senti uma fisgada na costela ao lembrar-me do ocorrido.

Mais uma vez, tentei mover meus lábios e tentei dizer algo, mas saiu como um grunhido, o que chamou a atenção de Hans e Suzana.

–- Luna? – o tom de voz de Hans se tornou mais gentil. – Luna, você está acordada?

Tentei assentir com a cabeça e fiz um movimento de abrir os olhos. A luz branca fluorescente me cegou por alguns instantes. Pisquei duas vezes, incomodada pela intensidade da claridade e tentei me apoiar com os cotovelos na cama. Hans se posicionou de um lado e Suzana do outro e me ergueram até que eu conseguisse ficar sentada. Suzana ajeitou os travesseiros e me recostei.

Olhei para o local onde estava. Havia mais três macas a minha frente e um armário perto da porta de metal, à minha direita. As paredes eram claras e alguns quadros abstratos estavam pendurados nas paredes. Olhei para mim por um momento. Estava vestindo calças largas de tecido fino e uma camiseta, ambas cinzentas. Em meus braços, mais e mais ataduras estavam enroladas. Sentia-me uma múmia. Eu cheirava a unguentos de limpeza de machucados e pomadas.

–- Como se sente? – perguntou Suzana.

Minha cabeça girou por um momento e tive que dar uma pausa antes de responder:

–- Acho que já estive melhor. – minha voz estava fraca e minha garganta arranhava como se um gato estivesse preso nela lutando para sair.

–- Acredite, está bem melhor agora. – disse Suzana. – O estado de como chegou aqui...

–- Você é maluca? – interrompeu Hans. Olhei para ele e sua expressão era dura. – Faz ideia da sorte que teve de estar viva agora?

–- Se você quiser refrescar minha memória, eu lhe agradeço. – respondi de forma calma, mas aquilo pareceu enfurecê-lo ainda mais.

Respirando uma, duas, dez vezes, Hans chegou perto de mim e disse como se cada palavra fosse um esforço ao sair de sua boca:

–- Você foi encontrada inconsciente em um supermercado na Freguesia. Aparentemente, poderia julgar que estava morta, mas quando peguei seu pulso, percebi que ainda estava viva.

–- Acho que... estou me recordando... vagamente... – falei com a voz fraca. Aos poucos, como lapsos dolorosos, imagens vinham em minha mente, distorcidas.

–- Ótimo, é bom que se lembre, então vai se lembrar do quão foi idiota em ter isso para aquele mercado sozinha!

–- Hans, não grite...

–- Idiota? IDIOTA? – era minha vez de esbravejar. -- Eu não tive opções! Não sabia que aquele... aquele monstro estava lá!

–- E por que não foi embora então assim que o viu?

Hans cruzou os braços e respirou fundo.

–- Não podia deixar aquele rapaz lá com aquela criatura.

–- Você foi tão legal com ele que, como agradecimento, seu amigo te deixou pra morrer lá. Valeu a pena ato tão heróico?

Baixei os olhos. Eu não esperava nada de diferente daquele rapaz. Ele realmente havia escolhido salvar sua vida, mas...

–- Se não fosse Isabella e eu chegando na hora... – continuou Hans.

–- O quê? – o interrompi. -- Não me diga que fui salva por aquela imbecil?

Ele fechou a cara.

–- Aquela “imbecil” foi a nossa esperança para conseguir retirá-la de lá com vida. Devia agradecê-la.

–- Preferia ter ficado lá. – resmunguei.

–- Você não tem noção do que está dizendo.

–- Não, Hans, você que não tem! Você não sabe como é procurar por cada pista, cada sinal sobre o paradeiro de alguém que você ainda tem esperanças de que esteja vivo! – cerrei os punhos enquanto falava. Resquícios de lágrimas se empoçaram em meus olhos, mas não permiti que caíssem. – Entrei naquele mercado sim, sofri as consequências de tal decisão, mas não me importo. Enfrentaria mil monstros daqueles se soubesse que meu irmão estaria vivo e bem. Você não sabe o que é se desesperar por correr o risco de perder alguém.

Por um momento, pensei que Hans fosse me bater. Ele apertava tanto as mãos enquanto reprimia palavras que os nós de seus dedos estavam brancos. Silenciosamente, ele se levantou e se dirigiu a porta. Eu e Suzana o observamos sair, mas ele parou no portal, virando a cabeça por cima do ombro e disse:

–- Acredite, eu conheço esse seu desespero. – e saiu fechando a porta com um estalo.

Recostei-me na cama e fechei os olhos, chateada. A última coisa que eu queria era brigar com Hans e agora eu conseguira isso. Não tinha porquê ele me tratar daquela forma. Me senti como se tivesse feito a pior coisa do mundo, como se tivesse feito um acordo para uma terceira guerra mundial.

–- Não fique chateada com Hans – disse Suzana enquanto embebedava o pano na tigela com água. – Ele está preocupado com você.

–- Percebi – cruzei os braços. Senti uma dor aguda neles ao fazer isso, mas ignorei. – Se você se preocupa com uma pessoa, brigue com ela, faça-a se sentir mal por ter agido certo.

Suzana colocou o pano em minha testa e fechei os olhos. Sua voz era baixa quando disse:

–- Ele não a culpa por ter salvado aquele rapaz, Luna, ele só está assim pelo o que aconteceu com você.

–- Eu juro, Suzana, nunca entraria naquele lugar se soubesse o que havia lá. Nem teria parado para salvar aquele rapaz.

Senti uma de suas mãos tocar a lateral do meu rosto gentilmente, como minha mãe fazia quando eu era pequena.

–- Luna, você é uma garota corajosa e de um coração enorme. Não se arrependa do que fez. Você está bem agora, está conosco. Agora tem que repousar um pouco para melhorar logo.

Assenti ainda com o pano na testa. Escutei Suzana se afastar, arrastando a cadeira de forma suave no chão e ouvi a porta se fechando. Estava tão silencioso na enfermaria que aos poucos me senti sonolenta e nem percebi quando mergulhei em outro sonho.

Era um dia ensolarado em uma campina verde e repleta de flores. Ao longe, os raios de sol incidiam sobre uma lagoa e a água brilhava como uma jóia lapidada. O céu tinha poucas nuvens. O vento era suave ao passar por mim.

Olhei para trás e vi meus pais de mãos dadas, sorrindo para mim enquanto acenavam. Eles estavam um pouco mais jovens desde a última vez que os vira. Mamãe apoiava as mãos no ombro de meu irmão enquanto papai a abraçava colocando um braço sobre seu ombro. Mark veio correndo em minha direção, sorrindo, e abri meus braços para recebê-lo. Quando ele estava bem perto de mim, pulou e caímos juntos na grama, rindo.

–- Luna, você não vai me deixar, né? – Mark perguntou com urgência em seus olhos castanhos. -- Prometa que não vai.

–- Nunca vou deixá-lo – respondi abraçando-o.

–- Por favor, não demore, você precisa me ajudar.

–- Mas do que está falando? Por que não posso demorar?

Mas ele não conseguiu me responder. De repente, Mark parecia estar mil vezes mais pesado e quando seu roso se ergueu para mim, sufoquei um grito de horror. A mesma criatura que eu enfrentara no supermercado estava ali, sentado sobre mim e segurando meus pulsos. Suas garras cortavam minha pele como manteiga e tentei gritar por ajuda. Ao longe, não via mais meus pais, mas sim Hans e Isabela de mãos dadas. Ela tinha um sorriso triunfante e Hans apenas sacudia a cabeça.

–- Você escolheu isso – ele dissera. – Agora arque com as consequências.

Hans deu as costas e gritei seu nome enquanto o monstro me dava um golpe mortal.

******************************************************

Sentei-me na cama de súbito. Minha respiração era irregular, como se eu tivesse corrido por quilômetros. Pisquei duas vezes para a escuridão que me encontrava. O pano que antes estava na minha testa estava pendendo na borda do colchão. Gotas de suor brotavam em meu rosto e pelo meu corpo. Meu coração batia de forma tão intensa que poderia saltar por minha pele.

Esfreguei os pulsos no local onde o monstro, no sonho, me segurara. Fora tão real que podia sentir como se ele tivesse acabado de me ferir. Mais uma vez, Mark me deixara intrigada. Seu pedido de ajuda ainda ecoava em minha mente e a forma como ele olhava enquanto pedia... Um bolo se formou em minha garganta, mas não me permiti chorar. Isso não me adiantaria nada agora. Eu iria encontrá-lo, e assim como eu falara no sonho, jamais o deixaria. Mark precisava de mim e eu precisava me recuperar logo.

Deitei-me novamente, mas permaneci com os olhos abertos, encarando a escuridão. Não conseguiria dormir tão facilmente de novo. Tateei a lateral de minha cama e encontrei um interruptor. Acionei-o e uma luz incandescente me cegou por instantes. A enfermaria parecia sinistra naquela penumbra. As cortinas isolando umas camas de outras, os armários de portas de vidro que continham medicamentos, alguns carrinhos com itens de primeiros socorros. Tudo ali poderia ajudar necessidades básicas de tratamento de alguém ferido. O pai de Rebeca pensara em tudo, e a filha parecia seguir o exemplo.

Uma melodia suave e familiar soava do lado de fora do cômodo, tocada por um violino. Levantei-me com cuidado e mais pontadas agudas de dor em algumas partes das pernas me fizeram sentar por um momento. Havia chinelos de pano perto da cama. Com cuidado, coloquei-os e fui me arrastando até a porta. Se estivesse do lado de fora do Refúgio, daria uma cosplay bem feita de zumbi.

A porta range mais alto que o normal quando a abri e passei lentamente antes de fechar com um estalo. Os corredores estavam iluminados, mas isso era relativo. As luzes ficavam acesas 24 horas por dia, e não era possível ter noção das horas que se passavam. A julgar pelo silêncio deveriam ser de noite. O som do violino estava mais audível pelo corredor e vinha do final dele. Com dificuldade, caminhei até lá, imaginando em quantos anos chegaria ao local devido a minha condição atual. Parecia ter chumbo amarrado em cada perna e provavelmente levaria uma bronca de Suzana por não estar na cama, mas aquela música era como um canto hipnótico que me fazia ir até lá.

Depois de muito tempo andando e me apoiando na parede, cheguei à porta. Está entreaberta. Empurro-a o suficiente para que metade do meu corpo possa caber entre a porta e o batente. É uma sala pequena e tomada por quadros nas paredes, e alguns baús que aparentavam serem bem antigos, como vistos em museus. O local era iluminado por velas em candelabros. No centro da sala havia uma cadeira de espaldar alto e entalhado. Sentado nela, de costas, para a porta, estava o General. Sua cabeça estava inclinada para o lado e seu braço fazia movimentos de acordo com as notas que tirava do violino. A música era “Air”, J.S. Bach.

Entrei na sala e encostei a porta. Lentamente, aproximei-me da cadeira e quando ele tocou a última nota, aplaudi-o dizendo:

–- Que lindo, General – falei enquanto contornava a cadeira e ficava de frente pra ele. – Nem me lembro a última vez que ouvi Bach, e essa música me faz me sentir melhor.

General sorriu em agradecimento.

–- Me alegra o fato de fazê-la se sentir melhor, minha querida, ainda mais uma conhecedora de Bach. Ah, mas que indelicadeza a minha. Você ainda está em recuperação – ele se levantou da cadeira e me ajudou a me sentar.

–- Obrigada, General. Minha mãe gostava de ouvir música clássica, e essa era a preferida dela.

–- Era a música preferida de minha neta também. – comentou e vi um traço de tristeza passar por seus olhos. – Todas as vezes que me visitava, ela pedia para que eu tocasse essa música no violino. Acabou se tornando uma marca registrada dela.

Ele colocou o instrumento ao lado da cadeira, dentro de uma bolsa, e a fechou.

–- Ela se parecia com você.

–- Senhor?

–- Sofia, minha neta. Às vezes ainda vejo um pouco dela em você, ainda que ela não fosse oriental, mas vocês possuem semelhanças na personalidade.

–- Ela era cabeça-dura e não ouvia os outros também? – perguntei em tom brincalhão. General me olhou com ar inquisidor.

–- É assim que você se vê? – sua pergunta não tinha um tom sério, mas me surpreendeu.

–- É assim que as pessoas dizem que sou. – respondi.

–- E você acredita no que elas dizem a respeito de você?

Dei de ombros.

–- Acho que elas têm razão às vezes. – a discussão que eu tivera mais cedo com Hans me veio em mente e abaixei a cabeça.

–- Não a vejo dessa forma. Sabe, quando vi sua iniciativa para ir na missão, suas atitudes para com os outros... Era como se eu visse Sofia novamente. Vocês são as garotas mais corajosas que tive a honra de conhecer. A senhorita seria um soldado e tanto, Luna.

Ergui meu rosto em sua direção e não pude evitar de sorrir. Suas palavras eram tão firmes e tão sinceras que não consegui contestar. Ele não parecia dizer aquilo só para me animar; dizia aquilo por ser verdade.

–- O que aconteceu na missão – General indicou meus ferimentos dos braços. – não é algo para lhe chatear. Esses ferimentos são marcas de combate, marcas que serão lembranças de um inimigo que você vencerá um dia. Todos os vencedores tem cicatrizes para lhes lembrar de alguma batalha.

–- O senhor também tem alguma cicatriz?

Ele assentiu. Abaixou-se por um momento e enrolou a perna direita da calça, estendendo-a na minha direção. Um longo corte ia desde o joelho até o tornozelo e se ramificava em algumas partes. A cicatriz parecia ser antiga, e também parecia que não sumiria dali.

–- A consegui em um confronto no qual fui atingido por um soldado que manejava uma faca. Ele tentou me acertar enquanto eu socorria um companheiro ferido e arremessou-a na minha direção. Não pude me esquivar a tempo, mas consegui salvar meu amigo mesmo com a faca na perna.

–- Meu Deus – fiquei horrorizada com o que ele me contara. Por um momento, senti a dor dele imaginando a lâmina cortando sua carne. Parecia que os meus leves cortes não eram nada perto do que lhe acontecera.

–- Sei que deveria ter sido mais prudente naquele dia e não ter facilitado, mas não tenho vergonha dessa cicatriz. Não tenha também das suas. Sei que as conseguiu por um ato de coragem também.

General se levantou e estendeu a mão para mim. Peguei-a e lentamente ele me puxou para um abraço. Era como abraçar meu pai; um abraço confortador, gentil e companheiro. Ele não apertara tanto por conta dos meus ferimentos, mas ainda assim me senti grata por suas palavras e esse pequeno gesto.

–- Acho que a senhorita deve ir para sua cama agora, não? Está tarde e tem que se recuperar.

Assenti e ele me deu o braço para que eu me apoiasse, como um pai quando leva a filha para o altar. Respeitando o meu ritmo de caminhada, General ia conversando comigo sobre algumas de suas batalhas e amigos de exército. Fora uma conversa tão interessante que não percebera quando parei na porta da enfermaria com ele.

–- Luna, queria só lhe dizer uma coisa. Por algum tempo, é melhor que não saia do Refúgio, até que esteja cem por cento recuperada. Sei que há uma busca pessoal, mas antes totalmente recuperada do que voltar cada vez machucada ou ainda algo pior acontecer.

–- Compreendo, General. O senhor está certo.

Ele sorriu e abriu a porta para mim.

–- Tenha uma boa noite, soldado Yumiko. – ele diz e me viro em sua direção. Ele acena e retribuo o gesto sorrindo. General permanece na porta até eu me deitar na cama, depois a fecha com um suave estalo.

Acomodando-me na cama, fico relembrando das palavras do General. Minha busca por Mark seria adiada, e agora só me restava ter uma recuperação rápida. Algo me dizia que eu não tinha muito tempo a perder, e se meus sonhos com meu irmão estivessem certos...

Fechei os olhos enquanto dizia para a escuridão: Eu prometo nunca deixá-lo, Mark.

Os dias que se passaram enquanto eu estava ainda hospitalizada eram tediosos. Minha rotina consistia em: acordar, tomar café, repousar, almoçar, repousar, tomar um banho, repousar, lanche da tarde, repousar, jantar e repousar. Todas as refeições eram trazidas para mim por Suzana ou Rita, e uma das duas vinha duas vezes ao dia para trocar meus curativos. Suzana sempre me conduzia ao banheiro e trazia levas de roupas limpas a cada banho que tomava. Depois de um tempo, o odor das pomadas e os líquidos que ela utilizava para limpar os resíduos dos cremes anteriores já faziam parte de mim. Como eu não ficava em contato com muitos dos refugiados, não tinha problema. . Das pessoas que me visitavam com mais frequência sem ser Rita ou Suzana, estavam Quirina e Alice. As duas passavam boa parte do tempo conversando comigo e procurando me distrair daquela monotonia de repouso. Contaram que Felipe andara um pouco estranho desde a última missão e ninguém sabia o motivo - talvez eu soubesse -, Isabela e Victor continuavam os mesmos, mas o que realmente me chamou a atenção foi:

– Hans anda sumido das refeições - comentou Quirina enquanto sacudia os pés sentada na cama.

– E sabem o motivo? - perguntei tentando não mostrar tanto interesse no assunto.

– Não. Mas Rebeca disse que ele está bem, só trabalhando muito em um projeto no laboratório - disse Alice ajeitando os óculos.

– Nem ela sabe qual é o projeto exatamente - continuou Quirina. - Ele é muito discreto em relação a tudo.

Assenti e preferi não perguntar mais sobre o assunto. Ainda estava um pouco chateada com ele desde o dia da discussão, que ocorrera há umas duas semanas. Claro que não estava tanto quanto antes, mas o fato de ele não aparecer para me visitar ajudava ainda com o meu remorso. Pelo menos ele estava em companhia O rapaz do supermercado se encontrava isolado em um quarto. Segundo Quirina, ele não conversava com ninguém, apenas pegava as bandejas com as refeições e mais nada. Os machucados foram tratados por Suzana, mas ele não quis que ela cuidasse deles por muito tempo. Ao que parecia, ele tinha certo receio das pessoas.

De noite, porém, as meninas não podiam me fazer companhia, então, depois que Suzana trocava meus curativos, eu ficava boa parte do tempo encarando o teto. Meus machucados já estavam, em sua maioria, curados, então podia ficar em posições mais confortáveis sem ser surpreendida pela dor. Eu não tivera mais pesadelos desde a vez que sonhei com Mark se transformando no monstro, mas também eu não tivera sonhos bons, como se eu só me deitasse, fechasse os olhos e depois os abrisse com o dia nascendo. Por um lado isso me tranquilizava, uma vez que eu não me sentia pressionada pelos pedidos de socorro de meu irmão. Eu só esperava mesmo que ele estivesse vivo e que não fosse apenas minha esperança me cegando diante de uma possibilidade de ele estar morto.

Enquanto eu estava na enfermaria, as missões prosseguiam. Agora o grupo consistia em Hans, Felipe, Isabela, Victor e Maria. Me surpreendi quando Alice me contou que Victor havia se solicitado de primeira a ir e fazia progresso nas missões. Com isso, porém, sua arrogância estava pior do que nunca, ainda que outros Refugiados não lhe dessem tanta atenção. Maria se mostrara habilidosa em se infiltrar em locais de difícil acesso e com isso conseguia mais da metade dos itens da lista.

Quando se passou um mês mais ou menos, tive "alta" da enfermaria. Meus arranhões e cortes estavam totalmente cicatrizados e não sentia mais dor nenhuma. Por isso, a primeira decisão que tomei assim que Suzana me liberou, foi procurar Rebeca. Geralmente ela estava no laboratório, por isso fui até meu quarto, onde tirei as roupas cinzas de paciente e vesti roupas mais confortáveis. Tranquei a porta e caminhei normalmente, dessa vez, pelo corredor. Desci os três lances de escada, até que cheguei a uma porta metálica que continha uma placa que dizia LABORATÓRIO DS PESQUISAS - NAO ENTRE SEM BATER. Obedecendo aos dizeres da placa, bati três vezes. Ouvi barulhos de objetos caindo e uma voz masculina familiar. Droga, Hans deveria estar aqui. Estava quase me virando para ir embora quando a porta se abriu e Rebeca apareceu.

–- Luna! Que surpresa boa! - ela me abraçou enquanto me saudava. - Como está?

–- Bem melhor - respondi. - Rebeca, queria pedir uma ajuda sua.

–- Pois diga.

Por um momento, observei por cima do ombro de Rebeca e vi um vulto imerso em várias folhas e equipamentos esquisitos. Um par de olhos azuis me observou por segundos antes de voltar a atenção para a mesa a sua frente.

–- Queria conversar com aquele rapaz do supermercado.

Rebeca franziu o cenho.

–- Por que quer falar com ele? - indagou.

–- Tenho algumas perguntas que acho que ele pode me responder. É importante, ou eu não estaria aqui te importunando.

–- Imagino que seja, Luna, mas acho que você não vai conseguir obter nada além de silêncio daquele rapaz. Ele não fala nada com ninguém desde que chegou aqui.

–- Eu quero tentar. Por favor, venha comigo.

Rebeca hesitou por um tempo. Mordeu o lábio inferior como se ponderasse meu pedido e tivesse outra escolha. Por final, assentiu e virou-se para falar com Hans:

–- Volto em alguns minutos, Hans. Qualquer ferramenta, pode pegar na caixa aí perto da mesa.

Hans assentiu ainda encarando os papeis sobre a mesa. Parecia que ele não queria olhar em minha direção e pouco me importei com isso. Rebeca fechou a porta e fomos juntas em direção ao corredor dos dormitórios. Enquanto andávamos, resolvi perguntar algo que estava martelando em minha mente.

–- Rebeca, no que Hans está trabalhando no laboratório?

Ela me encarou surpresa.

–- Pensei que soubesse o que ele estava fazendo. -- disse-

–- Não, nós... meio que não estamos nos falando por um tempo.

–- Ah, sim. Eu sinceramente não sei o que ele está fazendo, mas supondo os protótipos que ele estava analisando, é alguma arma.

–- Entendi. -- falei quando virávamos a esquina do corredor. -- Ele está trabalhando há muito tempo nesse projeto?

–- Há um tempo, um mês mais ou menos. Não perguntei a ele do que se trata, mas se quiser...

–- Não, não, tudo bem, eu só queria saber isso mesmo.

Andamos até o final do corredor, parando diante da última porta de metal. Rebeca bateu duas vezes e esperou. Nenhuma resposta. Bati três vezes e aguardei. Nada. Já ia batendo novamente quando a porta se abriu e uma voz rouca perguntou:

–- O que querem?

–- Preciso falar com você. -- respondi encarando-o. Ele voltou seus olhos cinzentos para mim, me avaliando por um momento.

–- Você não é a garota que caiu em cima de mim quando foi arremessada?

Revirei os olhos.

–- Sou a garota que tentou te salvar. Você podia se lembrar de mim por isso.

–- O que você quer? - perguntou impaciente.

–- Respostas que acho que você tem.

–- Não tenho tempo pra isso. - ele fez menção de fechar a porta, mas a segurei.

–- Por favor, eu só quero conversar. Não tomarei muito do seu tempo.

Depois de me encarar por um longo tempo, ele se afastou e permitiu que eu e Rebeca entrássemos.

O quarto era quase igual ao de todos, exceto por haver apenas uma cama, uma corrente prateada ao pé dela e uma cadeira, o que o tornava extremamente vazio. A única luz vinha da lâmpada fluorescente do teto. Rebeca fechou a porta e permaneci onde eu estava. O rapaz se sentou na cama e esperou. Não tinha percebido que ele ainda estava com a mesma calça rasgada e manchada de sangue que ele usara quando nos encontramos pela primeira vez. Ele não usava camisa e percebi uma extensa cicatriz de sutura que atravessava seu abdômen definido. Outros cortes o marcavam nos braços, pulsos e testa. Os cabelos castanhos estavam bagunçados, como se ele tivesse acabado de acordar, mas as olheiras que emolduravam seus olhos cinzentos mostravam o contrário.

–- E então? - ele perguntou.

Aproximei-me um pouco e vi Rebeca me acompanhar.

–- Por que está tão isolado? - ela pergunta calmamente. Ele se surpreende com a pergunta.

–- Acredite, não é bom eu me socializar com ninguém aqui. Já estou sendo um risco para vocês duas.

Sua voz não se altera e o que me faz ter certo receio de prosseguir, mas ignoro. Rebeca também não parece se abalar com aquele aviso.

–- Por que você seria um risco? - pergunto e ele ri.

–- Quer mesmo saber o motivo, garotinha?

–- Se eu não quisesse, não teria perguntado, suponho. E meu nome é Luna, não garotinha.

Ele estende a mão de forma cordial e vejo em seu braço alguns símbolos que não consigo entender por conta dos cortes que o sobrepõem.

–- Thiago, ou FEI557, identificação de cobaia. – ele se apresenta enquanto apertamos as mãos. Ele estende novamente para Rebeca desta vez e ela o cumprimenta.

–- Antes de eu responder suas questões, vocês poderiam me fazer um favor?

Thiago se levantou e caminhou até o pé da cama, pegando a corrente.

–- Me amarrem nessa cadeira.

–- Te amarrar? Por que faríamos isso? – estranhou Rebeca.

–- Para o bem de vocês.

–- Não vamos te amarrar sem um motivo. – digo. – Nos explique e talvez possamos compreender e fazer o que pede.

Ele suspirou pesadamente.

–- Antes de eu voltar a ser o Thiago, antes de ser salvo por vocês, eu era FEI557, uma cobaia de um médico maluco que sequestra pessoas para fazer o que bem entende com elas. Posso lhes explicar mais coisas, mas, por favor, me amarrem.

Relutantes, Rebeca e eu o obedecemos. Ele se senta na cadeira e me entrega a corrente. Nós o envolvemos a partir do tórax e damos voltas na cadeira, tomando cuidado para não apertar demais. A corrente é longa o bastante para segurá-lo até as pernas. Quando Rebeca fecha o cadeado com um clique, nos voltamos a ele.

–- Obrigado. É mais tranquilo conversar com vocês agora.

–- Por que isso? – pergunto.

–- Querem que eu lhes conte a minha história do começo?

Assentimos enquanto nos sentamos na cama. Era muito estranho conversar com uma pessoa que está diante de você e amarrada sem motivo aparente. Resolvi guardar isso para mim e esperei Thiago começar.

–- Tudo começou no dia 24 de dezembro para mim. Lembro-me de estar com meus pais e com minha irmã mais nova, Clara. Estávamos fugindo há uma semana desde quando tudo começou. Passávamos a noite em casas abandonadas, que sempre fazíamos alguma varredura no local antes de entrarmos. Meus pais me ensinaram a atirar e tudo mais, uma vez que ambos eram policiais e também não tínhamos garantia de que estaríamos juntos... sempre.

"Há mais ou menos três semanas depois do começo do caos, eu havia sido sequestrado por homens... não sei bem se eram homens de verdade, eles andavam completamente cobertos, apenas com os olhos expostos, e não diziam nada, apenas gruíam. Não pareciam ser zumbis; tinham consciência do que faziam, embora a comunicação entre eles ser na base de grunhidos e uma língua que eu desconhecia. Eles haviam me golpeado na cabeça e devo ter ficado desacordado por algumas horas, não sei... Em todo caso, acordei em uma sala muito iluminada e eu estava deitado em uma cama macia de lençóis brancos. Me levantei e quando tentei avançar para longe daquele lugar, algo me impediu. Era uma porta de vidro que me impedia de sair e não havia nenhuma maçaneta ou algo do tipo. Eu estava, ao que parecia, em uma cela."

Thiago teve um leve acesso de tosse e vi Rebeca fazer uma menção como se fosse ajudá-lo, mas ele se recompôs a tempo. Olhei de esguelha para ela e vi sua expressão preocupada enquanto encarava Thiago.

–- Mas como conseguiu escapar desse local? – resolvi quebrar o silêncio.

–- Foi por muita sorte, creio eu. – respondeu ele. – A vigilância não era muito bem reforçada por conta das celas serem altamente resistentes a qualquer dano. Uma vez, quando dois guardas me levavam para os exames matinais, eu os golpeei e peguei o cartão de acesso às portas do prédio. Quando eu estava do lado de fora, o alarme soara e então mandaram reforços para me prender, mas fui mais rápido graças a algumas experiências que me deram habilidades maiores como em velocidade, por exemplo. Então, sabendo que só uma coisa muito forte poderia me deter, mandaram o Sanguinário, a arma mais forte criada em laboratório, para me matar.

Novamente, flashes surgiram em minha mente da tarde em que eu encontrara Thiago e aquela criatura, o Sanguinário, no mercado. O rugido do monstro ainda me causava arrepios quando me lembrava dele.

–- E então aquele monstro foi desenvolvido no mesmo lugar que você? – perguntei e ele assentiu.

–- Eu era o segundo projeto semelhante ao Sanguinário e que aquele cientista maluco queria transformar.

–- Que coisa horrível usar pessoas como cobaias para atrocidades como essas. – falou Rebeca. – Quem é esse cientista? Você já o viu alguma vez?

Thiago fez que não com a cabeça.

–- Ele nunca se mostrava para as cobaias, ficava sempre em uma cabine na qual não podíamos ver quem estava do outro lado por conta do vidro que a revestia. Apenas ouvíamos sua voz, mas não tinha nada demais nela.

–- Mas você sabe qual o objetivo dele? O que ele quer exatamente com as pessoas?

–- Disso ninguém sabe. Ninguém nunca nos disse nada, qual o objetivo. Ele apenas sequestrava quem ele queria e fazia as experiências necessárias. Os primeiros resultados de evolução vieram com os Retalhadores; depois, o Sanguinário e ele testava agora algum mais forte.

Ele tossiu mais uma vez, porém com mais intensidade e vi os músculos de seu tórax comprimirem até demais. As veias em seus braços se salientaram como se enchidas por uma bomba de ar de repente. Thiago respirava com dificuldade, até que o acesso se encerrou como desligado por um interruptor.

–- O que há com você? – Rebeca parecia extremamente preocupada.

–- As injeções que foram aplicadas em mim... Elas causam reações extremas em meu corpo... Não sei como pará-las... – sua voz estava fraca enquanto dizia, como se ele tivesse acabado de chegar de uma maratona.

–- Você não pode controlar isso? – questiono com cautela.

–- Não é como um espirro que você pode evitar. – diz calmamente. -- Entenderam por que pedi que me amarrassem? Num desses acessos eu...

O corpo de Thiago estremeceu violentamente dessa vez. Ele baixa a cabeça enquanto seus músculos parecem querer romper as correntes que o seguram. Ouvi seus dentes rangerem como se fossem quebrar e um som gutural escapou de seus lábios como um animal.

–- Saiam daqui – ele pede antes de soltar um grito de dor.

–- Não vamos deixá-lo – Rebeca estende a mão para tocá-lo, mas ele ergue o rosto na direção dela. Seus olhos estão oscilando entre vermelho e cinza.

–- Não há nada que possam fazer! Me deixem aqui e vão embora!

–- M-mas...

–- VÃO!

Thiago tombou de lado e a cadeira cai com seu peso. Ele está num frenesi entre gritos, grunhidos e espasmos, e aquilo chega a me assustar. Puxo Rebeca para longe, mas ela hesita em me deixar levá-la. Seus olhos estão levemente marejados enquanto ela observa o rapaz caído no chão.

–- Vamos, Beca, ele disse que não podemos fazer nada.

Ela me deixa finalmente puxá-la e andamos até a porta. Assim que a fecho atrás de mim, ainda posso escutar os gritos dele. Me viro para Rebeca, que está de braços cruzados sobre o peito, murmurando algo consigo mesma.

–- O que foi? – pergunto a ela.

–- Não podemos deixá-lo sofrer com isso – ela diz e sinto compaixão em sua voz. – Digo, ele pode ser um risco para os Refugiados, você sabe.

–- Sim. – contenho-me para não dizer que não é apenas por este motivo. – Mas o que podemos fazer? Não tem como fazer um antídoto que o cure disso. Não se sabe quais substâncias estão no corpo dele.

–- Eu sei, eu sei, mas não posso deixá-lo assim. Vou pesquisar sobre isso e é agora.

Rebeca deu um aceno e correu pelo corredor, sumindo de vista rapidamente, seus cabelos ruivos parecendo chamas ardentes de uma fogueira em movimento. Me afastei da porta do quarto de Thiago e segui na mesma direção onde Rebeca seguira. Assim que fiz a curva, quase me choquei contra um vulto que caminhava na minha direção.

–- O que faz aqui? – a voz desdenhosa de Victor me surpreende.

–- Não te interessa – respondo e tendo me desvencilhar dele, mas Victor bloqueia minha passagem.

–- Vaso ruim não quebra, não é mesmo? – ele diz enquanto olha meus machucados. – Acho que o zumbi não era competente bastante para fazer o serviço completo.

Aquelas palavras fazem meu sangue ferver, mas tento me controlar. Seria uma boa hora para ele conhecer Thiago.

–- Você fala demais, Victor. Será que está com toda essa moral mesmo? – pergunto e ele me encara com um sorrisinho nos lábios. – Talvez caia em combate em menos de dois segundos...

–- Você quer morrer tanto assim? – Victor ameaça, mas não me intimido.

–- Cara, tenta outra ameaça, essa não me convenceu. – digo em tom de sarcasmo.

Sua expressão se fecha e se torna sombria.

–- Vamos ver se você se torna engraçadinha daqui alguns dias.

–- Ai, meu Deus, estou sendo ameaçada de novo em um intervalo tão curto de tempo. Isso é realmente preocupante.

Victor me empurra contra a parede com um dos braços e sinto uma ligeira dor nas costas quando atinjo o concreto.

–- Continue a zombar de mim e vai ver o que te acontece, chinesa. – diz me encarando fixamente nos olhos.

–- Sinceramente, suas noções erradas de nacionalidade não me incomodam. Não vou exigir demais de alguém como você. – sustento seu olhar com a mesma intensidade.

Empurro-o para longe e volto a seguir meu caminho. Antes de me afastar, digo para ele, ainda de costas:

–- Não se preocupe, vou resolver estas questões com você um dia.

E sigo na direção das escadas, sumindo na escuridão. Não sabia se Victor ainda estava lá quando eu dissera, mas esperava que tivesse escutado. Não o toleraria por muito tempo.

Fechei a porta do meu quarto e me joguei em minha cama ainda com sapatos. Havia acabado de jantar – uma refeição ótima por sinal que Suzana e Rita fizeram – e agora sentia-me satisfeita e sonolenta. O dia transcorrera de forma tranquila e até um pouco tediosa. Depois de encontrar Victor, encontrara Suzana e ela me chamara para o almoço. Quando todos estavam reunidos, notei que haviam duas cadeiras vazias. Hans se encontrava ausente da maioria das refeições, mas agora era a vez de Rebeca não comparecer. Talvez a história de Thiago tivesse mexido tanto com ela que agora esta deveria se encontrar em seu laboratório, procurando informações que pudessem ajudá-lo. Ela até tinha motivos para não aparecer, mas o que havia de errado com Hans? Queria conversar com ele sobre o rapaz que era na verdade uma cobaia, mas todas as vezes que me lembrava que Hans não estava falando comigo, me entristecia. Depois do almoço, Suzana levara duas porções de comida para fora do Mata-Fome e supus que fossem para os dois ausentes.

Quirina e eu passamos boa parte do dia analisando os equipamentos de segurança do Refúgio que estavam na SRG. Pelas telas de computadores vimos as ruas que não caminhávamos pareciam anos, quando na verdade eram apenas três meses. Alguns zumbis vagavam pela frente dos portões do Refúgio, mas não havia mais a quantidade de zumbis que existiam antes. O que acontecera com eles eu não fazia ideia. Talvez o seu “amigo” evoluído, Sanguinário, tivesse destroçado alguns. Procurei por todas as câmeras por algum sinal que mostrasse alguma silhueta monstruosa, mas não havia nada. Era um alívio de certa forma. Contei à Quirina sobre Thiago e o que ele contara a mim e Rebeca. De alguma forma, ela não se surpreendeu com algumas partes.

–- Ele não parecia ser algo normal quando trouxeram para cá – disse quando saímos da SRG.

–- Por que diz isso?

–- Acho que Hans teve que dar uma pancada na cabeça do cara para conseguirem trazê-lo pra cá. Ele falava coisas sem sentido, parecia um maluco.

–- Agora ele só tem acessos assustadores de raiva por conta das experiências. – falei.

Fomos então encarregadas de tarefas domésticas no Refúgio e não pudemos conversar mais.

Escuto batidas fortes na porta. Olho para ela e tenho preguiça de me levantar. Era quase a hora do toque de recolher, quem poderia ser? Lentamente, me levanto da cama, andando arrastando os pés e suspiro antes de abrir a porta. Quando abro, não posso evitar a surpresa. Hans está parado e me encarando por cima dos óculos. Sinto vontade de abraçá-lo ou bater nele por ter passado tanto tempo sem vir falar comigo, mas tudo o que digo é:

–- O que você quer?

–- Queria saber como você está. – ele responde ignorando meu tom rude na pergunta. Seus olhos parecem um pouco mais azuis do que antes.

–- Como pode ver, estou ótima. Estava me preparando para ir dormir, portanto se me der licença...

Faço menção de fechar a porta, mas Hans é mais rápido colocando o pé entre ela e o batente.

–- Luna, quero conversar com você. – ele pede em voz baixa.

–- Não temos o que conversar, Hans. Acho que fomos bem claros um com o outro na enfermaria.

–- É sobre isso que quero conversar. Por favor, me deixe entrar. Não quero brigar com você.

Hesito em permiti-lo entrar. Uma parte de mim quer fechar a porta em sua cara e ir dormir para descansar. A outra parte quer escutar o que ele quer dizer, quer falar com ele para que nunca mais deixe de falar comigo, e aqueles olhos azuis por trás de óculos não ajudam muito o meu outro lado a tomar a decisão. Recuo dando passagem para ele e fecho a porta em suas costas.

–- E então? – cruzo os braços e o encaro.

Ele suspira pesadamente. Está bem diferente do cara que explodiu comigo naquela manhã. Sua postura está relaxada, as olheiras que emolduram seus olhos mostram que deve ter passado noites de insônia.

–- Luna, me desculpe por ter gritado com você. Eu entendo bem o seu lado e seus motivos de ter ido lá. Estava preocupado com você, com o que poderia ter acontecido com você. Quando a vi caída, em meio a tanto sangue, foi o meu maior pesadelo. Eu temia que...

–- Hans, eu já lhe expliquei. Se soubesse o que havia lá, jamais teria entrado. Também havia outra questão que me fez ir lá, mas isso não importa. Já passou.

–- E não fiquei bravo apenas com você, mas comigo também. – ele continuou e ouvi um pouco de hesitação em sua voz.

–- Não tinha porque ficar bravo consigo mesmo se a atitude foi minha. – falei.

–- Não, eu tinha motivos sim.

–- Por que teria?

–- Porque não consegui evitar que algo assim acontecesse com quem eu amo.

Cambaleei para trás como se tivesse recebido um soco. Por um momento, senti como se meu coração despencasse e encarei firmemente a Hans. Ele sustentou o olhar sorrindo ao ver minha reação.

–- V-você o - quê? – gaguejei.

–- Nós deveríamos ter ido juntos, lutado juntos contra aquela criatura – ele pega minha mão e acaricia levemente uma cicatriz em meu pulso. – Talvez as coisas tivessem sido diferentes. Eu não suporto a ideia de quase tê-la perdido.

–- Hans – minha língua parecia pesar uma tonelada tamanha a dificuldade de eu conseguir dizer algo. – O que quer dizer exatamente com isso? – pergunto enquanto encaro sua mão na minha. Ele toca em meu queixo e ergue minha cabeça para que eu o encare nos olhos.

–- Você ainda não entendeu? Luna, você é a única pessoa que tenho agora. Lembra-se do que eu disse quando saí da enfermaria?

–- Que você entendia o meu desespero. – disse.

Ele assentiu.

–- E sabe a quem eu me referia? – perguntou.

–- Tenho cara de alguém que adivinha e acerta? – perguntei de brincadeira e ele deu uma risada.

–- Me referia a você. Eu te amo, Luna. Quero que seja minha amiga, minha namorada, futura esposa e parceira para todos os dias de nossa existência, até além do fim do apocalipse.

O olhei nos olhos, incapaz de dizer algo. Procurei qualquer resquício de brincadeira ou mentira, mas não encontrei. Apenas me sentia mergulhar no oceano daqueles olhos azuis e no sentimento que eles transmitiam para mim. Meu coração martelava tanto que pensei que pudesse sair do meu peito a qualquer instante.

–- Você não pode estar falando sério... – sussurrei enquanto baixava o rosto.

–- Nunca falei tão sério com alguém. – ele respondeu. – Desde a primeira vez que te vi, percebi que você não era como as outras garotas. Quando estava amarrada naquele poste e Marcus começou a rondá-la como um cachorro, eu soube que não poderia deixá-la sozinha, principalmente sabendo a pessoa que ele era. Armei aquela missão falsa para despistá-lo e me surpreendi por terem acreditado. Me solicitei a ficar de olho em você pois tentaria ajudá-la a escapar. No final, você já tinha esse plano em mente.

Enquanto ele falava, as imagens daquele dia retomavam a minha mente e também um acontecimento daquele dia.

–- Mas você tentou me impedir – lembrei-o e ele sorriu.

–- Queria saber até onde você iria e foi muito além de minhas expectativas. Percebi então que nada a impediria de sair dali com Quirina, muito menos alguém como eu.

Sorri de felicidade, a segunda vez em tanto tempo. Hans pegou minhas mãos e me puxou gentilmente em sua direção. Olhamos-nos por muito tempo. Ele me abraçou colocando suas mãos na base da minha coluna e abracei seu pescoço. Estar entre seus braços era como uma zona de conforto em meio aos caos que eu vivia. Nem havia percebido o momento em que nossos rostos se aproximaram e senti os lábios de Hans.

Foi como se tudo ao nosso redor se dissolvesse enquanto nos beijávamos. O apocalipse, os problemas, meus medos, tudo. Estávamos em um mundo só nosso, um mundo que eu há muito queria e só percebera agora enquanto estava entre os braços do cara que eu amava. Hans acariciava meu pescoço, e sua mão deslizou por minhas costas, deixando um rastro de arrepios por onde sua mão percorria.

–- Hans... – sussurrei entre nossos beijos.

–- Diga...

–- Eu te amo, eu te amo muito e o que mais quero é ser sua companheira nesse apocalipse, e se houver outros, serei também. Quero que esteja do meu lado para sempre pois assim estarei com você.

O som de sua risada foi a melhor coisa que poderia escutar naquela noite. Hans me pegou no colo e rodopiou comigo, até que então me colocou em minha cama e o puxei para mim. Ele apoiou os braços em cada lado de mim e nossas bocas se encontraram em mais um intenso e profundo beijo. Minhas mãos tocavam seus cabelos pretos e a textura deles era incrivelmente macia. Hans beijou suavemente meus lábios mais uma vez e então se deitou ao meu lado, passando o braço por minha cintura.

–- Isso é real? – ele pergunta.

–- O que é real?

–- A garota mais fantástica que conheço realmente disse que me ama?

Viro-me para ele e o encaro enquanto sorrio.

–- Se essa garota for eu, então sim, é real. – digo.

Hans me dá um beijo na testa.

–- Vamos dormir?

–- Vai estar aqui quando eu acordar?

Ele sorri.

–- Estarei com você sempre de agora em diante.

Hans me abraça e inclino meu rosto na direção de seu pescoço. Seu cheiro é levemente almiscarado. Ele acaricia meus cabelos enquanto fecho meus olhos e sinto o sono recair sobre mim, mas dessa vez seria diferente, e eu imortalizaria aquela noite para sempre em minha mente e em meu coração.


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