Hunters Of The Death escrita por Débora Chase


Capítulo 12
Experiência de quase morte


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores!
Eu sei, desculpem-me a demora, mas aqui estou, escrevendo e e postando as aventuras de Luna.
Capítulo enoorme pra compensar.
Beijos! *-*



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Estava em meu antigo quarto. Deitada na cama, eu encarava o teto como se pudesse ver o céu por trás do gesso. A única fonte de luz era de meu abajur que dividia a superfície de meu criado-mudo com os mangás de InuYasha. A porta estava entreaberta e, não sabia porquê, esperava alguém irromper dela. Do lado de fora de minha janela, a brisa morna ondulava as longas cortinas e a luz da lua cheia iluminava parcialmente o chão. Nas paredes, quadros e alguns desenhos que eu havia feito quando criança. O cômodo mantinha o mesmo aroma de lavanda que me era familiar desde minha infância até a última vez em que eu pisara nele.

A porta rangeu quando foi empurrada e voltei meu olhar automaticamente para ela. Parte do rosto de minha mãe apareceu e ela perguntou:

–- Posso entrar, filha? -- sua voz era a mesma de sempre, serena e gentil.

–- Claro, mãe.

Tão delicada como sempre fora, ela entrou e vi que vestia seu quimono de seda azul com estampas de flores de cerejeira. Sentou-se em minha cama e me levantei para lhe abraçar. Era tão bom estar envolta naqueles braços novamente que nem havia percebido que estava chorando em seus ombros. Ela tinha o aroma doce de canela, seu perfume preferido.

–- Está tudo tão difícil, mãe. É pior ainda por não ter você, ou o papai e Mark aqui comigo. -- falei ainda com a cabeça apoiada em seu ombro.

–- Eu sei, minha guerreira. Mas saiba que eu e seu pai estamos acompanhando sua jornada e estamos orgulhosos de você.

–- Às vezes, eu penso tanto em desistir de tudo...

Ela se afastou de mim e encarou-me fixamente. Era como se eu olhasse para meu reflexo do futuro de tão parecidas que éramos.

–- Não se entregue facilmente, Luna.-- disse seriamente, mas logo depois sua expressão se suavizou e seu tom era de brincadeira. -- Ei, cadê aquela menina encrenqueira que vivia se metendo em confusões no colégio?

Balancei o rosto e baixei a cabeça.

–- Ela se foi para sempre, mãe.

–- Bem, então quero que ela volte. Porque essa é a minha Luna, a filha que sempre me deu alegria, que sempre me orgulhei em ter e que não se deixava vencer por nada nem ninguém.

Mamãe estendeu a mão e tocou meu rosto, sorrindo.

–- Eu queria poder lhe ajudar, mas como isso não é possível, saiba que eu estarei contigo, e com Mark também, protegendo os dois.

–- Mãe, eu o perdi, sequestraram-no e tenho certeza de que sei quem fez isso.

–- Então, mais um motivo para não desistir. Coisas piores estão por vir, filha, e só você quem poderá mudar o rumo dos acontecimentos.

Ergui o rosto.

–- Que tipo de coisas, mãe? -- tentei parecer calma, mas acho que o desespero em minha voz foi perceptível para ela.

–- Infelizmente, não posso lhe contar -- desculpou-se baixando os olhos por um momento e voltou a erguê-los em seguida. -- Você só descobrirá passando pelas experiências...

A voz de minha mãe começou a sumir no mesmo instante em que a cena parecia se dissolver em uma névoa escura. Tentei chamá-la, mas minha voz parecia ter sumido, e então me perdi na escuridão envolvente.

*****************************************************************

Acordei num sobressalto. Achei que estava atrasada para a missão, mas não escutei nenhum som do lado de fora do quarto. Olhei para o pequeno relógio ao lado da minha cama e vi que eram cinco horas da manhã. Joguei-me novamente no colchão e esfreguei os olhos. Deveriam faltar ainda, pelo menos, duas horas até que saíssemos em busca dos mantimentos e cá estava eu, sem sono.

Lembrei-me do meu sonho. Agora eu estava na mesma posição que estava em meu sonho enquanto encarava o teto. Mas eu não estava em meu quarto, nem em minha casa e, observando a porta de metal, lembrei também que minha mãe não iria aparecer pela porta e me confortar com seu abraço. Sem perceber, senti lágrimas escorrerem por meu rosto, passarem por minhas orelhas e umedecerem meu travesseiro e algumas mechas de cabelo. O sonho tinha sido tão vívido que eu ainda sentia o doce aroma de canela que vinha de minha mãe. As palavras dela eram tão gentis quanto as que escutei pela última vez em nosso carro, quando ela pediu, entre lágrimas, que eu me salvasse e levasse Mark comigo e que agora ela e papai confiariam em mim para que eu sobrevivesse e meu irmão também.

Coisas piores estão por vir, ela dissera. Perguntava-me se mamãe poderia ter me dito algo antes de todo o sonho desaparecer ou se ela só dissera aquilo para que eu não me sentisse amedrontada ou tivesse surpresas futuras. Tinha quase certeza plena de que a maior parte dessas coisas tinha a ver com Dr. Bóris, mas também poderia ser algo relacionado a pessoas repulsivas como Redlin e Marcos.

Virei-me para a parede e fechei os olhos, limpando o restante das lágrimas empoçadas em meus olhos. Permaneci com os olhos fechados, mas já não sentia mais sono algum. Virei-me para o outro lado e me cobri até o pescoço, me encolhendo até parecer uma bola. Depois de uns dez minutos rolando na cama, resolvi me levantar. Talvez também pudesse ser a ansiedade por conta da missão que não me deixava dormir. Pensei no que os Refugiados haviam dito sobre as pessoas que haviam morrido nela. Eu já havia enfrentado Retalhadores e vencido eles, então se os encontrasse novamente, poderia matá-los mais uma vez. Não acreditava que pudessem existir outras evoluções de zumbis, a menos que Dr. Bóris quiser criar seu próprio exército inspirado em zumbis de Left 4 Dead ou Resident Evil. Contando que eu não tivesse que lutar contra nenhuma espécie de Nêmesis ou um Tank, estaria tudo tranquilo.

Caminhei até a porta e tentei abri-la sem fazer nenhum barulho. Olhei para o corredor antes de sair do quarto. Estava vazio e com pouca iluminação, tendo apenas uma ou duas lâmpadas acesas. Fechei a porta do meu quarto e comecei a andar em passos hesitantes pelo corredor e senti o chão um pouco frio sob meus pés. Pensei em voltar e calçar meu coturno, mas eu iria apenas até a cozinha beber um copo d'água e retornaria para meu quarto, então não seria necessário. Sentia algumas correntes de ar chocarem contra minha camisola, que por sorte tinha mangas até os cotovelos e me impedia de sentir muito frio.

Era estranho andar pelo Refúgio e não cruzar com ninguém pelos corredores. Em geral, sempre era possível esbarrar em uma das vinte pessoas que aqui residiam, mesmo e talvez principalmente quando faziam as tarefas do dia-a-dia. Agora os corredores se encontravam bem desertos, a não ser por mim. Segui para a cozinha, onde escutei som de panelas sendo derrubadas e copos se estilhaçando. Havia mais alguém enfrentando problemas de insônia como eu? Empurrei a porta lentamente e espiei pela fresta. Cacos de vidro estavam tomando o chão, brilhando a luz fraca, e dividiam espaço com algumas panelas, como eu havia escutado. Perto do fogão, lutando para acender o fogo, estava Alice, usando um robe rosa por sobre o pijama. Seus cabelos estavam bagunçados e ela respirava de forma exasperada.

–- Alice? -- perguntei enquanto ela quase derrubava uma caneca que estava em sua mão.

–- Quem...? Ah, Luna, é você? -- perguntou estreitando os olhos por trás dos óculos enormes.

–- O que está fazendo aqui a essa hora? -- continuei parada na porta, uma vez que estava descalça e o chão era um risco para se andar daquele jeito.

–- Queria fazer um pouco de chocolate quente, mas sou um desastre total. – ela baixou os ombros em expressão de derrota.

–- Posso fazer para você, mas primeiro, me dê uma vassoura. -- pedi e ela arregalou os olhos.

–- Para fazer chocolate quente?

Acabei rindo com a pergunta dela.

–- Não, é para que eu possa varrer esses cacos de vidro mesmo. - expliquei. -- Estou sem sapato algum. – apontei para meus pés nus.

Alice assentiu e pegou uma vassoura que estava perto da dispensa. Depois de termos varrido todo o chão, juntado as panelas e guardá-las nos armários, fiz o chocolate quente suficiente para nós duas.

–- Está uma delícia, Luna -- elogiou Alice quando estávamos sentadas em uma pequena mesa de canto e ela havia tomado um grande gole do líquido de sua caneca.

–- Obrigada, Alice, -- agradeci -- mas, me diga uma coisa: por que queria fazer chocolate quente assim tão cedo? O café da manha é daqui a algumas horas.

–- Eu estava sem sono mesmo, e também porque queria fazer algo sozinha também -- respondeu ela tristemente.

Baixei a xícara, pousando-a na mesa.

–- Como assim?

Alice ajeitou os óculos nervosamente sobre os olhos. Seus olhos estavam tristes enquanto dizia:

–- Eu me sinto uma inútil aqui, a verdade é essa. Você consegue ver isso no nosso dia-a-dia. Não sou capaz de fazer nada sem derrubar tudo e ouvir as pessoas me dispensando dos serviços. É realmente chato ser rejeitada dessa forma.

–- Mas você não é uma inútil aqui, Alice. Rebeca não rejeita sua ajuda...

–- Ela não rejeita por pena, Luna, acha que não sei disso? – interrompeu-me ela. – Acha que não sei que ela pensa que, por um acaso, eu estava lá na casa dela e de meu tio e por sorte sobrevivi até agora? – seu tom de voz era amargo enquanto ela batia a mão na mesa ressaltando cada palavra. Como permaneci em silêncio, ela continuou. -- Quando todo esse apocalipse começou, horas antes, eu havia ido para casa de minha prima para almoçar, algo que eu fazia geralmente quando voltava do colégio com Rebeca. Faz dois anos que ela ficou órfã de pai, e sua mãe costumava visitá-la a cada quinze dias.

–- Visitá-la? -- estanhei. -- Por que a mãe dela não morava com a filha?

–- Ela não tinha lá um lado maternal. Assim que minha prima nasceu, ela resolveu deixá-la apenas pelos cuidados do pai. Por isso que Rebeca fala com orgulho dele e nunca menciona a mãe.

–- Desculpe dizer, mas ela tem toda a razão em não dizer nada.

–- Às vezes, penso que ela odeia a mãe, ou sente pena. Em todo caso, quando vimos a notícia, lembro-me de Rebeca murmurar algo e logo depois ela correu para o quarto de meu tio e voltou trazendo uma caixa. -- Alice suspirou pesadamente, como se estivesse chateada em relembrar aquele momento. -- Então ela me trouxe para o Refúgio com ela assim que soubemos dos ataques dos... zumbis.

Alice hesitou. O silêncio era algo externo, uma vez que minha mente estava em constante trabalho. Imaginava a cena que Alice havia descrito: ela e Rebeca saindo de casa, zumbis cercando-as. Não conseguia imaginar Rebeca ou Alice lutando contra zumbis. Talvez elas tenham conseguido chegar ao Refúgio antes do acontecimento tomar grandes proporções.

Eu não tivera essa sorte.

–- Você entende, Luna? -- a voz de Alice me tirou de meus pensamentos. -- Se eu não estivesse por acaso naquele dia... Se eu tivesse ido embora mais cedo... -- inspirando profundamente, vi que algumas lágrimas brilhavam nos olhos por trás da lente. -- Desde então, Rebeca começou a dar abrigo a todos que pudesse. Ela tem uma função aqui, assim como todos. Isso não me incomoda, o que me incomoda é o fato de eu ser uma completa inútil aqui. Rebeca me abrigou por acaso, e ela sabe que eu sou uma inútil, o quanto sou desastrada. Ela... me mantém aqui por pena.

Pensei nas palavras de Alice. De certa forma, o pensamento dela poderia fazer sentido, mas não para alguém como Rebeca. Era injusto Alice pensar que a prima ainda a mantinha ali no Refúgio por pena. Empurrei minha caneca vazia e encarei seriamente Alice.

–- Olha, tenho certeza que Rebeca não pensa desta forma. Foi, de fato, sorte a sua estar em companhia dela e quando todo esse apocalipse começou. Agradeça isso, agradeça por não estar lá fora, arrastando um corpo pútrido pelas ruas em busca de carne fresca para tentar te manter erguida, mas que não vai reverter seu quadro. Apenas agradeça por isso, Alice!

Ela ajeitou novamente os óculos sobre o nariz; deveria ser uma forma de demonstrar seu nervosismo.

–- Eu não quis dizer isso...

–- Então foi o quê? – indaguei.

–- Eu... Eu só queria... queria poder ser útil a todos, apenas isso. Que as pessoas não hesitassem em me pedir ajuda ao invés de reclamarem quando me solicito...

–- Se quer isso, então lute pra isso. Ser desajeitada é algo que você pode mudar e que não pode ser um obstáculo. – me levantei. – Se lamentar não adianta de nada, Alice. Quer ser útil? Então faça algo.

Coloquei minha caneca na pia e saí da cozinha, deixando Alice sentada me encarando com olhos surpresos por detrás dos óculos.

Quando cheguei ao corredor, encontrei Suzana se afastando da porta do quarto de Hans. Seus cabelos estavam presos por debaixo de uma bandana estampada e ela tinha uma expressão de surpresa quando me viu entrar pelo corredor.

–- Luna? Acordou tão cedo, menina. Está tudo bem? Fui até seu quarto te deixar algumas roupas e vi sua cama vazia. Está frio para ficar sem sapato - ela indicou para pés.

–- Sim. Só fui pegar um copo d'água e estava retornando para meu quarto. -- respondi. Resolvi não contar sobre ter encontrado Alice na cozinha. Aquela conversa parecia que seria bom ser mantida apenas por nosso conhecimento.

–- Entendi. Bem, estou indo para a cozinha preparar o café de vocês, daqui à uma hora deve estar tudo pronto. Descanse um pouco antes de vir se alimentar. -- ela se despediu com um aceno e se afastou. Escutei seus passos arrastados pelo chão até eles desaparecerem no fim do caminho.

Eu não conseguia pensar em dormir quando abri a porta do quarto. Sentia algo queimando e ao mesmo tempo se transformando um bolo em minha garganta. Um desconforto parecia tomar conta de mim quando vi a pilha de roupas escuras sobre minha cama. Afastei-as para um lado e me deitei sobre a colcha, o corpo virado para cima. Não entendia porque daquilo tudo que sentia. Talvez por ter ficado quase três meses sem matar um zumbi haviam me deixado, de alguma forma, ansiosa e hesitante em ir.

Não vai acontecer nada demais, repeti mentalmente duas vezes enquanto seguia para o banheiro para tomar meu banho e me preparar para o que me aguardava.

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Deveriam ser por volta de 06h50 quando eu deixava meu quarto com o machado firme em uma das mãos. Vestia a roupa que Suzana havia deixado sobre minha cama: calça de couro preta, camiseta de malha cinzenta e jaqueta preta de motoqueiro. Era o tipo de roupa que eu gostava de usar, ainda que fosse justa em meu corpo -- no caso da calça -- mas não limitava meus movimentos como o jeans fazia. Poderia lutar sem preocupações quanto a isso.

Estar com o machado em minhas mãos novamente era, de estranha forma, confortável. Aquela arma já me salvara a vida diversas vezes e o seu peso em minha mão era familiar, como um relógio de pulso deveria ser para algumas pessoas. Lembrei-me das histórias que minha mãe contava sobre os samurais, guerreiros japoneses da época medieval. Um samurai é um guerreiro por si só, mas a arma que traz consigo e como ele a utilizará determina o homem que ele é, dizia minha mãe. Ela dizia também que a família dela descendia de samurais, e que ela sabia que parte desse sangue de honra viera comigo. Esperava honrar meus ascendentes e, embora não empunhasse uma katana, o machado de dois gumes determinava a pessoa que eu era até ali; alguém persistente e que não perdia as esperanças de recuperar o que me fora tomado.

Cheguei ao Mata-Fome e encontrei Felipe, Suzana, Lúcia, Rita e Rebeca sentados a mesa. O primeiro sorriu ao me ver, mas nao parecia ser um sorriso de felicidade, e sim de aprovação. Senti seus olhos vagarem lentamente por mim de cima a baixo de forma demorada, e me apressei em sentar e fugir de seu olhar. Aquilo me desconcertava.

Rebeca, que estava na cabeceira da mesa e pousava uma xícara de café com leite sobre o pires, saudou minha chegada:

–- Bom dia, Luna -- seu sorriso era amigável, mas seus olhos pareciam cansados, as pálpebras caindo ligeiramente sobre eles.

–- Bom dia. Mais ninguém acordou? -- perguntei enquanto me servia de pão com manteiga.

–- Os outros estão dormindo - respondeu Felipe, em uma voz ligeiramente arrastada. -- e Isa e o outro carinha lá de óculos...

–- Hans.

–- Como? -- questionou Felipe, erguendo os olhos por cima da xícara.

–- O nome dele é Hans -- falei, destacando cada sílaba. Senti os olhos de todos em nós dois agora.

–- Como quiser, Flor de Cerejeira. -- seu tom de voz parecia ter assumido uma simpatia forçada. -- Eles estarão aqui daqui a pouco.

Alguma coisa parecia estranha em Felipe. A forma como ele me tratava... estava meio... indiferente? O que havia acontecido com toda a gentileza e galanteios de antes para comigo? Alguma coisa acontecera com ele, mas eu não podia negar que me sentia melhor sem aquela atenção excessiva toda.

Alguns minutos depois, a porta se abriu e Hans entrou sozinho. Usava jeans escuros e uma camiseta cinzenta. O fuzil estava preso às costas. Seus olhos pousaram em mim assim que entrou e fiz um breve aceno de cabeça quando ele veio se sentar do meu lado.

–- Bom dia para todos – ele saudou educadamente enquanto se sentava. Todos murmuraram “Bom dia” em resposta – ainda que o de Felipe quase fora inaudível.

–- Espero que tenham descansado bem – disse Rebeca. – pois a missão será difícil. Pelo menos, o caminho que irão percorrer. Quando terminarem o café, vão para a SRG. Tudo o que tiverem que levar se encontra lá. Quando Isabela chegar, vão imediatamente para lá. Com licença. – e se retirou da mesa.

Aos poucos, mais refugiados chegavam à mesa e se serviam do café e das travessas de pão, queijo, bolo, torradas e muitas outras comidas que Suzana e Lúcia insistiam em repor quando restava pouco. Servi-me de tudo um pouco. Sentia uma fome inexplicável, ainda que tivesse tomado uma xícara de chocolate quente há pouco tempo. Lembrar disso me fez lembrar de Alice e, por coincidência, esta entrara no cômodo e seu olhar pousou em mim. Ela deu um breve aceno antes de se sentar ao lado de Maria, quando a garota puxou a cadeira para ela. Não sabia se Alice levaria minhas palavras como um incentivo ou crítica, e procuraria falar com ela depois.

Quando tomava meu último gole de café, ouvi as dobradiças da porta rangerem em protesto e a porta bateu. Ergui meu olhar e quase cuspi o café em minha boca. Isabela vinha caminhando até a mesa e pegou apenas um pão com manteiga. Mas não foi isso que me fez tomar um susto. Ela usava roupas inapropriadas, a meu ver, para enfrentar zumbis. Usava um short jeans bem justo na metade da coxa, uma blusa de couro que tinha um decote bem chamativo e usava botas que iam até o joelho e de salto quase agulha. O facão que usava estava preso em uma faixa na coxa direita. Ela havia feito uma longa trança no cabelo e algo escuro – provavelmente rímel e lápis de olho – contornavam seus olhos. Parecia estar pronta para uma festa de dia das bruxas, mas não para uma missão.

Victor assobiou baixo. Assim como os outros Refugiados, ele parara de comer para observá-la.

–- Que roupa, Isabela. – disse em tom de brincadeira. – Zumbis não podem cair na sua sedução, mas se pudessem, você seria uma isca e tanto.

–- Obrigada pelo elogio, Victor. – Isabela sorriu para ele. Seu olhar agora era direcionado para Hans. – Vamos, então?

Hans a encarava meio incrédulo, mas assentiu. Não parecia estar encantado ou pronto para elogiá-la e fazer um comentário de sua roupa extremamente sexy, mas Isabela não pareceu notar. Quando Hans se despediu e contornou a mesa, ela praticamente pegara seu braço e o acompanhara enquanto saíam pela porta, os saltos da bota dela fazendo barulho ao andar.

–- Vamos, Flor de Cerejeira – chamou Felipe com um gesto. Levantei-me e Quirina veio comigo. – Ei, pequena, você não pode ir à missão. – ele se dirigiu à Quirina.

–- Não posso nem ao menos acompanhá-los até a SRG? – questionou.

–- A sala fica estritamente restrita aos componentes. Infelizmente não pode. – Felipe não parecia lamentar isso.

Quirina revirou os olhos.

–- Fala sério. Então vou com vocês até a porta.

Os Refugiados a mesa murmuraram “Boa sorte” para mim e Felipe enquanto nos encaminhávamos para a porta. Peguei o machado e saí da mesa. Quirina permaneceu ao meu lado até atravessarmos o portal. Quando Felipe fechou a porta atrás de nós, ela me abraçou pela cintura e pousei meu rosto em seus cabelos louros.

–- Não vou dizer “boa sorte” porque parece algo como se você dependesse dela. – ela disse. – Volte logo, Luna, e mate muitos zumbis por mim.

Dei uma risada.

–- Pode deixar, Quirina. Voltarei antes que imagina.

Ela se separou de mim e então voltou para o refeitório. Felipe pegara meu braço e disse:

–- Vamos logo.

Concordei, e então caminhamos por entre os labirintos de corredores, rumo à SRG.

–- Ah, que bom que chegaram – disse Rebeca quando Felipe e eu entrávamos na sala. Um notebook estava aberto a sua frente. – Tenho algumas informações para lhes ajudar nas buscas.

Hans estava do lado dela e Isabela estava recostada a uma mesa que continha quatro mochilas, não muito longe dos outros dois. Seu olhar não parecia desprender de Hans e aquilo sinceramente me irritou por um momento, mas resolvi ignorar.

–- Mandei hoje de manhã cedo alguns drones vasculharem o trajeto pelo qual percorrerão e não obtive nenhum dado surpresa. – Rebeca digitou alguma coisa no notebook. – Venham aqui.

Aproximamos-nos da mesa dela e me espremi entre Hans e Felipe para observar o que havia na tela. Imagens feitas de uma altura considerável percorriam ruas e avenidas do nosso trajeto. Era possível ver zumbis cambalearem aqui e ali, mas era realmente algo que não surpreenderia. Carros capotados e amontoados, alguns pequenos focos de incêndio. Por um momento, pensei ter visto um vulto enorme vindo de uma das ruas, mas desapareceu quando encarei melhor a imagem. Fora isso, nada parecia estar alterado.

–- Estamos aqui – Rebeca fechou a guia do vídeo gravado pelos drones e abriu uma com um mapa digital. – Quintino, Clarimundo de Melo. Vocês vão percorrer este trajeto: Campinho, Praça Seca, Tanque, Pechincha – ela traçou o caminho com o dedo e parou em um pequeno ponto marcado. – e vão vir para esta rua na Freguesia que possui estabelecimentos que contém o que precisamos. Entendido?

–- É um longo trajeto – comentou Hans.

–- Eu sei, mas são os únicos estabelecimentos que creio que possuam ainda alguns dos mantimentos que precisamos.

–- Podemos nos dividir em equipes, assim poderíamos ser mais rápidos. – sugeriu Felipe.

–- Pensei nisso também, Felipe. – Rebeca fechou o notebook com um clique. -- Hans e Luna possuem as listas do que tem que ser obtido...

–- Nesse caso, faremos duas duplas. – Isabela interrompeu. – Eu e Hans, Felipe e... essa daí. – ela me indicou com um gesto de desprezo.

Rebeca me lançou um olhar do tipo “não disse?”, mas ficou quieta. Eu ia questionar a decisão de Isabela, mas me lembrei das palavras de Rebeca de ontem à noite. Felipe pode ser muito orgulhoso às vezes, e Isabela é muito cabeça dura. Às vezes não trazem tudo que lhes peço nas listas. Suspirei pesadamente, e apenas concordei.

–- Todos de acordo com esta decisão? – perguntou Rebeca e todos assentiram. – Ótimo. Agora, Luna e Felipe, vocês vão precisar de alguma arma específica?

–- Meu machado já é suficiente – respondi.

–- Acho que pegarei algumas pistolas – comentou Felipe, indicando um baú no fundo da sala.

–- Tudo bem. Sabe onde estão os pentes, não, Felipe? – perguntou Rebeca e ele assentiu, já se encaminhando para o baú. – Isabela e Hans?

–- Usarei só o facão mesmo – Isabela retirou-o da faixa da perna e ficou segurando nas mãos. – Não gosto de armas de fogo. Chamam muita atenção deles. --- ela franziu o rosto.

Rebeca deu de ombros.

–- Hans?

–- Usarei só o fuzil metralhadora que trouxe comigo. – disse ele.

–- Certo. Peguem as mochilas. Nelas contem algumas coisas de que vão precisar. Tomem cuidado, todos vocês. Ainda que não tenha captado nada estranho pelas imagens, fiquem sempre atentos.

–- Ok, já entendemos, Rebeca – Isabela estava impaciente. – Quanto mais tempo ficarmos aqui, mais iremos demorar a chegar, não é?

Rebeca lançou um olhar de desgosto por um momento para Isabela, que nem pareceu notar enquanto ia para a porta.

–- Vamos encontrar Jorge lá fora. – disse ela por fim. -- Ele cuidou dos carros para vocês.

Minutos depois, nós cinco estávamos subindo as escadas que davam acesso à porta principal. Rebeca ia à frente, seguira por Hans, eu, Felipe e Isabela. Senti o braço de Felipe tocar o meu algumas vezes, mas não me permiti olhar para trás. Estava um pouco nervosa por conta do que poderia nos aguardar quando cruzássemos as portas de entrada do Refúgio. Dali em diante, era por nossa conta em risco.

Rebeca fez o gesto de abrir a porta principal e escutei o familiar ruído de engrenagens mecânicas. Enquanto esta se abria, me lembrei do primeiro dia em que eu, Hans e Quirina havíamos chegado ali. Parecia ter sido há muito tempo, mais do que apenas cinco semanas.

Ergui meus olhos. O céu estava em um tom estranho, algo entre o nublado e alaranjado dos raios de um sol que tentava transpassar as grossas camadas de nuvens. Era bom sentir o vento, ainda que cálido, tocar meu rosto. Não sabia que sentira tanta falta de estar do lado de fora, mas junto às correntes de ar, o cheiro de podridão vinha junto.

Caminhamos até os dois carros que estavam na frente dos portões. Um homem grande e adulto, de cabelos curtos e pretos nos aguardava recostado à picape. Suas roupas estavam manchadas de graxa e algo que me lembrava sangue seco.

–- Bom dia – saudou ele quando nos aproximamos. Todos responderam em uníssono.

–- Muitos reparos para fazer desta vez, Jorge? – perguntou Rebeca.

–- Até que dessa vez não. Troquei os pneus que estavam quase carecas por outros que vão ajudar vocês caso tenham que passar por trajetos escorregadios. Os tanques estão cheios, os motores estão em bom estado.

–- Ainda bem, porque será um longo percurso – informou Hans.

–- Imaginei que sim. – Jorge inclinou a cabeça para o lado ao ver as roupas extravagantes de Isabela. – Garota, onde pensa que está indo?

–- Eu? – Isabela se surpreendeu com a pergunta, mas foi algo momentâneo. Deu um sorriso largo. – Vou a uma missão, ué.

–- Com essas roupas?

–- Qual é o problema? Não posso matar zumbis e estar bonita ao mesmo tempo?

Jorge balançou a cabeça e murmurou algo em desagrado, algo que soou como não tem noção das coisas.

–- Boa missão para vocês, e tomem cuidado por aí. – disse ele antes de dar as costas para nós e atravessar as portas do Refúgio.

Felipe me puxou pela mão até a picape enquanto Hans e Isabela seguiam para um Jeep. Escutei a voz melosa de Isabela para Hans enquanto tirava a mochila e lançava dentro da cabine:

–- Você sabe dirigir, né? – e, supondo que ele assentira, pois não escutei som algum de resposta, ela disse alguma coisa com satisfação na voz, algo que não consegui entender.

–- Pessoalmente, acho a picape melhor que o Jeep – Felipe disse, me encarando de dentro da cabine. Ele havia percebido minha rápida olhadela para o carro do lado.

–- Não me preocupo com isso – respondi, entrando no carro. Fechei a porta e Felipe deu a partida. – Não deveríamos esperá-los?

–- Não se preocupe, docinho, vão nos acompanhar. – assegurou ele enquanto começava a manobrar o carro. Em alguns minutos, estávamos já na rua, nos distanciando do Refúgio aos poucos, até que, numa curva, ele desaparecera do reflexo do espelho retrovisor.

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Felipe dirigia bem, eu tinha que admitir. Pouco tempo depois, estávamos já em Campinho, levando em consideração de que havíamos desviado de alguns zumbis que vagavam pelo asfalto e de outros obstáculos como carros capotados e postes caídos.

Por distração, peguei a mochila que estava no tapete do carro aos meus pés e a abri, vasculhando seu conteúdo. Havia uma garrafa de água, bússola, mapa, cordas, um isqueiro que me parecia familiar, uma pequena caixa branca que continha um kit de primeiros socorros, um walkie-talk e uma... arma? Peguei a pequena pistola e a reconheci. Era a Smith & Wesson M37 que Hans havia me dado para atirar nos pneus do carro de Redlin e Marcos. Mas o que ela estava fazendo aqui em minha mochila?

O carro deu um solavanco e quase derrubei a mochila. Felipe estava reduzindo a velocidade até que paramos. Olhei para meu redor. Estávamos dentro do mergulhão em Campinho e, à nossa frente, milhares de zumbis cambaleavam em nossa direção.

–- Devíamos retornar e ir por cima do mergulhão – sugeri para Felipe.

–- Boa ideia. – concordou ele, mas quando começou a dar marcha ré, ele parou. Mais zumbis começavam a surgir da entrada do mergulhão, surgindo mais e mais a cada instante.

Estávamos encurralados.

–- Droga! De onde tantos surgiram? – questionou Felipe. – Estavam nos seguindo? Rebeca disse que eles não estavam por aqui.

–- Não, acho que zumbis não tem senso de direção muito bom. – falei. – E Rebeca mostrou nas imagens que havia alguns, não tantos assim, o que torna tudo muito estranho. Em todo caso, não podemos ficar parados aqui. Temos que fazer algo.

–- Sair e matá-los? – perguntou ironicamente.

–- Isso que eu ia dizer.

–- Flor de Cerejeira, – Felipe se inclinou em minha direção. – eu sei que você sabe lutar bem e tudo mais, já vi isso, mas são muitos zumbis para nós dois.

Encarei-o seriamente.

–- A habilidade pode subestimar os números. – falei em tom firme. -- Está com sua arma aí?

Ele olhou para a caçamba da picape e depois seus olhos voltaram para mim.

–- Escolha qual dos dois grupos vai liquidar. – ele disse com um meio sorriso nos lábios.

Voltei meu olhar para a cena vista pelo para-brisa. A distância entre nós e os zumbis diminuía a cada segundo que perdíamos conversando dentro do carro.

–- Fico com os da frente.

–- Ótimo. – Felipe tocou em minha mão por um instante e retirou rapidamente. – Nos vemos já, já, minha lutadora.

Estranhei o modo de como Felipe dissera “minha lutadora”. O minha soou como se eu fosse uma espécie de posse extrema dele. Resolvi deixar isso pra lá enquanto carregava o machado na mão direita e batia a porta do carro ao sair.

Fora do veículo, era possível escutar os grunhidos que os zumbis emitiam, ruídos como uma multidão de pessoas roucas. Uma lufada de vento jogou contra mim o cheiro fétido dos corpos em decomposição, e por estar a um tempo sem sentir aquele cheiro, senti uma leve náusea, mas tentei ignora o máximo que pude. O peso do machado, já tão familiar em minhas mãos, era algo tão fácil de lidar quanto uma caneta.

Não esperei Felipe dizer nada. Comecei a correr na direção dos corpos cambaleantes e desferi um golpe na altura do pescoço dos três primeiros à frente antes que pudessem fazer qualquer coisa. Jorros de sangue choveram ao meu redor e em meu rosto, mas nem me importei. Não prestava atenção em mais nada, nem em Felipe, que provavelmente acertava com as flechas os seus alvos de maneira silenciosa.

Cinco zumbis me cercaram, quase me tocando. Cortei os braços de alguns e me agachei, girando com o machado em direção aos tórax deles. Em segundos, cinco zumbis divididos caíram como sacos de areia no chão, espalhando mais sangue e gordura. Passei a parte interna da minha jaqueta no rosto a fim de me livrar do excesso de sangue. Soltei um suspiro pesado e corri, desferindo mais golpes nas pernas, braços ou pescoços dos mortos-vivos. Adrenalina invadia meu corpo por inteiro enquanto executava o serviço. Estava de volta a minha rotina de matar aqueles que tornaram meu estado em um caos.

Estranhei não ter visto ou escutado o carro de Hans e Isabela passar por nós. Será que eles também estariam lutando contra alguns em algum ponto atrás de nós? Não fazia sentido, uma vez que não tínhamos encontrado nenhum no trajeto até aquele momento. Talvez Felipe soubesse de alguma coisa, ou talvez eles tivessem tomado outro trajeto.

Decepei o último zumbi e este caiu no chão de joelhos antes de desabar. Olhei para meu redor. Cadáveres estirados no chão tomavam conta do mergulhão agora, como se fosse um mar de zumbis. Caminhei de volta para o carro, passando por cima dos zumbis e tentando não escorregar no chão gosmento de gordura e sangue. Quando me aproximei do Jeep, vi Felipe me aguardando, recostado à caçamba do carro e me olhando com aprovação. Na mão esquerda, segurava sua crossbow.

–- Foi lindo de ver, sabia? – comentou ele quando me aproximei.

–- O quê? Os zumbis? – perguntei sarcasticamente.

Ele deu uma risada curta.

–- Você lutando contra eles. Parecia uma espécie de “bailarina da morte” enquanto desferia aqueles golpes com o machado. Muito interessante de se assistir.

Olhei para Felipe e achei que estivesse zombando de mim, mas vi uma seriedade quase que faminta em seus olhos verdes.

–- Obrigada. – agradeci educadamente.

Ele se desencostou da picape e estendeu o braço, pegando minha mão esquerda e levando até os lábios, como fizera na primeira vez em que havíamos nos conhecido.

–- Não precisa agradecer.

Puxei minha mão lentamente da dele e fiquei de costas para Felipe, voltando minha atenção para o mar de cadáveres que eu executara e que agora impediriam nossa passagem de carro.

–- Acho que teremos de arrastá-los para os cantos de quisermos avançar com o carro. – falei ainda olhando para frente.

Senti uma respiração quente perto de meu ouvido e em seguida escutei a voz de Felipe como um sussurro:

–- Alguma ideia em mente?

Afastei-me dando um passo para frente e o encarei.

–- Vamos ter que arrastá-los, não? É o único jeito.

Ele inclinou a cabeça para o lado por um momento e contornou a picape pela frente. Abriu a porta do motorista e me chamou:

–- A menos que queira ver um invento do pai de Rebeca que esse carro possui, acho melhor você entrar.

Abri a porta do carro e me sentei quase que imediatamente. Assim que fechei a porta, Felipe acionou um botão vermelho do painel. De início, nada aconteceu, porém segundos depois, o carro deu uma sacudidela e apoiei minhas mãos no porta-luvas. Um som de algo com engrenagens e mecânico me surpreendeu por um momento enquanto a cabine da picape se erguia lentamente até certo ponto e depois desceu subitamente. De onde estava não via nada de diferente no carro e então resolvi sair e verificar o que acontecera.

Meu queixo quase caiu. Na frente do carro, logo abaixo dos para-lamas, uma pá grande como a de uma retroescavadeira se encontrava estendida. Como aquilo poderia caber dentro de uma picape? Felipe acionou um botão verde do painel e começou a dirigir lentamente. Eu observava, abismada, o serviço que a pá fazia: pegava corpos, os sustentando por alguns segundos e os colocava para os lados do asfalto, nos abrindo passagem para poder avançar. O pai de Rebeca merecia algum prêmio por ser tão genial.

–-- Isso é... perfeito. – comentei.

–- É, -- concordou Felipe. – o cara sabia mesmo como resolver as situações.

Ele ligou o motor e andamos lentamente, a pá afastando os corpos para o lado pelas manobras que Felipe fazia. Em pouco tempo, estávamos novamente dirigindo pelo asfalto em direção ao nosso destino.

Como eu não tinha nenhum assunto para conversar com Felipe, resolvi ficar encarando a vista de fora do carro. Imaginar que um dia, por aquelas ruas vazias nas quais muitas pessoas vivas passavam, de crianças até idosos, parecia uma época muito antiga, mesmo que há cinco meses, esta era a realidade. Quando passávamos pelo Mato Alto, vi um grupo de zumbis circundar um corpo caído no chão, como urubus sobre um pedaço de carniça. A pessoa, que não dava para saber que era homem ou mulher, se debatia e seus gritos eram abafados pelos corpos sobre ela. Quando o carro passou, fechei os olhos, lamentando pelo o que vi.

Estávamos chegando perto do Center Shopping quando escutei um apito e uma voz abafada vindo de dentro da mochila. Abri-a imediatamente e peguei o walkie-talk. Apertei o botão e falei:

–- Hans?

–- Sim, Luna. Onde vocês estão? – ele respondeu.

–- Acabamos de passar pelo Center Shopping, Tanque.

–- Estão bem longe de nós então. Tivemos que parar na entrada da Taquara porque um poste caiu na pista de acesso à Pechincha e os cabos de energia tomaram conta do asfalto. Tivemos que entrar pela Taquara, mas chegaremos. Vocês enfrentaram dificuldades também?

–- Bem no começo do caminho, em no mergulhão de Campinho. Duas hordas de zumbis surgiram sabe-se lá de onde, mas conseguimos resolver o problema.

Felipe olhou para mim por um segundo e depois apontou para o céu. Coloquei a cabeça para fora da janela e vi nuvens cinza tomarem conta do céu aos poucos. Um vento morno passou por meu rosto.

–- Parece que vai chover – falei para Hans pelo aparelho.

–- Sim. Vou desligar porque tenho que prestar atenção nas pistas. Se o tempo escurecer mais vai ficar difícil. Até mais.

–- Até. – escutei o bip do outro lado e fiz o mesmo.

Olhei para um mercado um pouco a frente de onde estávamos passando e fiz sinal para Felipe perceber.

–- Acha que este ainda tem algo nas prateleiras? – perguntei.

Ele deu de ombros.

–- Talvez sim, talvez não. É pouco provável, uma vez que há alguns grupos além de nós que também estão em busca de comida e outros mantimentos. Se Rebeca falou aquele mercado específico para irmos, é porque ela deve saber que lá é nossa chance mais provável de encontrar.

Assenti e apoiei meu cotovelo na janela. Inclinei a cabeça e fiquei encarando os prédios e lojas ficando para trás enquanto avançávamos. O céu parecia escurecer gradativamente e logo um pingo caía aqui e ali no para-brisa. Primeiro em formas de riscos, depois as gotas ficaram mais grossas e Felipe ligou o limpador. Fechei o vidro da janela quando senti algumas gotas caírem em meu rosto e colo. A chuva estava se tornando mais intensa quando chegamos finalmente a Freguesia. Felipe contornou alguns carros que estavam batidos e no meio da pista – dentro de alguns havia zumbis que tentavam sair das ferragens. Ele estacionou na frente de um mercado de fachada laranja e branca e desligou o motor. A chuva continuava intensa.

–- É o seguinte: vamos pegar o que for realmente necessário e sairemos aqui – ele disse se virando para mim.

–- Vamos pegar todos os itens da lista, Felipe. Se Rebeca pediu que levássemos, então o faremos.

Felipe riu e tocou meu rosto.

–- Você é tão certinha, Luna. Chega a ser algo atraente em você.

Revirei os olhos e saí do carro colocando a mochila sobre o ombro. Fui em direção aos portões de ferro que circundavam o mercado e consegui passar por uma abertura que havia entre eles. Escutei a porta do Jeep bater e os passos de Felipe na calçada molhada. Corri para baixo da sacada e o esperei. As portas de vidro do mercado estavam abertas e as luzes dentro dele, acesas. Estava tudo desordenado, como se um furacão houvesse passado por ali. Felipe surgiu ao meu lado, os cabelos louros meio arrepiados e outros grudados no couro cabeludo.

Entrando no local, peguei a lista do que era necessário. Os itens eram meio quilo de arroz, dois de farinha, quatro pacotes de feijão, macarrão e depois alguns mantimentos de higiene. Perguntei-me se seriam os mesmo itens na lista de Hans e Isabela, mas provavelmente não. Voltei para Felipe e disse:

–- Para agilizar o serviço, vamos nos separar. – dobrei a lista e depois a rasguei. Entreguei uma das metades a ele. – Você fica com os alimentos e eu fico com os produtos de higiene.

Felipe ergueu uma sombracelha e encarou a lista. Depois que seus olhos percorreram os itens, ele os voltou para mim.

–- Não são muitas coisas? Vai ser difícil levar para o Jeep.

–- Felipe, precisamos levar tudo o que está na lista. É para nós e para os outros, você sabe disso.

Ele sorriu e fez uma reverência fingida.

–- Como quiser, madame.

–- Nos vemos em vinte minutos, ok?

Esse assentiu e dei as costas, correndo em direção ao outro corredor. Meus passos ecoavam na imensidão do silêncio e mantive meus olhos em constante alerta enquanto passava por corredores.

Cheguei à seção de produtos de higiene e comecei a pegar todos os itens na lista e colocando-os dentro de uma bolsa grande de lona que havia encontrado dentro da mochila. Alguns estavam em falta, outros estavam bem atrás das prateleiras, como se alguém tivesse escondido. Eu fazia uma verdadeira limpa naquele local e em poucos minutos a bolsa ficara cheia até a borda. Com dificuldade, puxei o laço e a fechei. Estava me virando em direção ao caminho que havia vindo quando vi alguns zumbis vindos da parte de hortifruti do mercado. A bolsa estava meio pesada, por isso resolvi arrastá-la no chão. Tentei passar pelos zumbis sem chamar-lhes a atenção. Esgueirei-me contra uma prateleira que continha poucas unidades de vidros de azeite e um dos zumbis continuou avançando, sem perceber minha presença. Mantenho a respiração presa até o momento em que consigo passar e ando rápido na direção de onde Felipe deve estar; correr faria com que meus passos se tornassem audíveis.

Quando chego ao corredor, escuto grunhidos mais altos e Felipe está atingindo os zumbis com a crossbow. De onde surgiram tantos? Ignoro a precaução de antes e corro até ele. Ao me aproximar, sua flecha atinge o último zumbi, que cai como um pedregulho no chão.

–- Pegou tudo da lista? – pergunto e o surpreendo com minha presença. Ele assente e volta a observar os corpos no chão.

–- Parecem estar nos seguindo. – comenta.

–- Não creio que estejam. O mais estranho seria entrar em um lugar que não houvesse algum deles, não acha?

Felipe dá um sorriso e olha para a bolsa que arrastei até aqui.

–- Parece que pegou tudo também.

–- Melhor voltarmos ao carro, logo. – atrás de mim, sons roucos dos zumbis sinalizam sua aproximação.

Felipe concorda e juntos começamos a correr em direção à porta, carregando nossas sacolas de lona nas costas.

Deixamos as sacolas no banco de trás do carro. Estava chuviscando quando saímos do mercado, mas então voltou a chover forte. Olhei para o asfalto molhado e vi a água escorrendo até alguns ralos. Felipe estava pronto para ligar o motor quando falei:

–- Acho melhor não irmos agora.

–- Por que não?

–- O asfalto está muito molhado, não é bom dirigirmos com essa chuva.

–- Então o que sugere? Esperar no carro até ela passar?

Olhei para o lado de fora da janela e vi uma pequena loja de roupas com a porta de ferro na metade. Quando voltei a olhar para o supermercado, corpos cambaleantes começavam a vir na direção do carro.

–- Não, no carro não. É melhor sairmos daqui ou seremos encurralados pelos zumbis. – apontei para os que vinham.

Felipe encarou por um segundo, considerando a ideia, mas assentiu. Fechamos os vidros do carro e saímos. Fui em direção à loja e chamei Felipe para me seguir. Meus coturnos afundavam em poças até chegarmos lá. Ergui a porta de ferro com cuidado e entrei. A loja estava intacta, sem nenhuma das araras de roupas fora do lugar, ou os pufes arrumados no canto.

Felipe baixou a porta, mas não a fechou, deixando um pouco de espaço entre ela e o chão. Lá fora, ainda era possível escutar a chuva cair, tornando-se mais forte a cada minuto. Queria que ela cessasse o mais rápido possível e retornar ao Refúgio. Escutei meu estômago roncar de forma discreta e esperava que Felipe não tivesse escutado.

Andei até um pequeno pufe rosa berrante da loja e me sentei. Tirei a mochila e a jaqueta e a sacudi, respingando o chão, e a coloquei ao lado do pufe. Passei as mãos pelo meu cabelo ensopado e desprendi os fios que colavam na pele do meu pescoço, despreocupadamente. Pensei se Hans e Isabela estariam tendo sucesso com a missão deles, mas pensar nos dois juntos me dava ânsia. Quando voltei meu olhar para frente, vi que Felipe me encarava com um estranho brilho nos olhos, recostado à parede.

–- Está tudo bem, Felipe? -- perguntei.

Ele largou a crossbow de lado e a mochila no outro com um ruído surdo. Ao longe, escutei uma trovoada.

–- Finalmente estamos nós, sozinhos... -- conforme ele dizia, dava um passo em minha direção. A fraca luz de emergência do estabelecimento, seus cabelos louros molhados e bagunçados brilhavam fantasmagoricamente.

–- Isso é bem perceptível -- falei me erguendo do pufe lentamente e recuando. A expressão de seu rosto mudava, parecendo algo quase psicótico. Parecia que sua gentileza havia se esvaído como fumaça.

Felipe deu uma risada curta.

–- Você entendeu o que eu quis dizer, docinho.

–- Entendi o quê?

Numa velocidade absurda, Felipe me empurrou para a parede. Não foi de forma bruta, mas me assustei com sua reação repentina. Suas mãos deslizaram pelos meus braços nus e pararam nos pulsos, me segurando firmemente logo em seguida.

–- O que pensa que está fazendo? -- perguntei, numa voz mista entre confusão e raiva.

–- Eu quem deveria fazer esta pergunta desde quando te conheci. Por que não flertou comigo ainda como todas as outras? -- a voz de Felipe não era mais gentil. Estava de certa forma raivosa e perigosa.

–- Por que eu não o quê? Está maluco, Felipe? Solte-me, pare de ser idiota.

–- Você entendeu muito bem. Sabe como é estranho para um cara que é atraente para todas as meninas, mas existe uma que não está nem aí para ele ao que parece?

–- Não, não sei. Não sou um garoto.

–- Não banque a engraçadinha comigo. Todas as meninas lutavam pela minha atenção, faziam loucuras por mim, e por que você tem que ser de outro jeito? -- sua voz agora se acalmava e assumia um tom mais sedutor. – Você me encantou desde quando ouvi sua voz e tentei de todos os modos lhe chamar a atenção e você não pareceu notar. Mas não precisa retrair seu desejo por mim, Luna.

–- Que desejo, Felipe? -- perguntei incrédula. -- Nunca te desejei, nunca gostei de você como nada além de um amigo.

A expressão dele se fechou por um instante e os olhos ficaram sombrios. Se pudesse atravessar a parede para fugir dele, eu o faria. Meus pulsos começavam a doer pelo aperto de suas mãos.

–- Felipe, por favor, deixe isso...

–- Pra lá? Não, não posso. Principalmente porque tenho minha chance agora...

Ele inclinou o rosto na minha direção e virei o meu instintivamente. Felipe me mantinha presa e, ainda que eu tentasse mover meus braços, ele parecia ignorar meus esforços. Seu rosto enterrou em meu pescoço e senti a respiração quente dele contra minha pele. Tentei encolher o ombro contra o rosto dele e Felipe se afastou. Se estivesse com os braços libertos, não teria deixado que se aproximasse tanto de mim.

–- Hum... você resiste, né? Vamos ver até quando. Por que você tinha que ser diferente de todas, Luna? Mas até que eu gostei, sabe. Tornou tudo mais interessante.

–- Me solte agora, Felipe, -- ordenei de forma ameaçadora -- ou irá se arrepender muito de estar fazendo isso.

Ele deu um sorriso torto na tentativa de me deixar levar por ele.

–- Acho que valerá a pena.

Felipe parou um instante e ficou me encarando, como se avaliasse suas opções para comigo. Lancei meu olhar mais mortal a ele a fim de intimidá-lo, mas ele parecia gostar ainda mais de me ver assim. Então suas mãos se soltaram de meus pulsos de súbito e me surpreendi com sua ação. Será que havia deixado de ser idiota e me deixaria em paz?

Esfreguei minhas mãos nos pulsos, aliviando um pouco a dor. O aperto de Felipe havia sido forte o suficiente para deixá-los vermelhos no local. Estava tão ocupada em amenizar um pouco a dor que não havia percebido Felipe colocar um dos braços em torno de minha cintura e me puxar para si. Sua outra mão se apoiava em minha nuca, me forçando a ficar frente a frente a ele. Não era necessário adivinhar os que ele faria em seguida.

–- Felipe, não... -- mas minha voz foi calada pelos lábios dele.

Era estranho e ao mesmo tempo repulsivo ser beijada por Felipe. Ele pressionava tanto seus lábios nos meus que chegava a doer. A mão deslocou da nuca para meu rosto e senti ele me empurrar contra a parede. O braço que antes circundava minha cintura deslocou para um pouco acima, por dentro de minha blusa, e senti a mão dele percorrer um pouco da pele das minhas costas. Retraí-me demonstrando desconforto, mas ele não parecia perceber. Talvez ele fosse do tipo que funcionava com a psicologia inversa, e resolvi tentar.

Relaxei um pouco o corpo e permiti mover meus lábios em favor dos seus. Funcionara. Felipe afrouxava um pouco o aperto de suas mãos no meu rosto e na cintura. Agora que me sentia com os braços mais livres - e dormentes - retesei meu corpo, mantendo pouca distancia dele e então ergui meu joelho, atingindo em cheio as partes íntimas de Felipe. Seus dentes rasgaram parte do meu lábio inferior e ele se afastou de mim, se debruçando de dor.

–- Filha da...

–- Isso -- interrompi-o. -- foi pela atitude. E isto -- dei um soco na sua cara, tão forte que o derrubara. -- é por ser uma criatura digna de pena por ser tão ridículo. Pense se valeu mesmo a pena fazer isso comigo.

Deixei-o se contorcendo no chão e peguei a mochila e meu machado quando ia em direção à porta. O gosto de sangue começava a encher minha boca pelo corte que ele fizera. Lancei o machado e a mochila pela abertura, me agachando logo em seguida e passando pela abertura. Quando olhei para o céu, vi que as nuvens cinzentas agora eram poucas e ele tinha aparência leitosa. A chuva, felizmente, cessara. Joguei a mochila por cima do ombro e com o machado na outra mão, e me afastei do estabelecimento sem olhar para trás.

Não sabia em que direção estava indo, mas segui em frente. Estava com tanta raiva da ousadia de Felipe que não havia me satisfeito em ter lhe dado apenas um chute e um soco. Ele merecia coisas bem piores. Era um dos humanos mais desprezíveis que eu tivera a infelicidade de ter conhecido, só perdia para Redlin e Marcos. Mas não havia sido apenas por ele ter me beijado que me havia deixado com raiva, e sim pelo fato dele ter mentido para mim por tanto tempo desde que o conhecera. Ele não queria minha amizade, pelo menos não ela. Fingira esse tempo todo para tentar ganhar pontos comigo, mas ele havia, no final, perdido todos os que haviam conseguido e não queria encontrá-lo novamente tão cedo.

Infelizmente, não havia nenhum zumbi nas ruas para que eu pudesse descontar minha raiva. Na verdade, não parecia haver movimento algum onde eu passava. Nem mesmo o vento corria por aqui, mantendo até folhas de árvores, papeis, lonas, tudo imóvel. Olhando para minha direita, um enorme prédio de um supermercado se erguia imponente, a fachada nas cores verde e azul. Os carrinhos do estabelecimento se encontravam todos no lugar. Estranhamente, os portões não estavam fechados, mas havia alguns pedaços de ferro bloqueando a passagem. Encarei por um momento a abertura onde antes deveria haver alguma porta, mas estavam totalmente abertas agora. As luzes dentro do prédio estavam parcialmente acesas pelo o que eu podia notar. Recomecei a andar quando escutei um estrondo vindo de dentro do mercado, seguido por gritos e rugidos guturais. Aquilo me intrigou, mas resolvi continuar meu caminho.

Por um momento, quando eu encarava de esguelha as portas do supermercado enquanto me afastava, vi uma forma humana passar correndo pela porta, seguida por coisa, algo enorme e veloz. Aquela cena toda demorou poucos segundos, mas foram os segundos necessários para me fazer mudar de ideia e resolver entrar. Ao me lembrar do primeiro vulto, apenas um nome me veio em mente. Mark. Talvez fosse uma ideia totalmente ilógica, mas o fato era que eu não fazia ideia de onde ele estava, e quem sabe ele não estaria ali, correndo perigo?

Prendi o machado na minha perna e coloquei as alças da mochila sobre os dois ombros. Apoiei um dos pés em uma parte da grade e comecei a escalar o portão, procurando sempre prestar atenção. Quando cheguei ao topo, tomei cuidado de passar por cima das pontas afiadas das grades e saltei para o chão. Consegui pousar de pé, os joelhos se retesando um pouco. Virei meu corpo na direção da entrada e vi enormes cacos de vidro reunidos no chão. Tomei cuidado ao passar por eles e escutei alguns se quebrarem sob meus pés.

Assim que entrei no supermercado, observei, horrorizada, o aspecto do local. Produtos revirados, marcas de sangue no chão, os caixas com computadores quebrados e algumas esteiras reviradas. Perguntei-me quem teria força suficiente para revirar uma esteira de passagem de alimentos, e a ideia de que pudesse ser a criatura que eu vira passar, me fez sentir um frio na espinha. Ainda assim, continuei a caminhar indo pela parte principal que dava acesso a sessão de cosméticos e virei para a direita, passando com cuidado por sobre os objetos espalhados pelo chão.

Então eu o vi.

Mesmo com a precariedade das luzes de emergências, eu conseguia ter uma visão da silhueta da criatura. Era três vezes maior que um Retalhador ao que parecia. Sua pele parecia ter sido repuxada ao máximo e tinha, por debaixo da pele translúcida, a aparência pétrea. Espinhos do tamanho de minha mochila projetavam de suas costas, pernas e braços. A fraca luz dava para perceber que eram tão afiados quanto navalhas. Em seu tórax, um enorme X cortava sua pele, o músculo da região se contraindo bruscamente quando inspirava. O rosto era igualmente assustador. A boca parecia ter sido cortada nos lados para que todos os dentes que se assemelhava a de tubarões (com a diferença de que os dele eram três vezes maiores) pudessem caber. No lugar dos olhos era possível ver apenas dois brilhos escarlates. Veias cortavam caminho por sua cabeça sem cabelos, como se fossem correntes dentro da pele.

A horrorosa face encarava uma figura caída a poucos metros. Era uma forma humana, de um homem. Estava deitado no chão em posição fetal e se encontrava tão imóvel que, por um momento, pensei que estivesse morto. Ele se movia lentamente, estendendo cada braço como se fosse a ação mais dolorosa de se fazer. Queria ir até ele e ajudá-lo, mas naquele instante, o monstro voltou toda a sua atenção para ele, girando o corpo em um movimento ágil para aquele corpo todo e foi na direção de uma prateleira que ocupava toda a seção. Escutei o som do metal sendo retorcido pelas grandes mãos enquanto a prateleira era erguida acima de sua cabeça. Ele grunhia e urrava sons tão medonhos e roucos que fizeram os pelos de minha nuca eriçarem. Perto dele, os Retalhadores eram criaturas bem simpáticas.

Com toda a fúria que sentia, o monstro começava a inclinar seus braços para frente quando resolvi intervir pelo humano que ainda estava encolhido no chão.

–- Ei! Monstrengo feioso! - gritei e a cabeça do monstro se virou lentamente na minha direção. Seu olhar parecia de alguém surpreso. Eu sabia que era uma ideia idiota chamá-lo, mas eu não deixaria ele destroçar aquele rapaz sendo que eu podia fazer algo.

Se a criatura entender ou não, eu não sabia, mas aos poucos, a raiva retomou no rosto antes marcado pela confusão de minha presença. Os lábios deixaram aparecer um sorriso cruel e ameaçador. Os olhos se transformaram em duas linhas finas quando semicerrados e vi seu corpo avançar um passo na minha direção, a estante ainda em suas mãos. O metal continuava retorcido por entre seus dedos.

Tudo acontecera rápido. Uma enorme sombra veio na minha direção e em seguida escutei os sons guturais do monstro. Lancei-me para a direita, onde havia menos cacos de vidro e vi a tempo da prateleira atingir a parede exatamente onde eu estava há poucos segundos e desabar no chão de forma estrondosa. Apoiei em meus braços para me levantar, no mesmo momento em que senti o chão tremer sob mim, como um terremoto de pouca magnitude. Os cacos de vidro tintilaram ao meu redor. Voltei meu rosto para frente e vi dois pés enormes e com espinhos nos tornozelos se movendo em minha direção.

Não pensei duas vezes. Levantei-me subitamente me apoiando no machado e comecei a correr aos tropeços, indo na direção oposta. Não fazia ideia para onde estava indo, eu só queria fugir da rota do monstro. Enquanto corria pulando alguns obstáculos de produtos, mesas e cadeiras espalhados, escutava ao longe rugidos guturais da criatura, que eram o único som que me importava agora. Percebi que nem me dera o trabalho de notar se o rapaz havia conseguido escapar, mas agora mesmo que eu não tinha tempo para me preocupar com ele. Se não conseguisse matar logo aquele monstro - que aquela altura eu já não acreditava mais ser um zumbi -, teríamos tempo suficiente para conversarmos no além.

Virei a curva em alguns corredores que estavam parcialmente iluminados pelas poucas lâmpadas de emergência que funcionavam. Sob meus pés, sentia o chão reverberar com os passos pesados da criatura. Meu coração batia quase saindo por minha garganta e a cada curva que fazia e não o encontrava, era um alívio.

Mas isso duraria pouco tempo.

Eu já ofegava muito quando cheguei à parte de bebidas do supermercado. Minhas pernas já estavam bambeando e comecei a reduzir o passo. A mochila parecia ter agora uns dez quilos ou mais e senti o cabo do machado escorregar lentamente de minha mão. Acabei parando perto de alguns sacos de ração para cachorros que estavam empilhados próximo da seção de bebidas. Recostei-me e escorreguei, sentando-me no chão num baque surdo. Sentia minha cabeça girar e meus músculos imploravam por descanso. Pousei o machado no chão ao meu lado. Não havia som nenhum agora, nem mesmo tremores no chão. Apenas o silêncio. Aquilo me deixava mais apreensiva do que se estivesse sendo perseguida pelo monstro. Nem quando estivera no matagal enfrentando os Retalhadores junto com Quirina, me permiti sentir medo. Eles eram apenas criaturas que eram bem mais humanoides e "simpáticas" do que aquele monstro. Pensando agora, preferia lutar contra dez Retalhadores no lugar dessa criatura.

O som de minha respiração era áspera e sentia o sangue zumbir em meus ouvidos. Tentava me manter atenta a tudo, ainda que só pudesse depender mais de minha audição para escapar do monstro. Não queria mais lutar, queria apenas conseguir sair dali. Viva.

Somos uma equipe, dissera Hans, e me lembrar da voz dele me fez sentir melhor. Desejei tê-lo aqui comigo. Sozinha, talvez eu não tivesse chance alguma contra a criatura, mas nós dois juntos talvez conseguíssemos algo. A frase de Hans nao poderia se encaixar com Felipe e eu. Não achava que teríamos chance de sairmos vivos daqui mesmo que continuássemos juntos. Lembrei-me do momento em que Felipe me prendera a parede e me beijara, e sacudi a cabeça para afugentar a lembrança. Não queria nem imaginar o que poderia acontecer a ele da próxima vez que nos encontrássemos no Refúgio. Um chute e um soco não terão sido nada caso ele tente cometer a mesma atitude estúpida novamente.

Lentamente, peguei o machado e me ergui apoiando nas embalagens, no mesmo momento em que escutei passos vindos à minha direção. Passos bem próximos vindos de uma parte sem iluminação alguma ecoavam. Ergui o machado segurando-o com as duas mãos e comecei a caminhar na direção dos passos que escutara. Uma hora ou outra eu teria que enfrentar a criatura. Que fosse agora.

Mas os passos não eram pesados contra o chão, nem mesmo o faziam tremer como antes. Ainda assim, permaneci com o machado pronto para decepar o que quer que fosse quando uma silhueta alta e levemente inclinada para a direita apareceu sob um filete de luz que vinha do teto. Quando avançou mais alguns passos, por um momento, julguei que fosse um zumbi, mas quando o rosto se ergueu, vi ainda a vitalidade em seus olhos cinzentos. Era o rapaz que o monstro tentou matar. Ele estava bem pior do que eu imaginava. A calça jeans estava rasgada em várias partes na altura dos joelhos e coxas, como se tivesse sido cortada por garras de um animal de grande porte. Sangue cobria seu tórax e parte de sua testa e escorria por alguns ferimentos em seus braços. Uma tatuagem com letras e números estava estampada em seu peito. O que eles significavam? Seus passos eram imprecisos e ele parecia que poderia desabar a qualquer momento. O rosto estava baixo novamente enquanto cambaleava e voltou a se erguer quando parou a poucos metros de mim. Os olhos cinzentos me encaravam com algo que parecia ódio e medo.

–- Você... veio... me capturar? -- perguntou num sussurro rouco e quase inaudível.

–- Te capturar? Por que te capturaria? -- sussurrei de volta.

–- Por causa... -- tossiu e um jato de sangue lhe escapou da boca, respingando o chão.

–- Por causa? -- perguntei, mas ele não me respondeu. Seu rosto se ergueu e ele olhava para através de mim com os olhos extremamente arregalados.

Ele cambaleou de volta para onde havia vindo, sumindo pela escuridão e nem me dei o trabalho de me perguntar porquê. Senti um cheiro forte de podridão e enxofre, acompanhados de um hálito quente que atravessou minhas costas. Já sabia muito bem o que estava atrás. Se eu me virasse, seria atacada. Se corresse, ele poderia me perseguir até a morte. Dentre as duas opções, escolhi a mais "certa" a se fazer. Respirei fundo e corri a tempo de sentir o chão onde estivera há poucos segundos ser transformado em pedaços ao ser atingido por um golpe do monstro. Não tive mais nenhum sinal do rapaz enquanto corria e observava os corredores. Fiquei intrigada pela pergunta que ele me fizera, mas agora não era momento para adivinhar os motivos daquela pergunta.

Um rugido da criatura me tirou de meu devaneio. Estava muito próxima de mim, dava para sentir pelo calor de seu hálito e o odor dele. O chão novamente tremia sob meus pés, só que dessa vez com mais intensidade. Eu precisava encontrar uma saída e logo. Virei em um corredor que continha cosméticos nas prateleiras. Estendi o machado e comecei a jogar todos os frascos nos chão, alguns se quebrando com a queda. O ar foi tomado por cheiros de mais variados cremes e o chão ficou escorregadio. Esperava que, se a criatura escorregasse nos cremes e colidisse contra uma parede ou algo que pudesse retardá-lo, poderia me dar algum tempo extra para fugir daqui.

Parei de correr quando não senti mais o tremor dos passos no meu encalço. Olhei para trás e quase gritei. A criatura parecia ter alguma inteligência. Ele não caminhava mais na minha direção; ele se arrastava. Usava os espinhos de seus braços e pernas para fincá-los no chão escorregadio e assim avançava rapidamente até mim.

Isso só podia ser um pesadelo.

Estava tão preocupada em olhar para trás que nem percebi a direção na qual estava indo. Acabei me chocando contra uma grande pilha de embalagens que

continham leguminosas, caindo por cima delas. Quando olhei para trás novamente, apenas vi enormes punhos e músculos de braços sendo erguidos e rolei para o lado a tempo de evitar um golpe do monstro. Escutei sacos de grãos de feijão e lentilha se romperem e voarem, caindo como chuva sobre mim. Tentei me levantar rapidamente e minha cabeça latejou de forma intensa. Reprimi um grito de dor. Minha visão escureceu por um momento, me deixando parada diante do monstro, completamente vulnerável. Queria fugir em direção à saída que estava a poucos metros de onde eu estava, mas minhas pernas pareciam que iam desabar a qualquer instante. Sentia-me tonta...

E então senti um golpe na altura do meu tórax e fui arremessada pelos ares, parando somente quando atingi uma parede e escorreguei sobre uma prateleira. Bati minha cabeça quando fui ao encontro da parede e agora uma dor quase que insuportável inundava meu cérebro. A visão, que antes estava escura, agora estava turva e quando atingi o chão, gemi pela dor abrasadora dos cacos de vidro se enterrando pela minha pele.

Eu queria gritar. Gritar pela dor, gritar por ajuda, gritar pelo medo que sentia daquele monstro. Mas todos os meus gritos não conseguiam sair por minha boca. Sentia-me fraca até mesmo por abrir os olhos. Nunca estivera tão cansada. Talvez eu quisesse que ele me matasse logo e acabasse com todo esse sofrimento que me causava.

Eu estava ainda estirada no chão quando a sombra dele recaiu sobre mim. Seu rosto era a perfeita máscara de fúria, ódio, repreensão que eu já tinha visto. Os olhos me observavam de forma cruel, deleitando-se no sofrimento que eu sentia. Ele estendeu um dos braços e pegou meu tornozelo esquerdo, começando a me arrastar por sobre o chão. Estilhaços de vidro cortavam partes do meu couro cabeludo e grãos de lentinha grudavam em meus cabelos. Tentei me livrar do seu aperto, mas era como tentar me livrar de algemas de aço. O monstro então pegou os dois tornozelos e me ergueu do chão. Parecia que poderia partir os ossos de minhas pernas se apertasse com um pouco mais de força. Fiquei pairando no ar, de cabeça pra baixo, encarando a terrível face mutilada dele. Olhei para baixo e vi o machado entre destroços de prateleiras, bem longe de onde eu estava. Sem ele, eu me sentia ainda mais vulnerável do que antes, como se eu fosse caminhar no meio de um tiroteio sem um colete a prova de balas. Tentei remexer meu corpo e a criatura rugiu como um animal em fúria, ao mesmo tempo em que apertava meus tornozelos ainda mais. Gemi de dor enquanto a criatura grunhiu uma risada disforme ao ver a dor que eu sentia. Nunca imaginei estar em uma situação como esta. Sentia-me fracassada por não ter ultrapassado este obstáculo. Não tinha mais esperanças de sair viva dali. Não tinha mais forças para lutar, ou correr e me esconder. Esse seria o meu fim?

Antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa, o monstro me ergueu um pouco acima de sua cabeça e pegou um dos meus braços. Sentia-me uma marionete sendo manipulada por ele. Então, com um grito grave, me arremessou.

Devia estar voando bem alto, pois vi o teto não tão distante de onde eu estava, passando a centímetros de minha cabeça. Senti um frio na barriga ao mesmo tempo em que meu coração parecia que pararia a qualquer momento. Eu não tinha medo de altura, mas isso não me impediu de gritar enquanto fazia um arco pelo interior do prédio. Queria fechar os olhos, mas quando vi para onde eu estava indo em direção, desisti. Logo abaixo de mim havia uma fileira de caixas eletrônicos e eu estava indo para um deles. Seria um pouso bem desagradável. O sangue pulsava incessante em meus ouvidos e todos os músculos de meu corpo estavam em brasa. Não pude deixar de cobrir meu rosto quando fui de encontro ao chão.

Caí como um saco de batatas sobre alguma coisa antes de derrubá-la e cair sobre ela. Não era o chão rígido ou a esteira, como achei que fosse. Eu caíra sobre algo... musculoso? Abri os olhos e tentei me erguer apoiando os braços no chão para ver no que eu caíra, mas estava tão fraca que nem suportei meu próprio peso, caindo novamente. Escutei um gemido de dor.

–- Saia... de cima... de... mim -- pediu uma voz rouca e masculina. Quando olhei para frente e minha visão se tornou mais nítida, vi que caíra sobre o rapaz que havia encontrado aqui.

–- O que você ainda está fazendo aqui? -- perguntei e não me surpreendi com a minha voz ainda estar rouca. Até respirar parecia difícil, como se houvesse areia em meus pulmões e na garganta.

–- Sendo esmagado por você -- ele respondeu, incomodado. -- Pode sair de cima de mim agora?

Era mais uma ordem do que uma pergunta. Rolei para o lado e me arrependi imediatamente em tê-lo feito. Caí por cima do braço direito e foi como perfurá-lo com vários pregos incandescentes. Mordi a língua para não gritar e senti gosto de sangue. O rapaz se levantou com um pouco de dificuldade, e ficou me encarando enquanto respirava de forma pesada.

–- Se não vai me ajudar, -- falei com a voz fraca, quase que num sussurro. -- pode ir embora ao invés de contemplar minha desgraça.

A expressão dele se tornou rígida, quase carrancuda. Fez menção de que iria dizer algo, mas um som estrondoso fez com que nós dois olhássemos para o corredor a nossa frente. Na escuridão parcial, era apenas notável uma sombra grotesca que se erguia conforme se aproximava. Um resquício de luz vermelha na altura dos olhos me deu arrepios na espinha. Tateei o chão ao meu redor, mas lembrei que não tinha mais o machado e que ele estava agora perdido em sob alguns destroços a minha frente. Eu poderia já me considerar morta.

–- Se eu tivesse pelo menos uma arma... -- escutei o rapaz murmurar e aquilo foi como acender uma lâmpada em minha mente.

Abri minha mochila de qualquer jeito e comecei a procurar. Quando minhas mãos tocaram o metal frio da pistola, senti como uma pequena fagulha de esperança. Eu tinha uma chance, na verdade seis, a julgar pela quantidade de balas que estava carregada.

Apoiando-me com dificuldade na esteira do caixa, consegui me levantar depois de muito esforço. Sentia como se tivesse sido atropelada por um caminhão e que este ainda tivesse passado por cima de mim. Cada músculo meu ardia e protestava em uma dor lancinante. Recostei-me no caixa e ergui minha mão trêmula e tentei manter o braço esticado enquanto mirava em algum ponto do monstro. Ele se aproximava e apontei na direção do tórax.

Puxei o gatilho e a arma soltou um estampido.

Parecia cena de filme em câmera lenta: a bala era um pequeno ponto prateado cortando a distancia entre mim e a criatura. Este não pareceu notar o projétil que ia a sua direção e continuava avançando, as garras se projetando como as de um gato. A bala o atingiu... e se estilhaçou ao entrar em contato com sua pele. Ela nem o retardara.

Não havia como matá-lo.

Tentei recuar, mas minhas pernas cambaleavam e caí de costas. Não havia mais sinal do rapaz. Talvez ele tivesse fugido, talvez tivesse se salvado. Pelo menos um de nós poderia contar a história. Meu corpo se recusava a se levantar enquanto a criatura trazia em ambas as mãos duas prateleiras retorcidas.

É isso então. Tudo acabava aqui. Fecho os olhos e peço desculpas a Mark, Quirina, Rebeca e... Hans.

A última coisa que escuto são grunhidos enquanto o monstro arremessa as prateleiras em minha direção.


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