O Monge escrita por slytherina


Capítulo 1
À maneira do tigre sob o signo do dragão


Notas iniciais do capítulo

"No templo Shaolin há três tipos de homens: estudantes, discípulos e mestres. O desenvolvimento da mente pode ser adquirido apenas quando o corpo tiver sido disciplinado. Para cumprir isso, os anciões nos ensinaram a imitar as criaturas de Deus. Da garça nós aprendemos graça e autocontrole. A cobra nos ensina maleabilidade e resistência rítmica. O louva-Deus nos ensina velocidade e paciência. E do tigre nós aprendemos tenacidade e poder. E do dragão nós aprendemos a cavalgar o vento. Todas as criaturas, o menor e o maior são um com a natureza. Se nós tivermos a sabedoria de aprender, todos poderão nos ensinar suas virtudes. Entre a beleza frágil do louva-Deus e o fogo e paixão do dragão alado, não há nenhuma discordância. Entre o silêncio maleável da cobra e as garras da águia, há apenas harmonia. Como nenhum elemento da natureza está em conflito, então quando percebemos o modo da natureza, nós removemos nossos próprios conflitos, e descobrimos uma harmonia entre corpo e mente em acordo com o fluxo do universo. Isso pode demorar uma vida inteira para aprender e dominar." Mestre Kan.



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As estradas do Arizona eram poeirentas, mas não solitárias. Ele caminhava lento, mas permanentemente. Usava calças de brim e um casaco de tecido grosso sobre camisa branca de algodão. Usava botinas de couro, mas freqüentemente as tirava e pendurava pelos cadarços no pescoço. Gostava de sentir a terra bruta sob os pés. Afinal essa era a indumentária dos monges shaolins, mantos laranja e pés descalços. Parava de andar quando encontrava água para beber e banhar-se. Alimentava-se de frutas e raízes. Dormia sob árvores e admirava o pôr do sol. À noite aguçava os ouvidos e escutava os sons da natureza. Podia discernir entre o piado da coruja, o coaxar de sapos, a sinfonia dos grilos e o zunir de insetos. Sentia-se em paz, apesar de tudo. Deixara os cabelos crescerem. Estavam tão longos agora que lhe tocavam os ombros. Muito diferente de quando ainda morava no templo e os tinha raspado até ficar careca. Não ligava para os cabelos. A cabeça raspada fazia parte dos hábitos monásticos.

Há muito tempo, quando era um menino órfão na China imperial, fora aceito no Templo Shaolin como estudante. O monge que o entrevistara chamava-se Kan. Ele era rígido e paciente.

Início de Flashback:

_Como se chama menino? - Mestre Kan o interpelara.

_Kwai Chang Caine, senhor. - Informou o menino sino-americano.

_Em 500 anos neste Templo Shaolin nunca admitimos nenhum menino que não fosse inteiramente chinês. - Mestre Kan o informou.

_... - Caine abaixara a cabeça derrotado.

_Sempre há uma primeira vez para tudo. - O velho mestre lhe deu um sorriso acolhedor.

Nos dias seguintes, Caine teve sua cabeça raspada e passou a vestir-se como os estudantes budistas, com túnicas brancas. Dormia, alimentava-se, exercitava-se e meditava. Tudo com ordem e disciplina. Dentre todos os seus mestres, havia dois a quem ele mais amava, o Mestre Kan e o Mestre Po. Este último era cego, mas não parecia sentir falta deste sentido.

_Dentre todos os sofrimentos o pior deve ser viver na escuridão. - Caine comentou para Mestre Po.

_Viver com medo é pior do que a escuridão. - O velho mestre o corrigiu.

Caine era muito jovem e por mais que estivesse cercado de meninos de sua idade, por vezes chorava sozinho, com saudades de sua mãe que morrera e o deixara só no mundo. Um dia Mestre Po escutou seu choro e o abordou:

_Por que chora menino?

_Porque estou sozinho no mundo.

_Feche seus olhos e fique em silêncio.

_... - O menino obedeceu ao mestre.

_Diga-me o que escuta agora.

_Eu escuto o barulho do córrego e o canto dos pássaros.

_Você não escuta os batimentos do seu coração?

_Não, senhor.

_Você não escuta nem mesmo o canto do pequeno gafanhoto que está a seus pés?

Caine abriu os olhos e viu admirado um gafanhoto próximo aos seus pés.

_Como um homem cego pode ouvir tais coisas?

_Como um menino pode não ouvir tais coisas? Como pode sentir-se sozinho estando cercado de vida e natureza por todos os lados?

Daquele momento em diante ganhou o apelido de gafanhoto, aquele que consegue grandes coisas com muito esforço.

Fim do Flashback.

Caine seguiu andando até a cidade de Kilgore. Com sorte conseguiria um trabalho e alimento. Também gostava de interagir com as pessoas. Conviver em harmonia com os outros. Entretanto na América de 1870, os estrangeiros eram vistos com desconfiança e hostilidade. Chineses eram considerados tão inferiores quanto índios e negros. Caine descobriria isso em sucessivos confrontos com os habitantes do oeste americano. Em Kilgore havia uma pequena comunidade de chineses imigrantes. Caine foi informado que encontraria acolhida por lá. Procurou pelo nome Kam Yuen e o informaram que o chinês que vendia condimentos, morava no fim da terceira rua. Ele encontrou uma hospedaria com uma cabana nos fundos. A cabana pertencia a Yuen.

_Senhor Kam Yuen, eu me chamo Kwai Chang Caine, vim recentemente da China e me indicaram a sua pessoa. Peço humildemente por sua acolhida. - Caine se apresentou curvando-se para o homem a sua frente.

_Senhor Caine lamento recusar-lhe hospitalidade, mas minha casa é pequena demais até mesmo para mim, mas posso ofertar-lhe minha amizade e pagar-lhe pelos serviços, se quiser trabalho. - Falou-lhe o chinês de baixa estatura, franzino e de cabelos negros rente ao couro cabeludo.

_Muito obrigado senhor Kam Yuen, eu aceito satisfeito sua generosa oferta. - Caine curvou-se novamente.

Dormiu na floresta novamente, sob uma árvore e a lua cheia. Apresentou-se no dia seguinte a Yuen. Ele o empregou como assistente faz-tudo, em sua pequena mercearia ao lado da hospedaria. Caine passou o dia carregando caixas, varrendo o chão, moendo e envasilhando condimentos. Só não atendia ao público, pois ainda não fora aceito pela sociedade de brancos, anglo-saxões puritanos. Eles apenas haviam aceitado a Yuen e sua família. Foi durante seu intervalo para alimentar-se de arroz, que a mulher de Yuen veio conhecê-lo.

_Meu marido me disse que é muito prestativo e humilde. - A mulher era mais alta que o marido. Usava roupas ocidentais e o cabelo negro e liso preso em um coque. Ela ainda era moça e bonita. Decerto o seu casamento fora arranjado por sua família.

_Obrigado. - Caine curvou-se para a mulher de Yuen, em deferência.

_Seu nome, Caine, é ocidental. Onde está sua família ocidental? - A mulher de Yuen parecia ser uma mulher prática. Fora direto ao ponto.

_Meu pai e mãe já morreram. Sou filho de pai americano e mãe chinesa. Tenho irmãos e outros parentes americanos, mas não sei onde moram. Estou à procura de minhas raízes na América.

_Por que não volta para a China e procura por suas raízes chinesas?

_Quando o local que moramos deixa de ser um local seguro, é preferível mudar-se a enfrentar a tempestade, senhora.

_Sábias palavras. - A senhora Yuen, não tendo mais o que perguntar retirou-se.

Um dia, o Senhor Yuen pediu a Caine que consertasse o galinheiro que mantinha nos fundos de sua cabana. Caine muniu-se de martelo e pregos. Arregaçou as mangas de sua camisa branca e começou o trabalho de restauração. A senhora Yuen veio trazer-lhe um caneco de água e viu algo que a chocou. Os antebraços de Caine tinham tatuagens. Em um deles havia um tigre. No outro um dragão. A mulher rapidamente foi para a mercearia e chamou o marido. Logo mais o senhor Yuen veio falar com Caine.

_Mostre-me seus antebraços. - O homenzinho falara calmamente.

Caine parou o que estava fazendo e colocou suas ferramentas no chão. Então esticou os braços exibindo suas tatuagens. Yuen ficou surpreso. Arregalou os olhos e fez uma exagerada reverência para Caine. Este ficou apenas observando o pequeno homem.

_Perdoe-me mestre, eu não sabia que era um monge. - O senhor Yuen falou respeitoso.

_Em nossa terra eu era um monge. Neste lugar sou um homem comum. Não precisa curvar-se para mim. Peço por favor, que não conte isso a ninguém. - Caine falou calmamente.

_Como queira mestre. Ofereço-lhe agora a hospitalidade de minha casa. - Yuen curvou-se mais uma vez.

_Obrigado. - Caine reverenciou seu interlocutor dessa vez.



Fim do Capítulo

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Notas finais do capítulo

Em memória de David Carradine (1936-2009). Descanse em paz.



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