Aos poucos vou escutando vozes sussurrando e uma música baixinha no fundo. Percebo que estou deitada em algo duro, mas nada desconfortável. Percebo também que seu interior é gelado, mas eu não sinto frio. O ar cheira a flores. Percebo também que os sussurros vêm do meu lado esquerdo e quanto mais eu demorasse pra abrir os olhos, mais demoraria para eu saber onde estou exatamente.

Abro lentamente os olhos e minha primeira reação é saltar da cama em que eu estou. Que não é uma cama. É uma espécie de pedestal... Não, não um pedestal. É uma pedra de gelo, do tamanho de um caixão. Na superfície dela há terra e ao seu redor fogo é cuspido. O ar que emana aqui é cheio de pontinhos rosa e lilás. Então me permito olhar ao meu redor.

Parece que todos os objetos presentes no cômodo faz referência às quatro estações juntas. Digo, o chão é de gelo – de modo que parece que estamos num ranking de patinação. As paredes, internamente, são chamas. Os móveis são feitos de terra (a maioria, pelo menos) e uma neblina paira acima do chão.

Demoro pra perceber que eu estou em um quarto. Que estou deitada em uma cama e a entrada de fogo fica a minha direita. Ao lado da cama há um criado-mudo de gelo com terra por cima. Adiante, um guarda-roupa de terra, ao lado de uma escrivaninha com a cadeira de fogo. Há uma espécie de tapete de terra e uma estante cheias de livros – também de terra, menos os livros, claro.

Então olho pra mim. Meus cabelos estão soltos e cacheados, na altura do peito. Eu visto um vestido laranja e meus pés estão cobertos de terra. Olho pras minhas mãos: estão chamuscadas. Minhas unhas: pretas. Há alguns ferimentos na perna também, mas agora apenas me importo em sair daqui.

Os sussurros que eu ouço vêm do lado de fora deste quarto, eu quero encontrar meus amigos. Mas a cama é revestida por fogo! Como vou sair desta porcaria?

O fogo não queima, ouço a voz de Kellie.

- Está me ajudando? – pergunto. – Porque?

Porque estou de bom humor, ela responde. Graças ao seu amiguinho.

Fico com tanto ódio dessa sua última frase que Kellie some. Penso no que ela havia dito: o fogo não queima. Ora, mas é claro que queima. Se não queimasse, porque estou toda cheia de queimaduras, completamente chamuscada? É óbvio que o fogo queima.

Tento lembrar-me da aula de física. Fogo é composto por oxigênio, combustível e calor. Se um deles estiver em falta, ele não queima. Eu não sinto calor. Estou rodeada de fogo, mas não sinto calor. Toco em minha testa e queimo minha própria mão. Solto um gritinho e me afasto do fogo.

Alice, Kellie diz em minha cabeça. Você está no palácio da princesa Castellan, sua temperatura aí é de 100ºC. Fogo queima porque ele está em uma temperatura muito acima do que o humano está acostumado, mas você está aí, na mesma temperatura que o fogo. Os objetos de gelo vão te queimar, a menos que a terra esteja presente nele. No caso do chão, basta um tapete ao seu redor para que isso não aconteça. A terra mágica do castelo entra em contraste com o gelo.

Decido confiar em Kellie e salto da cama. A princípio minha pele arde, mas percebo que foi por causa do gelo, não do fogo. Fico de pé rapidamente e a intensa dor cessa. Olho pra baixo e vejo o que havia acontecido: estou com sapatos de terra. O que Kellie disse em minha cabeça era verdade, afinal.

Começo a andar para o lado de fora e vejo um grande salão. Sem nenhum objeto, apenas terra jogada no gelo e as paredes pegando fogo. Não há a neblina, mas posso jurar que o ar é rosa. Assim que piso no cômodo, meus sapatos se dissipam e solto um gritinho, achando que seria queimada. Mas o chão está coberto de terra, isso não aconteceu.

- Vejo que já entendeu a lógica do castelo – fala a menininha ruiva.

- Você é a princesa Castellan?

- Agora que estão todos aqui... Posso assumir minha verdadeira forma. Sente-se Alice.

Obedeço, sentando-me ao lado de Maria.

A imagem da menininha ruiva tremula e ela cresce. Sua pele adquire um tom azulado e seus cabelos são mais vermelhos que antes. Seu vestido é marrom e ela passa a flutuar em uma nuvem. Senta-se nela, então e começa a falar:

- Não quero ser interrompida. Creio que eu deva uma explicação... Primeiro, a mãe de Alice pediu minha ajuda com uma falha no seu plano. Alice estava muito mesquinha, então, foi decidido, entre a mãe dela e sua guardiã, que haveria uma transferência de mundo. Você iria sair de Origen para o Sumbroero. Há cinco mundos no universo: Origen, que é o centro de todos e o lugar que você nasceu. Dromêda, que é o que fica mais a esquerda no nosso mapa: o lugar onde todos vivem menos intensamente – os sentimentos e emoções das pessoas de lá são menos intensos. Sumbroero, que é o que fica mais a direita no nosso mapa: o lugar onde todos vivem mais intensamente e todas as pessoas só são capazes de amar uma única pessoa durante toda a vida. Pretolho, que fica ao lado do Sumbroero. O Pretolho é o mundo mágico. Sabe esses livros que vocês leem aqui? Harry Potter, Percy Jackson, Crepúsculo... Tudo acontece lá. Tudo isso é real lá. O mundo é dividido entre especiais e trouxtais. Os especiais são os dotados com alguma coisa, os trouxtais são os que não são ninguém e escrevem todos os textos para nós. Esse mundo é o único que sabe da nossa existência.

- Posso... Perguntar uma coisa? – começo hesitante.

- Diga – ela fala simpaticamente.

- Se o mundo de Harry Potter é real lá... Rose e Scorpius existiram de fato. Eles ficaram juntos?

- Rose e Scorpius ainda têm treze anos – ela responde.

- Como as histórias vêm parar aqui?

- Os trouxtais escrevem seus livros e entregam na nossa sede de lá. Digo, nós estamos na sede de Origen. Lá há outra sede... Tudo é repassado para o patrono do país de origem. O que mais sofre é Joshua, coitado. A maioria das histórias é dos Estados Unidos e ele é o patrono de lá. Mas tenha calma – ela pediu. – Eu não gostaria de chegar nesse ponto agora. Voltando... O quinto mundo é o Chanuto, que fica a nossa esquerda. Lá é o famoso “Universo Paralelo”. Com pouca frequência alguns são jogados lá e os de lá são jogados aqui. É a experiência do Universo Paralelo. Lá, você age como Roberta e Roberta age como você. Maria é uma santa que não pega ninguém, assim como Tomás, que não tem um senso de humor. Tudo acontece ao contrário!

- Legal.

- Agora que você já sabe dos mundos, contarei como funcionam... Ao nascer uma criança em Origen, outra nasce ao mesmo tempo nos outros mundos. Tudo está interligado. Até Harry Potter teve que nascer primeiro em Origen para poder ser um bruxo em Pretolho. Aqui ele é apenas um mortal. Você é de Origen, Alice. Quando sua mãe disse que gostaria de castiga-la, ela e Kellie queriam lhe colocar no Chanuto, o universo paralelo. Mas eu decidi que você deveria ir pra Sumbroero, o mundo onde todos vivem mais intensamente. Porém... Houve uma falha no plano. Um dos sumbrinos se apaixonou por uma original. Tomás se apaixonou por você. Os sumbrinos amam apenas uma vez na vida, Alice. Entende a gravidade do problema? Então o anjo protetor de Tomás veio brigar com sua anja, sua mãe. Tomás estava sofrendo tanto, tadinho. Então os dois vieram a mim e ficou decidido que você precisava reencontrá-lo e ficar com ele. Decidimos então que ele irá pra Origen. Mas pra isso... Um dos dois amigos seus terá que ficar em Sumbroero. Não precisam se decidir agora. Alguma pergunta?

- Dá pra explicar esse negócio de fadas? – pediu Maria impaciente.

- Vai mexer com mitologia, é bom que tenham prestado atenção nas aulas sobre o assunto. Bom... Aqui em Origen, Deus é o salvador e criador de alguns de vocês – pelo menos a maioria. Em Chanuto, os deuses são os salvadores. As histórias de lá vieram até aqui e os gregos colocaram toda a sua fé nessas histórias, por isso vocês chamam isso de mitologia grega. Enfim, os três deuses Zeus, Poseidon e Hades ficaram responsáveis por céu, água e terra. Zeus com o mundo superior, Hades com o mundo inferior e Poseidon com os mares.  A história é complicada... Quando alguém de Origen morre, sua alma navega até os mares, onde Poseidon jugará a alma. Se ela foi uma pessoa que morreu boa, sem ressentimentos, é mandada para o mundo superior. Se ela morreu com algum sentimento ruim, mesmo que a pessoa seja boa, ela é mandada para o mundo inferior. Não, não, não. Mundo inferior não é lugar dos ruins. Lá, sua alma será novamente julgada e você será designado a um dos três locais. Um completamente bom, um que você se esquecerá de tudo e um que você será punido. No mundo superior, também há três caminhos. O das fadas, dos anjos e dos guardiões. É uma ocupação, enfim. As fadas são as mulheres com asas... Porém não é qualquer um que pode virar uma fada. Há um limite de vagas. As fadas são ajudantes de Deus, podemos falar assim. Há a fada do Sol, do Fogo, do Gelo... Elas cuidam de tudo isso e vivem no mundo superior. Já os anjos e os guardiões moram aqui, na vila. Cada pessoa tem seu anjo – que é o mesmo em todos os cinco mundos. Anjos te guiam durante a vida. Guardiões te guiam durante a morte. Eles te levam até o mar e te explicam toda essa história. Todos eles são mortais. Digo, quando a missão acaba, eles são enviados ao mundo inferior e vive ao lado dos bons. A maioria dele, pelo menos.

- Isso é confuso demais! E o que é isso de patrono?

- Ah... Algumas fadas são promovidas ao cargo de patronos. Cada local tem uma espécie de chefe, inclusive nos outros mundos... Você não precisa entender tudo sobre o nosso mundo, Alice. Está pronta para rever seu Tomás?

Meus olhos brilharam e minha resposta foi única e rápida:

- Estou.