Outono escrita por murilo


Capítulo 5
capítulo quatro. sozinho




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Depois de um tempo cansativo de receber respostas repetidas, eu resolvi ir para o meu quarto. Tentei dormir um pouco, mas não consegui, pensando em como tudo havia acontecido em apenas um dia. Isso fazia minha cabeça doer cada vez mais e me preocupava mais. Também, eu simplesmente não estava cansado o bastante para conseguir pegar no sono, mesmo depois de todos os ocorridos. Após algumas horas, desci para a sala e não havia ninguém lá, apenas o silêncio e a escuridão. Os ignorei, sussurrando algo para me marcar presença e acendi as luzes, espantando-os. Sentei-me no sofá, esparramado e liguei a televisão em um programa qualquer, o qual nem prestei atenção.

Não prestei atenção, pois não conseguia parar de pensar em Alice, no Dr. Oliver, nas respostas, nas perguntas, nas cores, nos sorrisos, nos cigarros e todas essas coisas. Pensei estar um pouco lúcido, ao menos, mas comecei a ver formas geométricas surgindo na minha frente, flutuando no espaço, e se afastando, indo embora. Era tudo tão confuso e perturbador, e eu só queria um descanso de toda essa loucura. Após uma meia-hora, eu resolvi ir dormir. Como já disse, não ficava cansado, portanto, não era pelo cansaço que eu iria dormir, mas porque eu queria fugir de todo esse mundo aterrorizante que me fora apresentado hoje.

Hoje. Em tão pouco tempo, tanta coisa. Desliguei a televisão, levantei-me do sofá e segui em direção às escadas. Desliguei as luzes, dando espaço à escuridão e ao silêncio novamente. Olhei para eles do topo da escada, enquanto se misturavam com todos os quadrados, triângulos, círculos, flutuantes, sussurrei um "boa noite" para eles e para quem quisesse ouvir, também. Ninguém respondeu. No banheiro, escovei os dentes e fiquei me olhando no espelho. Fitei os olhos escuros do ser no espelho, eram estranhos.

Deitei-me e fiquei virando de um lado pro outro, sem sequer fechar os olhos, por aproximadamente meia hora. Era quase como se eu forçasse meu corpo a dormir, mas ele não se sentia cansado, meu cérebro estava tão ligado quanto poderia. De repente, em um momento de paz, meu cérebro se acalmou e eu consegui fechar os olhos. Minha visão ficou escura e eu me lembrei de meus transes.

De repente, tudo ficou tão estranho quanto nos meus transes. Meus olhos, de certa forma, se grudaram - não conseguia abri-los, mesmo me esforçando. Levei as mãos aos olhos, mas elas não me obedeceram, simplesmente ficaram no lugar onde já estavam, como se sempre pertencessem àquele lugar. De repente, senti meu corpo desgrudar do lençol úmido da cama, sem nenhum impulso voluntário. Era como se eu não tivesse pleno controle sobre meu corpo. Senti como se flutuasse muito alto, mas sabia que não estava tão longe de minha cama assim, sentia sua quentura. De repente, foi como se o mundo começasse a girar mais rápido por baixo de mim e eu estivesse pendurado em algo, protegido de todo esse movimento acelerado. Como se eu não estivesse tão rápido quanto todo o resto.

De repente, me senti afundar nos lençóis, batendo com força na cama. Recuperei o controle de meu corpo e abri os olhos, sem sequer ter pegado no sono. Senti a claridade que o dia trazia, apesar de nublado. Não havia dormido e me sentia tão acordado quanto sempre.


Cheguei à cozinha e meu irmão comia algo que eu nem sequer prestei atenção, ele me olhou e disse:

– Você está atrasado.

Então, meu pai chegou e começou a falar alto, eu não conseguia entender nada.

– Todo dia essa merda.

Minha cabeça começou a girar, eu olhava de um lado pro outro, para o meu irmão, para o meu pai. Nada fazia sentido. Senti meu corpo enfraquecer e eu simplesmente desmaiei. Quando acordei, não estava em casa.

"Você está preparado?" ouvi, como um sussurro, vindo de longe. Estava tudo muito escuro e eu não conseguia me localizar. Era um local muito bonito.

Uma simples descrição do local: eu estava deitado na terra, bem perto da margem de uma extensa lagoa banhada por neblina, do outro lado, conseguia ver várias árvores com folhas alaranjadas. Também via pássaros, estagnados, como se estivessem mortos, como se estivessem congelados. Senti frio, mas logo passou substituído pela sensação de medo.

O que eu estava fazendo naquele local?

"Não tenha medo.", alguém sussurrou para mim. Virei-me, num pulo assustado e vi algo. Era um pequeno ser, do tamanho de uma criança de uns 6 anos. Não possuía face, vestia um vestido preto que ia até seus pés e possuía algo em suas mãos, uma flor. Uma flor morta. Estava sem calçados.

"Eu vim lhe buscar." disse a menininha assustadora. Esquivei-me de seu toque. "Não tenha medo." disse, enquanto tentava me tocar novamente, eu me esquivei e lhe empurrei para longe, mas minha mão acertou o vento quando ultrapassou seu estômago. Fitei meus dedos, assustado, lacrimejando. O que estava acontecendo?

"Venha comigo." e eu sabia, sabia quem era. Era a mais dolorosa de todas as sensações, mas a mais pacífica. A Morte. Chegara minha hora.

De repente, minha visão ficou turva, já não enxergava nada. A Morte se tornou apenas um pequeno borrão preto, que eu vi crescer e se tornar mais clara e brilhante. Minha visão voltava ao normal enquanto os pássaros voltavam a voar, descongelando, ressuscitando. Surgiam crianças e famílias, me olhando incrédulos enquanto eu lacrimejava, com uma camiseta suja de barro úmido. Alice me olhava, assustada.

– Eu vim te buscar, seu pai está desesperado atrás de você. – Alice falou, com tranquilidade.

Eu estava mais assustado do que jamais estive, olhava para ela, tremendo, quase chorando. Olhando para suas mãos claras, para seu brilho de doer nos olhos.

Gaguejei um “Oi” e logo vi um sorriso se formar no seu rosto. Segurei sua mão fortemente e me ergui.

– Você está bem? – Ela perguntou. Fiquei lisonjeado por sua preocupação.

– Estou, obrigado. – falei já mais calmo, mas ainda assustado.

Ela, ainda segurando minha mão – o que me deixou estranhamente satisfeito – me guiou até um banco livre, perto de onde estávamos.

– O que aconteceu? – ela perguntou.

– Eu gostaria de saber, também. Mas não sei. Tudo está tão confuso na minha mente.

Fechei os olhos para esconder as lágrimas que não paravam de tentar sair, enquanto escondia meu rosto entre as mãos. Depois de um tempo, olhei para Alice. Ela me olhava tão profundamente que corei, era como se ela estivesse me analisando.

– O que você é? – perguntei.

– Eu? Ah, nem eu mesma sei. Você quer me definir? Seria muito bom. Ela respondeu, enquanto tirava algo do bolso que, inicialmente, pensei ser um cigarro, mas ela tirou a coisa com tanta rapidez e a desmanchou entre as mãos largando suas cinzas avermelhadas no chão com tanta pressa que eu nem consegui identificar.

– O que era aquilo?

– Ah, era uma flor legal que eu achei por aí faz um tempo. Só que eu me esqueci de te entregar e ela morreu no meu bolso. – Ela sorriu radiante diante da luz do sol.

Sorri também.

– Você, Alice, é minha salvação. Quer dizer, não literalmente, porque eu não preciso ser salvo. Mas, eu quero dizer...

Ela olhou para o outro lado, como se me ignorasse, mas sabia que ela estava me ouvindo. Peguei sua mão novamente.

– Você é isso. É tudo e nada. Você é a morte e é a vida. Por que você é a morte, Alice?

Ela olhou para mim e sorriu, apertando minha mão.

– Eu não sou a morte. Bom, não simplesmente. Você me conheceu ontem, cara. Ontem. Você precisa saber muito mais sobre mim.

Eu despertei. Eu pensei que a conhecia tão bem, como se tivéssemos vivido toda uma vida juntos, me esquecendo de que havia conhecido há apenas um dia. Um longo dia. Acho que tudo isso é por causa de tudo o que aconteceu ontem. Aconteceu muita coisa ontem.


Ela deu um riso fraco, e eu não, inicialmente, porque interpretei sua reação como um xingamento, mas eu entendi que não era e sorri.

Ela se aproximou de mim, seu nariz quase tocava o meu, mas eu não sentia sua respiração, como eu esperava. Ela respirava tão sereno que era como se não respirasse. Seus lábios tocaram o meu de forma tão simples e rápida que eu me assustei. Era o meu primeiro beijo e eu sequer sabia o que fazer. Ela largou minha mão e segurou minha nuca enquanto abria sua boca, e eu a imitei. Tudo começou a ficar feroz, não que eu soubesse classificar um beijo como “feroz”, mas era o mais próximo do que eu sentia. Nossas línguas se debatiam e eu senti um tremor percorrer meu corpo quando pensei o quão ruim meu beijo deveria ser. Depois de um tempo, ela separou seus lábios dos meus para respirar. E sorriu com a boca a centímetros da minha. Eu sorri também, constrangido.

– Desculpe... eu nunca tinha beijado ninguém antes.

– Legal. Eu só tinha beijado um garoto antes disso e tinha sido muito ruim mesmo. Obrigado por desfazer meu trauma de beijos.

Eu nunca imaginaria isso acontecendo.

– Foi, é... legal? – perguntei, desajeitado.

– Foi sim.

Então nós dois ficamos de mãos dadas por um tempo, sorrindo, encarando um ao outro. As pessoas não estavam por ali mais, era como se houvessem desaparecido, mas eu não ligava. Aproximei-me de Alice mais uma vez e selei nossos lábios, mais confiante dessa vez.


Após certo tempo, era como se eu já tivesse feito esse negócio de beijos diversas vezes, apesar de eu saber que não havia. Ela pegou suas unhas e começou a arranhar a pele de meus dedos de leve, o que me deu arrepios. Ela me olhou.

– Você gosta?

– Aham.

– Connor, quantos anos você tem? – eu achava que ela nem soubesse meu nome.

– Hm, quinze. – respondi, envergonhado. Na realidade, não sabia sua idade, ela poderia ser bem mais velha, ou bem mais nova. Ela poderia ser qualquer coisa.

– Legal. Eu tenho 17. – Não bem mais velha, mas mais velha. Corei.

Ela sorriu pra mim, de novo. Eu só queria sorrir de volta, pois ela era tão brilhante que me alegrava. Eu poderia sorrir com ela por horas e horas.

– Olha, eu tenho que ir. Vá pra casa logo e explique para o seu pai o que aconteceu. Já são cinco horas.

– Tá, tchau. – aproximei meus lábios dos dela mais uma vez e ela se esquivou.

Fiz uma expressão confusa.

– Calma, tenha calma. – disse, enquanto beijava minha mão e se levantava para ir embora.

Fiquei no local por mais algumas horas, aproximadamente. Não sei exatamente quanto tempo foi. Depois, resolvi ir para casa, principalmente porque comecei a ver as formas geométricas se formarem de novo no ar e saírem flutuando.

As ruas pareciam escuras sem suas cores, mas eram bonitas, mesmo assim. Quando cheguei a minha casa, meu irmão estava olhando televisão e meu pai estava na cozinha. Apenas gritei um “estou bem, depois conversamos”. Ninguém respondeu, por isso continuei seguindo os quadrados que formavam um caminho até meu quarto.

Ao chegar lá, a primeira coisa que fiz foi trocar minha camiseta suja de lama e colocar uma nova. Depois que vi que toda a minha roupa estava suja, inclusive calças e meias, resolvi tomar um banho. No banho, vi vários triângulos, mas os ignorei. Nada fazia sentido, mas tudo fazia sentido por causa do beijo de Alice. Ou melhor, dos beijos.

Cheguei a meu quarto, peguei um livro qualquer que já havia lido pela metade. Sentei em uma poltrona perto de minha cama, mas não consegui pensar no livro.

Enquanto acabava um capítulo, virando a página para o início do próximo, alguns triângulos dançavam e circulavam ao meu redor, não me deixando prestar a devida atenção à leitura. Baixei o livro e tentei tocá-los, mas ao chegar meus dedos perto deles, eles simplesmente se esvaíam, como pó. Passei meus dedos por todos, até eles, finalmente, sumirem.

Comecei a ler um novo capítulo quando ouvi a voz do meu pai, chorando. “Tudo vai ficar bem”.

– Pai? – indaguei ao nada, enquanto me levantava, largava o livro onde estava sentado e focava em várias partes aleatórias do teto e das paredes de meu quarto. Mas não havia nada.

Eu ainda conseguia ouvi-lo choramingar palavras soltas quando os triângulos surgiram novamente, me fazendo enlouquecer de novo. Senti minha cabeça girar e pensei que iria cair, só encontrei a poltrona para me apoiar, sentando novamente e amassando meu livro, mas não liguei. Só queria alguma explicação. Olhei para o relógio e eram cinco horas e dois minutos. Como?

Eram cinco horas quando Alice se foi. Minha cabeça dói. Alguém me ajude. As vozes, elas estão vindo para mim. As formas vão me atacar novamente. Quem está comigo, aqui? Não há ninguém, eu estou sozinho. Sinto-me vazio. Mas há vozes.

Pisco e me assusto quando me vejo deitado sob um teto branco. Pisco novamente e estou sentado, lendo um livro qualquer que já havia lido pela metade.


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