O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
A tarde estava agradável e fui dar um passeio até à Rua de Santo António, na baixa da cidade, depois do trabalho. Passei pelo quiosque para levantar mais um fascículo de uma coleção que andava a fazer sobre o mundo antigo, dei uma espreitadela na montra de uma livraria, vi quais eram as últimas modas em algumas lojas de roupas.
Era terça-feira e as tropelias do fim-de-semana pareciam incrivelmente longe. No sábado, não conseguira zangar-me com a Patrícia quando me ligara a contar-me que já estava quase a acertar as coisas com o Miguel. Mais uma noite e ficaria tudo resolvido, mas quando me disse que ia buscar-me para mais uma saída, recusei energicamente o convite. Queria descansar. O que fiz durante um longo domingo modorrento e sem história.
Comecei a descer a rua em direção à doca da cidade, para ir apanhar o carro que tinha deixado estacionado junto ao Hotel Eva. Passei pela esplanada do café “Aliança” e olhei de relance para as mesas. Reconheci-o e o coração quis saltar-me pela boca. Chamei, sem pensar realmente no que estava a fazer:
- Tiago!
Abri um grande sorriso quando se voltou para mim. Tinha acabado de chegar e escolhia um lugar para se sentar. Tentei moderar a alegria para não parecer uma idiota.
Naquele fim-de-semana tinha pensado muito nele, preocupada com o que acontecera a seguir com o pai. E o que teria havido antes para o homem aparecer de repente, numa praia do fim do mundo, e ter-lhe batido daquela maneira.
- Olá, Ana.
Uma receção fria, demasiado trivial que ajudou a acalmar o meu entusiasmo.
- Está tudo bem contigo?
- Sim – respondeu-me.
O interesse dele por mim era nulo.
- Ficou tudo bem com o teu pai?
- Ahn?
Olhou-me como se tivesse falado com ele em chinês. Repeti devagar, no melhor castelhano que consegui:
- Ficou tudo bem… com o teu pai?
Sorriu-me com uma sinceridade tão crua, que senti as pernas transformarem-se em esparguete acabadinho de cozer.
- Nada que um bom par de murros não resolva.
A resposta escandalizou-me.
- O teu pai voltou a bater em ti?
- Descansa, que às vezes também consigo bater nele. Naqueles dias bons…
- O quê?
Não conseguia visualizar a cena corretamente. Pestanejei. E enquanto tentava perceber, deixámos de estar os dois sozinhos, o João aparecia.
- Eh… espanhol. Já chegaste? Vieste a horas hoje…
- O teu relógio está atrasado.
Percebi que o tempo precioso que os deuses me tinham concedido com o lindo rapaz dos olhos azuis se tinha esgotado. O João fez um esgar ao reparar em mim e perguntou:
- Andas a comer esta?
- Não.
- Uf! Que alívio! Por momentos pensei que tivesses perdido o gosto.
Pestanejei, novamente, pasmada com aquela breve troca de palavras entre os dois. O Tiago olhou-me a imitar o mesmo esgar.
- Realmente, tenho uma reputação a defender.
O João puxou-o, afastando o amigo de mim, como se fosse importante mantê-lo longe da minha influência.
- A Dora anda à tua procura – disse.
- E devo preocupar-me?
- Deixaste a gaja pendurada na “Kadoc”, na outra sexta-feira.
- Ela é que fugiu de mim.
- Não é isso que ela conta…
- Quando ela quiser, sabe onde me encontrar.
- Acho que quando ela te encontrar, vai-te ao focinho… - O João riu-se e então notou que eu não me tinha ido embora. – Oi… Ainda aqui estás?
- Não te lembras dela? Foi connosco para a praia.
- Ah, é essa?
- Eu tenho nome, sabiam?
Parecia que tinha cola na sola dos sapatos. Tentei levantar um pé para o descolar da calçada e terminar com a humilhação, mas o olhar profundamente azul do Tiago era um íman que me mantinha ali presa.
O Luís também aparecia.
- Ora… Temos outra gaja, espanhol?
A conversa decompunha-se rapidamente, como um cadáver exposto à intensa radiação do sol do deserto.
- Esta não é a minha gaja – respondeu o Tiago.
- Mas vê-se que quer molho – observou o João trocista. – Ouve lá, de certeza que não a comeste?
- Já te disse que não.
- Então, o que é que está aqui a fazer? – Perguntou o Luís com desdém.
Estava na altura de acabar com aquilo. O Tiago voltava a desiludir-me. Deixei a esplanada do “Aliança” sentindo-me suja. Mas a culpa era toda minha, porque tinha ficado e insistia na teimosia de querer encetar amizade com aquele anjo de alma negra. Mas o rapazinho até tinha sido sincero: ele queria que eu o odiasse, queria ser desprezível.
Pois tinha-o conseguido e com medalha de ouro!
Nunca mais lhe iria dirigir a palavra. Acabara-se o Tiago naquela tarde.
Quando cheguei ao carro, suspirei de tristeza. Não me conformava.
- Porque é que ele é tão estúpido?
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
Próximo capítulo:
O sabor amargo da derrota.