O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 31
VI.3 A amizade verdadeira.




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Aquela noite de finais de setembro estava fria. O céu negro e silencioso, salpicado de estrelas, estendia-se como um véu distante sobre o mundo. Trunks aconchegou o blusão ao corpo, enfiou as mãos nos bolsos e começou a andar.

A urbanização das Gambelas encontrava-se mergulhada na habitual quietude, tão silenciosa quanto o próprio céu. Ele aceitou aquela calma como indispensável, naquele momento da sua vida em que tentava afastar de si todo o ruído.

Aparentemente, nada tinha mudado. Continuava a sair de casa a horas impróprias, a regressar a horas ainda mais impróprias, a recusar uma conversa, qualquer tipo de aproximação, a não partilhar nada com a família, nem mesmo uma simples refeição. No entanto, tudo tinha mudado.

Nos primeiros tempos na Dimensão Real, sentira-se vazio e preenchera esse vazio com a invenção do Tiago. Agora, o Tiago já não era suficiente e sempre que ouvia o berro eufórico do João a chamar pelo espanhol, alguma coisa estalava dentro dele. E Trunks impunha um sorriso, impunha uma atitude, impunha uma mentira.

 O facto é que o Tiago perdera a piada. As bebedeiras já não o divertiam, muito menos as raparigas fáceis e estúpidas que lhe arranjava o João. O verão já tinha terminado e tinha havido um acidente que criara um antes e um depois, uma nova cronologia. Apercebeu-se que o Tiago morrera nesse acidente, deixara aí a pele e a alma, o que quer que o tivesse constituído como um ser palpável naquela dimensão, e Trunks sentia-se cansado por ter de continuar a desempenhar o papel desse personagem.

A porta dos fundos da vivenda de Gohan abriu-se e ele saiu, carregando um enorme saco preto de plástico, atado na ponta. Trunks parou, fungando, absorvendo o frio da noite, espreitando o caminho que tinha feito e que o tinha levado até àquela casa. Gohan acenou-lhe.

- Komba-wa, Trunks-kun!

Trunks sorriu-lhe.

- Um saiya-jin também despeja o lixo?

- Hai. Quando casares, verás que existem outras coisas que os saiya-jin também fazem.

Gohan abriu o contentor do lixo que se disfarçava num recanto da rua, rodeado de arbustos, e atirou o saco preto de plástico lá para dentro. A tampa do contentor fechou-se com um baque despropositadamente barulhento. Vinha a sacudir as mãos, batendo-as uma na outra, como se pudesse assim livrar-se do cheiro. Trunks disse-lhe:

- Brincas comigo? Eu moro na Capsule Corporation. Tenho robots que tratam do lixo, não preciso nunca de o despejar. Mesmo depois de me casar.

- Ah, pois… Já me esquecia.

Gohan juntou-se a ele, metendo as mãos nos bolsos das calças para aquecê-las, ou então, para esconder o cheiro. Olhou para o céu negro e silencioso.

- Estavas a passear?

- Hai.

- Posso acompanhar-te?

Trunks encolheu os ombros.

- Depois de despejares o lixo, não há mais nada que um saiya-jin deva fazer?

- Não. Depois do lixo, estou livre.

- Não é um passeio muito divertido, aviso-te.

- Não faz mal. Estamos juntos, é o que interessa.

Na outra noite, tinham tido finalmente uma espécie de conversa. Trunks não falara muito, escutara o que Gohan lhe dissera, enquanto trincava as bolachas que ele tinha trazido num prato. O barulho dos maxilares a desfazer cada uma das bolachas ajudava a barrar parte do discurso de Gohan, para que lhe fosse mais fácil absorvê-lo, em doses não muito letais. Retivera duas frases, porém, da conversa e um gesto. As bolachas tinham terminado, Gohan pousara-lhe uma mão no ombro e dissera-lhe:

- Não guardo rancor por aquilo que aconteceu. Nunca guardei.

Limpara os dentes com a ponta da língua, para arrancar pedaços moles e doces de migalhas misturados com saliva e pedira água. Gohan perguntara-lhe se ele estava bem e ele respondera que tinha comido um feijão senzu e que não poderia estar mal. Falara-lhe a seguir das bolas de dragão e que queria que fosse ele a pedir o desejo. Nunca mencionaram o nome de Son Goten.

Missão cumprida e Trunks regressara a casa menos nervoso.

***

Os passos deles ressoavam na estrada.

- Não tens aulas de japonês hoje?

Gohan negou.

- Não. A aula foi ontem… A segunda aula desta semana foi desmarcada, a Ana disse-me que depois me telefonava a confirmar a data dessa segunda aula. Acho que ela se está a desinteressar de aprender japonês.

Trunks fechou os punhos dentro dos bolsos do blusão. Gohan prosseguiu:

- Não percebo aquela rapariga. Praticamente implorou-me que retomasse as aulas, depois de terem sido canceladas por causa do teu acidente. Não lhe quis dizer que não, afinal são apenas aulas, afinal estava a implorar-me… Mesmo que tivesse depois de me justificar perante o teu pai. Mas agora, já não me parece tão motivada como no início. Ontem nem trouxe o caderno dos apontamentos.

Uma situação inédita. Trunks comentou pensativo:

- Ela está a afastar-se? Não pode ser…

Gohan suspirou.

- Videl acha que vamos interagir com ela.

Trunks riu-se com a observação.

- Eu ou tu?

A tirada espirituosa não foi do agrado de Gohan. Franziu o sobrolho, olhou-o de esguelha, mas não quis agarrar na deixa, preferindo ignorá-la, não queria obviamente discutir.

- Por outro lado, o meu pai acha que interagir é uma coisa impossível.

- Essa é nova – disse Trunks ligeiramente espantado. – Goku-san acha isso?

- O teu pai não está de acordo.

- Vegeta nunca está de acordo com nada.

- Tenho pensado nessas duas possibilidades… Interagir com alguém com quem convivemos de forma sistemática, como a Ana. A impossibilidade de interagir, por ser algo tão rebuscado e complicado que não está ao nosso alcance. Chego sempre à mesma conclusão. É melhor não tentarmos a sorte e devemos evitar a Ana-san.

Trunks parou. Sentia as faces geladas.

- Porquê?

Gohan também parou. Analisava-o curioso, começando a formar uma ideia sobre as relações dele com a rapariga da Dimensão Real, como parte do raciocínio que seguia naquela matéria. Perguntou-lhe:

- O que é que queres da Ana-san?

A resposta haveria de alimentar novas conjeturas. Trunks percebia o espanto de Gohan, nem ele saberia a solução daquele enigma – o que queria ele, de facto, da Ana? No âmago, naquele recanto esconso onde ainda se mantinha são e lúcido, sentiu um repuxão. Teve medo, mergulhava em águas misteriosas, mas soube que não iria recuar. Nunca medira os seus atos pela razão, lembrou-se. E respondeu de forma casual:

- É a única pessoa da Dimensão Real com quem falo em japonês.

Gohan rebateu:

- Ela já não quer aprender a falar japonês. O interesse dela pelo japonês acabou.

Por outras palavras, o interesse da Ana por ele tinha acabado. Percebeu a indireta, o aviso camuflado. Gohan pedia-lhe que reconsiderasse, que regressasse à luz, quando ele já caminhava sob essa luminosidade que correspondia ao caminho certo. E o que havia no fim do caminho? A dimensão onde ele pertencia? A vitória sobre Zephir? Son Goten?

Trunks olhou para o chão.

- Isso é uma coisa que tenho de esclarecer.

- Se ela quer afastar-se… Deixa-a. Será melhor para todos, até para ela. O que ganha a Ana em relacionar-se com um grupo estranho de pessoas que, mais cedo, ou mais tarde, irão abandonar este lugar?

- Mas não faz sentido. – Trunks entremostrou um sorriso apagado. – Ela gosta de “Dragon Ball”.

- Nani?

- É por esse nome que a Dimensão Real conhece a Dimensão Z. “Dragon Ball”.

- Bola de dragão? – Traduziu Gohan admirado.

- Hai… O que não deixa de ser irónico.

Mais dados, que Gohan processava no cérebro, acomodando-os para analisá-los mais tarde. Haveria de os esquematizar numa bonita equação matemática e talvez fosse o que Bulma precisasse para pôr finalmente a máquina das dimensões a funcionar. Gohan olhou-o por cima dos óculos e pediu, sem qualquer esperança de ser ouvido:

 - Trunks-kun, não o faças. Deixa a Ana-san em paz.

Trunks retomou a caminhada.

- Quero ouvir da boca dela porque é que já não quer aprender japonês.

Fizeram o caminho de volta em silêncio, cada um recolhido nos seus pensamentos, nas suas ideias, nas suas teimosias.

A noite estava bonita, mas fria e exageradamente quieta. Gohan despediu-se com um aceno e entrou em casa. Trunks enterrou a cabeça nos ombros, procurando aquecer-se dentro do blusão. Desceu a rua. Quando chegou perto da vivenda onde morava, não entrou. Ainda não se sentia preparado. Reuniu energia e elevou-se nos ares. Olhava para o manto de estrelas distantes enquanto subia, decidido a deixar-se embalar pelo vento, largando-se sem âncora e saboreando a última viagem que iria fazer naquela dimensão – que haveria de levá-lo a costas seguras. Ou àquilo que procurara nos últimos meses: um inferno insuportável.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
O regresso do tio misterioso.



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