Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 10
Capítulo 10




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                    - Por favor! Por favor! Me tome! - A mulher implorava. Como último ato de humilhação e subjugação, ela se prostrou de joelhos diante de Dom Emanuel de Aragão.

                    Dom Emanuel nada respondeu. Cruzou os braços na altura do estômago e cofiou os ralos pelos do queixo, que demoravam a crescer em barba.

                    - Por favor! Eu ainda tenho as carnes rijas. Olhe!

                    A mulher de joelhos desatou o corselete que lhe amarrava a camisa ampla de mangas bufantes. Puxou a camisa por cima da cabeça, e ficou somente com a grossa e pesada saia de tecido escuro. Seu busto ficou desnudo com os seios de matrona expostos. Dom Emanuel admirou a tez da mulher. Ainda era acetinada, e as partes que ficavam expostas ao sol brilhavam com a luz do candelabro de velas, acima de sua escrivaninha. Aquela mulher não se comparava em beleza com Catarina, mas a donzela estava perdida, havia escapulido de suas mãos. Então, por que não? Por que não poder usufruir do que aquela matrona queria lhe oferecer? Por que era errado?

                     - Senhora, por favor, vista-se. Eu não sou esse tipo de homem. Talvez a senhora esteja acostumada a oferecer-se por aí, mas eu não estou acostumado a semelhante comportamento. - Ele falou com raiva, pois não podia dar vazão ao desejo luxuriante de que estava tomado, mas ele não iria se satisfazer com aquela mulher, não com aquela...

                     - Reverendo, por favor me perdoe. Eu não sabia mais o que fazer. - começou a chorar - Sou viúva, minha família não mora nestas terras. Todos os meus vizinhos e conhecidos foram presos. Não cometi crime nenhum. todos os dias escuto pessoas gritando... eu tive medo. Pensei... pensei apenas que seria poupada se fizesse algum favor... eu sinto muito. Me perdoe, reverendo. - A mulher começou a vestir suas roupas, mas Dom Emanuel aproximou-se e segurou seu pulso, enquanto lentamente cedia à vontade de sentir a pele da mulher em sua boca.

                     Longe dali, nas masmorras da casa ocupada pela inquisição, um rapazinho chorava enquanto era chicoteado como um animal. Um dos algozes foi instruído pelo sacerdote do Santo Ofício a dialogar com ele, enquanto o outro algoz parava para descansar do serviço.

                     - Então rapazinho? Está pronto para confessar teus pecados?

                     - Sim... Senhor...

                     - Confessa ser um adorador de satã?

                     - Sim... Senhor...

                     - Confessa que seu amo, Dom Juan del Valle era o mago negro de sua aldeia?

                     - Sim... Senhor...

                     - Confessa que Clariana de Navarro realizava rituais pagãos de fertilidade, com imolação de oferendas?

                     - Sim... Senhor...

                     O carrasco encapuzado que fazia o interrogatório deu-se por satisfeito. Olhou para o sacerdote inquisidor e fêz um gesto com a mão, que queria dizer "posso soltá-lo?".

                     - Antes de liberar esse servo de bruxos e bruxas, quebrem-lhe os dedos, para que se lembre que vivia em pecado.

                     - Ah... nós já fizemos isso reverendo.

                     - Mas já? Sem esperar pela minha ordem?

                     - Havia muita gente para cuidarmos, como já sabíamos os procedimentos, nós o fizemos rapidamente, para o serviço não atrasar.

                     - Eu é quem decido o que será feito ou não, e não vós. Entendestes? Vós sois só o instrumento. Quem decide quem sofre, e qual a pena, somos nós, a igreja. E se vós não acatardes minha decisão, vou entender como uma afronta ao Santo Ofício. Eu me fiz claro?

                     - Sim Senhor, Dom Villagrán.

                     - Assim é melhor. Podem soltar esse vassalo das trevas, e que o altíssimo tenha piedade de sua alma.

                     O carrasco soltou o rapazinho moreno, e este foi ao chão, arfante e choroso. Alguns empregados do Santo Ofício o agarraram pelos braços, e saíram arrastando-o pelo chão imundo e lodoso, como se fora um fardo de carga. Levaram-no para uma câmara anexa, um pouco mais limpa. Havia uma velha empregada lá, cozinhando em um fogão à lenha. Ela parou de mexer seu caldeirão para olhar de relance para o amontoado de roupas sujas, sangue e carnes feridas e fedidas, que outrora fora um adolescente sorridente. Ela surpreendeu-se por ver que ele respirava. Afastou-se do fogão e pegou uma vasilha com água. Abaixou-se até sentar-se no chão. Puxou o rosto do rapaz e encostou a vasilha com água em seus lábios. Esperou pacientemente que ele bebesse, lentamente, pois seus lábios sangravam.

                     - Beba. Comece a melhorar. Tu fôste poupado. Isso é uma coisa muito rara. Tu tens que sair daqui agora. Saia dessa aldeia e nunca mais volte. - A mulher falava-lhe em voz baixa, como quem conta um segredo.

                     Javierito sorveu toda a água que pôde. Fêz um esforço sobre humano para ficar de pé e andar. Sentia dores e estava tonto, mas algo não saía de sua cabeça: o interrogatório final. Ele havia sido questionado sobre coisas que nunca ouvira falar, e que aparentemente produziam grande aversão nos religiosos da inquisição. Ele mentira, é verdade, mas aprendera a custa de muito sofrimento, que deveria dizer sim a tudo. Ele vira muitas pessoas da vila morrerem, porque tentavam responder a verdade, que ninguém praticava bruxaria na aldeia.

                     À noite, naquele mesmo dia, Javierito foi posto na rua. Ele cambaleava e tentava cobrir suas partes vergonhosas com os trapos que sobraram de suas roupas. Ninguém veio esperá-lo, nenhuma face amiga virou-se para ajudá-lo. Muito pelo contrário. Parecia que ele havia sido maculado, corrompido. Ninguém se aproximava dele, e o evitavam como se fora um leproso. Era duplamente maldito. Por ter sido preso, e por ter sido solto. Ele procurou pela casa de Dom Juan del Valle, mas havia dois soldados vigiando a entrada da propriedade. Procurou pela casa de sua família, mas lá não havia viva alma. Nem sua velha avó cega havia permanecido no seu lar. Procurou por objetos pessoais, mas percebeu que não havia mais nada, como se houvessem se mudado. Sem ele. "Ficaram com medo de serem presos também", ele pensou.

                     Ele permaneceu em sua velha casa somente o tempo suficiente para melhorar de suas feridas. Então resolveu seguir o conselho da criada dos carrascos.

                     Enquanto isso, Catarina já estava mais forte. Ela pensou muito no que iria fazer. Aproveitou as antigas roupas deixadas pra trás pela família de Miguel. Cortou o sedoso e longo cabelo. enfiou na cabeça um barrete que era parte da indumentária masculina naqueles dias. Foi a sua casa travestida com roupas de Miguel. Temia ser reconhecida e presa, pois com certeza, o passado de sua mãe em Santa Lucía já devia ser conhecido, e este teria sido o estopim para o terror que se instalou em sua aldeia. Ao chegar lá, era como se o tempo não tivesse passado. Todos os velhos móveis da sua infância, suas roupas de festa, seus pertences pessoais, as panelas de sua mãe, suas mantas tradicionais, cheias de tramas ricamente bordadas... Catarina desatou a chorar de saudades. "Mamãe, onde tu estás?" Ela pensou em voz alta. Não houve resposta. Catarina limpou o rosto e se preparou para sair nas ruas.

                      Ela andou pelos caminhos antigos de sua velha aldeia. As poucas pessoas que viu nas ruas e nas casas, andavam tão amedrontadas, que nem paravam para conversar. Assemelhavam-se a ratos que correm rapidamente com medo do gato. O medo era tão intenso, que era possível sentir seu cheiro no ar. Subitamente alguém segurou no seu ombro. Catarina gelou. Pensou que a melhor maneira de escapar era abaixando-se e arremessando contra o estômago do homem, como se forsse um animal selvagem. Mas antes que pusesse seu plano em prática, ela ouviu uma voz conhecida.

                   - Eu acho que te conheço.

                   - Javierito!

                   Antes que o outro pudesse antecipar o que iria acontecer, Catarina enlaçou-o pelo pescoço e o abraçou apertado. Ela nada falou, apenas chorava.

                   - Será que tu és quem eu penso?

                   - Sim, sou eu mesma, mas não diga o meu nome. Que bom te ver novamente. Eu vi quando te prenderam... - Catarina começou a chorar novamente.

                   - Tudo bem, já passou. Não chore mais.

                   - Nada passou. A inquisição ainda está aqui. Todos estão apavorados. Eu procuro minha mãe, tu a viste?

                   - ...

                   - Minha mãe, Clariana de Navarro. Tu sabes onde ela está? Sabes se foi presa?

                   - Catarina... Vamos para um lugar seguro, onde a inquisição ou um dedo-duro não nos possam ver.

                   Javierito saiu puxando Catarina pela mão, e a levou a uma velha casa abandonada, cujos donos estavam mortos nas masmorras da inquisição. Ele procurou uma cadeira artesanal, feita pelo próprio dono da casa, fêz Catarina sentar-se nela. Então prostrou-se de joelhos diante dela. Ele parecia tão nervoso e sofredor, que Catarina pressentiu uma notícia ruim. Seu coração acelerou e ela olhava alucinada para Javierito, numa interrogação muda.

                    - Catarina, tua mãe... ela foi presa. Eu a vi algumas vezes, quando a torturavam.

                    Catarina soltou um grito, abafado com as duas mãos. Seus olhos transbordaram em lágrimas, mas ela fêz força para não falar, olhando fixamente para Javierito, como a pedir que continuasse.

                    - Catarina... tua mãe não aguentou... ela morreu.

                    As luzes se apagaram para Catarina. Pareceu-lhe que o céu azul foi tomado de trevas, e que o chão havia desabado formando imensa cratera, que a tragou para as entranhas do inferno. Ao longe ela escutou uma risada diabólica. Catarina caiu da cadeira desfalecida.
                    


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