Andere Ich escrita por Blumenkranz


Capítulo 5
Adler




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Ela foi se aproximando de mim de forma resoluta e vagarosa, esperando que eu lhe desse alguma explicação ou satisfação. A silhueta da mulher estava cada vez mais perto de mim e eu não conseguia expressar nenhuma reação perante ela. Todos os dias eu tentava entender o que estava acontecendo comigo e com minha mente, procurava por respostas em minhas poucas lembranças, mas ao ver seu olhar flamejante na minha direção, eu sentia uma estranha impressão de já tê-lo visto.

— Não sei do que está falando. - Eu disse, dando um passo para trás em direção à escada.

Ela inclinou a cabeça para o lado. Tirou do bolso um GPS branco com detalhes em prata e o consultou.

Sorriu em meio a penumbra.

— Pobre órfão. Não se lembra de nada. Nem deve saber que está em uma cidade utópica.

Dito isto, encolheu o bastão e se dirigiu à escada, resoluta.

Num impulso de coragem, me pus entre ela e o caminho, obrigando-a a me olhar cara a cara. A mulher parou sua caminhada e resfolegou, levando uma das mãos à cabeça e hesitando em tirar o capuz.

— Como assim utópica? Do que está falando? Eu não sou órfão, está me confundindo com alguém.

— Sei exatamente do que estou falando. E posso te provar.

Tirou a luva e pôs uma das mãos no meu rosto. O seu toque era macio e quase gentil. Com a mão livre tirou o capuz de forma rápida e eu pude vislumbrar o seu rosto. Ela não era japonesa, seus olhos azuis eram marcantes e profundos, seus cílios longos, grossos e curvados, davam a impressão que conseguia enxergar além das minhas emoções. Seu nariz, estreito e baixo, fazia um conjunto com uma boca rosada e com curvatura bem definida. Seus cabelos também azuis e levemente ondulados desciam graciosamente pelas suas costas, e serpenteavam além da cintura. Parecia um anjo.

Não tive muito tempo de apreciar aquela bela visão. Segundos depois eu comecei a sentir uma forte descarga elétrica saindo do meu peito e se espalhando por todo o meu corpo. Toda aquela energia parecia sair de sua mão, que de repente parecia insuportavelmente abrasadora. Meus olhos falhavam e meus membros não me obedeciam. Não aguentando os olhos pesados, cerrei-os e instantes depois me arrependi de tê-los feito. Dentro de minha cabeça pesada, imagens surgiam. Estas não eram semelhantes as que eu havia visto na universidade. Eram terrivelmente piores, e não faziam referencia apenas a mim.

Eu via partes do mundo devastadas pela guerra, fome, doenças e por um evento que provavelmente seria o mais importante para a extinção das espécies. Pessoas corriam desesperadas pelas ruas ao contemplar o céu rubro coberto de enormes rochas flamejantes. Crianças sem os pais chorando inconsoláveis. Jovens casais correndo como loucos procurando inutilmente por um abrigo contra a chuva de meteoros. Casas eram varridas do mapa pelos tufões e furacões. Terremotos arrasando cidades e países inteiros. Tempestades de areia enterrando bairros como se fosse nada. A poluição do ar destruindo pontos gigantescos da camada de ozônio. A destruição em massa do planeta deixou apenas alguns lugares intocados. E depois de uma epidemia que destruiu os neurônios dos desafortunados que contraiam a doença, o estados sobreviventes de toda esta desgraça entraram em guerra pelos escassos recursos que sobraram.

Quando toda a chuva de cenas aterrorizantes terminou, uma cortina negra estendeu-se em minha mente, e eu abri os olhos.

— Seu país, mesmo sendo o maior polo industrial de tecnologia do planeta, foi o primeiro a ser destruído. Mas os japoneses sabiam que seu lar seria submerso pelo oceano e tomaram medidas preventivas. Quando tudo terminasse, esta terra se ergueria do mar e todos recomeçariam suas vidas. - Disse a moça.

Analisei o que havia visto e o que ela me falou, pensativo, e não sabia se deveria acreditar. Permaneci imóvel enquanto a ouvia, e minha mãe ainda estava deitada no chão, ouvindo a conversa e tentando tampar os ouvidos de algum ruído imperceptível.

— Agora, o seu caso... Já é diferente. Mas não te devo satisfações. Já compartilhei de minhas memórias com você. Agora deixe-me passar, preciso do meu transmissor pois, como você viu, tenho mais o que fazer do que ficar contando historinhas para um garoto desocupado.

A mulher me empurrou para fora de seu caminho e subiu as escadas rapidamente. Não movi um dedo para impedi-la. Me sentei no último degrau da escada, atônito e confuso, enquanto via minha mãe vagarosamente se levantar do chão, esfregando os olhos e afastando os cacos de vidro que se encontravam ali. Ao me ver, lágrimas escorreram de seus olhos, lágrimas estas que doeria em qualquer pessoa que não soubesse o que havia acontecido naquela sala. Ouvi o ruído da porta do meu quarto sendo fechada, e passos suaves de alguém a descer as escadas. A mulher passou por mim sem pestanejar, pegou a sua capa que estava jogada em minha frente, e um pingente escapou de seu pescoço. Parecia um brasão cor de prata, e dentro dele estava escrito “Adler”. Afastei os olhos para o outro lado, um misto de vergonha e dúvida.

— Qual é o seu nome? - perguntei, quando ela estava prestes a desaparecer na revoada da noite.

Ela parou por um momento e olhou para o lado, de costas para mim.

— Descubra sozinho, Kazuki Meihiro.

***

— Não entendi. Por que quer usar meu laboratório?

— Convenhamos, Zack, que você não pode chamar aquilo de laboratório. Quero pesquisar umas coisas na internet, apenas.

— Eu não sei se temos internet... Está passando nos noticiários todos os dias das interferências da nave experimental que está chegando da lua hoje. Há uma inconsistência na rede.

— Não estou sabendo disso – Eu disse, franzindo o cenho e estreitando os olhos.

— Talvez por que estava meio ocupado cuidando da gata negra que te visitou ontem a noite. O tempo que fiquei na observação me deixou bem ocioso para que pudesse colocar as notícias em dia.

— É sobre isso mesmo que quero pesquisar... Tinha uma coisa escrita em um pingente que ela usava.

— Interessante, como conseguiu ver um pingente no escuro?

— Não estava tão escuro. A luz da lua estava forte e o poste da rua ajudou também. Tanto que eu pude ver seu rosto uma hora.

— Isso sim, é uma boa noticia! Venha cá meu amigo, vamos descobrir quem é a sua admiradora durona e não-tão-secreta.

Zack estava com os dois pés em cima de uma mesa que havia na frente do sofá onde ele estava praticamente jogado. Estávamos em sua casa, sua mãe havia ido para um congresso de meia idade e voltaria no dia seguinte. Ele não falava muito de seu pai. Provavelmente deveria ter morrido na guerra de 2053. O jovem se levantou com um sorriso satisfeito no rosto, o que era bastante comum a ele, e dirigiu-se a um cômodo mais afastado da casa. Era segunda-feira e as aulas tinham acabado, mas ele insistia em continuar usando trajes pesados demais para a ocasião. Arrisquei um sorriso torto quando ele concordou em me ajudar na minha pequena investigaçãozinha. A TV continuava anunciando a chegada da família que estava em uma missão fora do planeta, por 20 anos.

— Espertos. Passaram vinte anos na lua e agora estão voltando. Devem estar mais amarelos do que os pães de milho que minha avó fazia.

— Zack, o que você sabe sobre acontecimentos mundiais dos últimos anos? - Perguntei, parando no meio do corredor.

Ele estava com um doce na boca e o tirou, parando a caminhada e olhando para mim.

— Não houve nada de diferente desde a guerra entre EUA e Alemanha. Você deve saber isso.

— Não sei. Ontem vi coisas estranhas a respeito do mundo, coisas inacreditáveis.

— Igual as experiencias secretas que você viu na sua mente na universidade? Certo.

— Não espero que acredite em mim. Quando eu obtiver minhas respostas eu direi “eu te disse”.

Ele revirou os olhos e voltou a andar.

— Aguardo ansiosamente por este dia.

Ele tinha um home office bem arrumado até. Do teto pendia um suporte branco para dois monitores de 35' de plasma , que ficavam inclinados de forma que o que passasse por ele fosse visto em qualquer parte do cômodo. Haviam três armários com livros cenográficos, e em frente às estantes havia um tablet com uma cadeira bege estofada – os livros nas estantes eram como botões, e quando clicassem neles, o livro automaticamente seria carregado para o tablet fixo na mini escrivaninha. Do outro lado da sala havia um pequeno closet com luz escura onde ele fazia suas experiências, sabe Deus de que tipo. Do lado da porta havia uma pequena janelinha onde podia-se ver outro pequeno laboratório de mecânica. Hiro, a nova invenção dele, estava em cima de uma mesa, com o núcleo exposto. Provavelmente ele estava mexendo em algo quando eu fui visitá-lo.

— Sente-se e divirta-se. Pensei melhor e não estou com vontade de pesquisar coisas sem sentido. - Disse ele, dando de ombros e pulando em um sofá para assistir TV.

Passei a mão pelos meus cabelos, enrolando o indicador em uma mecha que havia escorregado para perto dos meus olhos, e respirando fundo, me sentei em frente do computador.

Ok, por onde vamos começar...” - pensei comigo.

Peguei meu celular e olhei o bloco de notas. Lá haviam dois nomes. Mizuno e Adler. Resolvi olhar o primeiro, mas não obtive nenhum resultado satisfatório, existiam mais de mil pessoas com o mesmo nome. Então peguei o segundo e joguei no Google. Apareceram algumas escolas de psicologia e um homem que viveu nos tempos remotos de 1900, um site de eventos, umas imagens de águias, um famoso e outras coisas fúteis. Estava quase para fechar a janela quando me deparei com um nome familiar.

Adler é uma empresa não governamental de ciência e biotecnologia que teve sua ascensão na pré-guerra, criada em 2047 por Kazuo Meihiro, e que foi desaprovada e desativada pelo governo devidos aos experimentos que eram realizados em seus laboratórios. Na cidade de...”

Meu coração disparou. Kazuo Meihiro era o nome do meu pai.


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