Andere Ich escrita por Blumenkranz


Capítulo 4
O Roubo




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Lily soltou meu rosto lentamente enquanto sorria de forma vaga para mim. Ela sabia que eu estava louco para lhe fazer milhões de perguntas mas estava receoso. Eu realmente tinha aversão ao jeito e forma de pensar da garota e ela poderia muito bem estar blefando. Desviei o olhar para um canto qualquer da sala e ouvi a gargalhada alta de Zack.

— Tudo bem cara. Não vou ficar chateado ao ver você se pegando com uma garota junto ao meu leito de hospital. - Disse ele entre risos.

Minha mãe virou para trás e se deparou com uma Lily enrubescida e um Kazuki sem graça. Franziu as sobrancelhas, e chegando perto de Zack, sussurrou algo em seu ouvido e veio na minha direção.

— Temos que conversar, querido. - Disse ela, de forma preocupada. Percebi uma sutil troca de olhares ofensivos entre as duas mulheres que estavam ali. Pelo visto minha mãe gostava da Lily tanto quanto eu. - Vamos para casa.

Ao sair da sala minha mãe pegou o meu braço como se estivesse com medo de que algo acontecesse comigo. Eu não havia falado nada sobre as visões para ninguém e não queria – ou não sabia – como contar. De qualquer forma eu não era tão intimo assim de quem me criou e talvez ela nem se importasse muito.

— Como ela era, filho?

— Ah... oi? - Meu coração disparou. Como ela sabia da garota de azul?

— A médica que te atendeu, como ela é?

— Hum... Era alta e ruiva. Eu sai do consultório bem rápido, não deu tempo de reparar muito. - Olhei para o teto, me sentindo um idiota. É claro que ela não sabia de nenhuma garota estranha com roupas diferentes.

— Chegou a conversar com a moça? - Minha mãe olhava para mim com olhos aflitos.

— Trocamos algumas palavras... Por que?

— Você percebeu algum... Sotaque diferente?

— Não mãe. Eu tinha acabado de acordar e só queria sair dali...

Minha mãe respirou fundo, lenta e ruidosamente.

— Não sei se é uma boa ideia você continuar indo para a escola, Kazuki.

— O que?

— Ao menos até meados do ano que vem... Eu estou preocupada com você.

— Como assim? O que está acontecendo?

— Ah querido, eu não sei como explicar agora. Até eu entender o que está havendo. Não quero te deixar estressado, você não pode passar por situações assim novamente.

— Que situações?

— Você sabe, de ter convulsões no meio do corredor e parar numa enfermaria e dormir por um dia inteiro.

— Eu dormi por um dia inteiro? - Eu disse, com os olhos arregalados.

— … Isso já aconteceu quando você era mais novo. No dia do acidente que sofremos. Você passou mal e veio até aqui aos gritos e lagrimas. Não sabíamos o que fazer.

De novo aquilo de acidente.

— Certo… Mas o que a médica tem a ver com isso?

Ela hesitou por um momento e mordeu os lábios levemente, como eu fazia quando precisava escolher as palavras certas para contar algo grave sem magoar o meu ouvinte.

— Da primeira vez, Kazuki... A médica que te atendeu não estava registrada em lugar nenhum do Japão.

— Como é...?

— Eles te levaram para o hospital e você ficou lá com médicos desconhecidos. Não sabemos o que aconteceu naquela sala, eu só soube depois que me recuperei. Isso foi depois de quase dois dias.

— E como ela era? O que ela fez comigo? Por que eu tive essas visões? E por que eu nunca me lembro de nada do que aconteceu nesse dia tão ruim que você sempre evita de falar? Mãe?

— Visões...? Do que está falando?

Droga, falei demais. A esta altura eu não estava mais com vontade de contar para a minha mãe o que tinha acontecido de verdade. Aquilo não foi uma convulsão nem nada do gênero. Era estranho como as filmagens não mostraram isso. Tudo que viram foi um garoto tremendo no chão de forma rude, uma menina pequena desesperada para ajudar, e um Zack tropeçando nos degraus da escada.

Qualquer coisa que eu dissesse não faria sentido para ninguém, eu não obteria as respostas que eu precisava. A pessoa que poderia me sanar as dúvidas estava fora de meu alcance de tal forma que eu não sabia nem seu nome, ou sua idade, ou onde morava, ou quaisquer outras informações. Talvez devesse guardar aquilo apenas para mim até minha mente espairecer e eu ter alguma ideia do que fazer. Ou pior, talvez a garota fosse fruto da minha imaginação e eu nunca a tenha visto de verdade.

Mas isso não explicaria o fato de o Zack também tê-la visto.

— Kazuki? - Minha mãe olhava para mim inquieta. - De que visões você está falando?

— Ah.. Não é nada. Deve ser coisa de quando eu passei mal mesmo. - Arrisquei um sorriso mas ele saiu mais amargo do que eu previa.

A senhora Meihiro não fazia questão de esconder o que a preocupava. Olhava para os lados como se procurasse algum perseguidor e sua postura revelava um desconforto de pessoas que preveem conflitos iminentes. Ela começou a andar mais depressa, e me arrastou junto com ela até o estacionamento da faculdade.

— A médica... Quanto tempo ela disse que você ficou desacordado? - Perguntou ela.

— Não me recordo muito bem, acho que duas horas. - Eu disse de forma automática.

— Não... você ficou desacordado um dia inteiro... E de novo eles te colocaram lá... Eu recebi uma mensagem sua no dia anterior de noite dizendo que você iria dormir na casa do Zack.

— Eu não mandei mensagem nenhuma. Nem sei onde está meu celular. Deve ter sido engano.

— Filho eu posso ser ausente e até um pouco desnaturada mas eu não confundiria sua voz.

— Mãe, por favor. Eu juro que...

— Não estou te acusando Kazuki. Isso tudo é muito estranho. Eu não sei o que pensar, apenas agora preciso te proteger, eu não sei o que fizeram com você. Da mesma forma que não sei o que fizeram a três anos atrás.

Minha mãe passou o dedo pelo identificador de digitais do carro cinza escuro que ela tinha. Ele estava velho e empoeirado, pois ela quase nunca o usava. Quando precisava sair, ela ligava para as amigas e as mesmas a buscavam em casa e elas iriam para sabe-se lá onde.

Entramos no carro e eu abaixei o vidro do lado do passageiro, olhando para a rua. Eu tinha a oportunidade de confrontá-la ali mesmo, mas não via nenhuma utilidade nisso. Ela poderia muito bem esconder as coisas de mim como fez a vida inteira. Apoiei o cotovelo na janela e olhei em volta. A universidade estava bem vazia naquele dia. Talvez fosse verdade que eu fiquei apagado por um dia inteiro, por que o ambiente estava com “cara” de sábado.

O carro começou a dar marcha ré, saindo da universidade, e antes de recolher as rodas para entrar na rodovia, minha mãe freou para pegar alguma coisa no porta-luvas. Ela olhou para mim e viu meu olhar pensativo para fora da janela.

— Desculpe, filho. Eu não tenho a intenção de te deixar preocupado, só quero sua segurança. Não sei mesmo o que está acontecendo e preciso proteger você...

— Tudo bem mãe. Eu não vou sair de casa nas férias e... O máximo que farei vai ser visitar o Zack uma hora ou outra, tudo bem?

Ela sorriu, aliviada.

— Tudo bem querido, mas tome cuidado. - E voltou a prestar atenção no volante.

Não posso te perder novamente”

Olhei para ela. Estava dirigindo de forma resoluta e distraída, com a feição um pouco menos preocupada.

— Como assim novamente?

— Oi? - Indagou, curiosa.

— Isso que você disse, “não posso te perder de novo”. Como assim?

Nesse momento ela entrou em um túnel curto que daria na avenida que ficava na altura da rua. As luzes estavam estranhamente apagadas e ela aumentou a velocidade do carro, e por algum outro estranho motivo o lugar estava deserto. Eu não enxergava nem um palmo dentro do carro, apenas o chão à frente do veículo, e o final do túnel amarelado no horizonte. Foi então que resolvi olhar para trás. Não consigo imaginar o motivo de ter feito isso, mas era melhor que não tivesse feito. Em um dos cantos da passagem havia uma silhueta esguia observando o movimento da rua. Ela estava com uma espécie de bússola holográfica nas mãos e isso permitia que um relance de seu rosto fosse visto.

— Mãe, pare o carro agora! - Eu gritei, atônito. A garota de azul estava ali – Eu não sabia como chamá-la, eu sempre achei esse nome bastante imbecil. Bem a minha cara mesmo – E eu não a deixaria fugir novamente.

— O que é isso Kazuki, Está louco? Estamos no meio de uma via expressa. Eu não posso parar aqui!!

Num lapso de segundo, eu não pensei do que poderia acontecer e abri a porta do carro. Nesse instante minha mãe freou bruscamente e a luz vermelha do farol traseiro acendeu, iluminando a parte de trás do túnel. A garota parou o que estava fazendo e olhou para frente. Eu abri o restante da porta e tropecei para fora, a única coisa que me guiava era a luz fraca da bussola que ela segurava. Eu sentia minha pulsação em cada canto do corpo enquanto corria em direção a ela e não tinha ideia do que poderia acontecer e nem sabia o que falaria com ela quando a pegasse, mas eu definitivamente não a deixaria fugir de novo. Eu ouvia a voz da minha mãe ao longe enquanto ela gritava desesperada para saber o que estava acontecendo.

Ao perceber quem estava correndo, a menina simplesmente deixou a bussola no chão e desapareceu na penumbra do túnel. Vi uma luz sendo projetada do lado oposto ao meu e percebi que estava bem no meio da rua. Saí da avenida e me apoiei em uma das grades protetoras que haviam na calçada, ofegante e decepcionado.

— Onde está você, sua maldita!? - Eu gritei, com uma raiva incontrolável dentro de mim.

Olhei varias vezes em volta do lugar da forma mais observadora possível e não vi nem o rastro dela. Eu não acreditava nos meus olhos. Ou eles me enganavam teatralmente ou eu estava ficando louco. Coloquei as duas mãos na nuca e dei meia volta para ver o objeto a garota deixara cair na fuga.

— Kazuki Meihiro, o que diabos está acontecendo aqui?

Minha mãe havia dado meia volta e estava com o carro do meu lado, com as rodas para fora esperando uma resposta convincente vinda de mim. Parecia ao mesmo tempo desapontada e confusa, colocava o braço para fora da janela e olhava em volta de mim. Eu me abaixei para pegar o objeto dourado, que era redondo e brilhante. Percebi que não se tratava de uma bussola. Nunca havia visto algo como aquilo e não podia classificá-lo. Na tampa havia uma numeração estranha com algumas letras e inscrições. Estava escrito “For 4B634F, in memoriam”. Peguei o objeto e fui em direção ao carro. Permaneci imóvel, imerso em pensamentos enquanto minha mãe me dava um sermão sobre algo que dizia respeito à minha segurança.

Ao chegarmos em casa, passei sorrateiramente na cozinha para pegar alguma comida escondido de minha mãe, e subi rápido para o meu quarto. Abri e revirei todas as gavetas de bugigangas que haviam no lugar até encontrar uma chave mestra a laser, sentei com as pernas cruzadas na cama e comecei a revirar o objeto estranho que a menina havia deixado cair. Observando mais de perto, não parecia tanto um pedaço de metal pesado com algumas inscrições. A forma arredondada na parte superior e reta na parte inferior lembrava um besouro prestes a alçar voo. Eu sentia um estranho conforto ao manusear aquilo, como uma criança que sabe o que vai ganhar no natal e age como se não soubesse de nada quando o recebe. Na alça que prendia a corrente de encaixar na calça, havia uma cabeça de um guepardo, cujos olhos verde-esmeralda resplandeciam à luz do fim da tarde. A corrente era cor de prata, simples, e no meio do circulo superior havia uma linha divisória.

Deve ser onde se separam em duas partes” pensei.

Comecei a forçar a linha com esperanças de que o material cedesse e revelasse alguma coisa conspiratória que fizesse com que eu não me sentisse paranoico a respeito de tudo que havia acontecido nos dois últimos dias. Na parte inferior havia uma espécie de sensor que provavelmente servia para identificar o usuário que tentasse abrir o suposto relógio de bolso. Meu dedo indicador automaticamente passou pela fresta que se mostrava e para minha surpresa, espanto e misto de todos os outros sentimentos que eu poderia ter naquele momento, a parte superior do “relógio” se separou em dois hemisférios, mostrando uma pequena tela azulada na parte interior. Com a cabeça de guepardo na ponta superior e aqueles dois fechos de metal abertos, o aparelho parecia mais assustador, dando a impressão de um besouro com cabeça de felino querendo voar para a liberdade. Depois de aberto, as duas asas se esconderam e um holograma subiu pela pequena tela, iluminando todo o meu quarto com uma luz cálida azulada. Surgiram no ar algumas opções, como se fosse um menu de algum tipo de mini computador. Dentre as opções que se ergueram, as que mais me chamaram atenção foram “Reportar à Adler” e “Desbloquear perfil”. Tentei a segunda opção e uma luz vermelha começou a piscar na tela. “Você não possui as permissões necessárias para desbloquear o próprio perfil. Entre em contato com seus superiores para tal ação.”

Claro que não. Não poderia ser tão fácil. Perderia a graça.” - pensei comigo, enquanto tirava a perna dormente de cima da cama para trocar de posição.

Eu ainda não tinha o interesse de estagnar minha busca por novidades naquele aparelho, mas algo me fez parar. Ouvi vozes vindas do andar de baixo e resolvi conferir. Guardei o transmissor (apelidei o aparelho assim, pois achei melhor) em um compartimento que havia debaixo do meu colchão e desci as escadas de mansinho para escutar a conversa.

Ele não está aqui, me desculpe” - dizia uma voz feminina, forte e paciente. Era a voz da minha mãe.

Entendo. O que fez com a visitante que chegaria em duas semanas?” - indagou o interlocutor, que por sua vez possuía uma voz grave e de tom autoritário.

Eu... é... Não respondi ao sinal.” - Ela hesitou.

Sabe o que significa desobedecer ordens diretas? Você deveria ter entregue o garoto juntamente com a tutora responsável pelo seu despertar” - Retrucou a voz, mais ameaçadora.

Me desculpe Mizuno, eu realmente não estou preparada para entregá-lo na situação que nos encontramos. Ele voltou a ter as visões e eu tenho medo que ele se lembre de tudo e não me aceite mais. Eu já perdi o pai dele e...

Eu não me importo com seus sentimentos, Sra. Meihiro. Se o você-sabe-quem o encontrar primeiro que nós, estará tudo perdido. Seria bom você pensar com sabedoria em seus atos, ou colocará toda a organização cientifica do planeta em apuros.” - Concluiu o homem.

Minhas sinceras desculpas, Senhor.” - Disse minha mãe com voz sumida. Estava claro que queria chorar.

Não posso simplesmente aceitar suas desculpas, Kate. Você tem duas semanas para inventar uma história para o seu... filho, e sair do país. Já que não quer entregá-lo, darei esta chance a você. Mas se eu souber que ficou aqui, eu mesmo virei atrás de você e levarei o garoto para o seu despertar. Existem coisas que podemos adiar na fuga, mas um dia elas chegam à tona e você se dá conta de que tudo saiu do seu controle.” - Concluiu a voz, e eu ouvi uma porta ser fechada depois disso.

Forcei a porta para abrí-la mas a mesma estava bloqueada. Conclui que minha mãe esperava aquela visita e me trancou no andar de cima para que eu não visse quem era o seu convidado.

Fiquei por dez minutos sentado na escada tentando processar o que havia ouvido. Por que o homem hesitou ao dizer que ela era minha mãe? Como assim “entregar o garoto”? Como assim ela estava tão submissa a este homem, e por que eu estava sendo procurado? Um misto de medo e revolta cresceu dentro de mim e eu não sabia se ficava ali ou se saia correndo de casa para tomar um ar. Resolvi dar a volta no meu quarto e pular o muro de cara para entrar pela porta da frente. Me arranhei na oliveira que havia no quintal e dei de cara com um carro virando a esquina e recolhendo as rodas. Pensei em correr atrás dele mas eu não tinha nenhum meio de transporte que pudesse fazer uma perseguição.

Meus pensamentos sobre aquela visita misteriosa não abandonavam minha cabeça. Mas o que eu ouvi foi o suficiente. Eu tinha um nome. E percorreria até os confins da internet para saber quem era esse Mizuno.

Passei a digital no sensor da porta da sala e ela se abriu vagarosamente, e me mostrou a imagem da sala de estar com uma TV embutida na parede e uma pequena estante de livros digitais no canto esquerdo. O tapete que ficava no centro do cômodo estava virado ao contrario e eu vi minha mãe deitada no sofá com os olhos fechados e com as mãos na cabeça, de forma pensativa.

Cheguei perto dela, ajeitei o tapete e me sentei no chão, ao lado. Quando ela percebeu que eu estava perto, se sentou e olhou para mim com olhos cansados.

— Filho... Eu gostaria de te dizer uma coisa...

Eu já imaginava o que iria ouvir por ter escutado a conversa dela, mas nada aconteceu como eu previa. Num lapso de segundo, a parede de vidro à prova de terremotos que dividia a sala de estar com a parte da frente da casa se rompeu de alto a baixo e um vulto negro surgiu. Usava um sobretudo azul marinho e um bastão retrátil bilateral, que se estendia até acima de sua cabeça. Não era uma figura muito alta, e eu concluí que fosse uma mulher. Minha mãe olhava atônita para a figura esguia com lágrimas nos olhos. De repente ela se levantou e pulou na frente da criatura ameaçadora e gritou:

— Por favor! Não leve meu bebê!

O intruso parou por um instante a sua caminhada pela sala e abaixou a cabeça para a mulher chorosa aos seus pés. Não pareceu hesitar quando a golpeou com o bastão e a jogou do outro lado da sala, desacordada. Caminhou até mim e se colocou entre a luz da rua e eu, de modo que eu não podia ver o seu rosto.

— Ei, garoto. Você tem algo que me pertence.


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