Castiel

Visão de Castiel

Comemos as nozes em silêncio. Enchi a garrafinha no riacho e quando fui ver já estava de noite. Junto das estrelas, veio o frio. O mesmo frio da noite passada. Pelo menos sem chuva por hoje.

Montei uma fogueira com alguns galhos enquanto Kamile acabava de quebrar o resto das nozes que seria nosso café da manhã. Ajudei-a a sair da pedra gelada e encostar na maior árvore que achei por perto. Tirei minha jaqueta e entreguei-a, ela vestiu por cima da regata. Porém quando fui me afastar e me acomodar em qualquer outra árvore, ela segurou meu pulso. Olhei para baixo e consegui ler seus pensamentos somente pelo tom de âmbar que preenchia-los olhos naquele momento. Sentei ao lado dela e ela se aninhou no meu colo como antigamente. Beijei-lhe o topo da cabeça. Deveria estar cansada e com dor.

Já nem me importava com essa tal prova. Só queria ir para casa. Com ela...

Acordei primeiro novamente. Mas dessa vez não quis sair levantar. Encostados na árvore, sua cabeça no meu peito, uma das minhas mãos na sua cintura e a outra entrelaçada com a dela. Tudo estava perfeito.

Ah, claro! Tirando pelo fato de estarmos perdidos na floresta e brigados. Tem também o detalhe da comida escassa. Só detalhes.

Suspirei fundo. O que a fez se agitar e se afastar.

Talvez eu não tivesse sido o primeiro a acordar finalmente. Ela se virou com um ar de desculpas que só eu entenderia e começou a se levantar. Era bem a cara dela! Como quando ficava doente ou gripada, ou até mesmo naquele verão que ela quebrou o braço... Sempre não querendo ficar parada e não aceitando estar limitada. Puxei-a de volta. Ela me olhou com uma cara “Tá bom, tá bom...” Deitei-a no meu colo e fiquei acariciando sua cabeça.

Quais opções tínhamos agora? Esperar, no fim da prova, a ronda da diretora pelos alunos perdidos e ir para casa.

Olhei pra baixo, Kamile olhava para gaivotas no céu. Eu estava a entendo. Ela não gostava de floresta, pegou uma dupla como eu, deveria estar cansada por andar tanto e com o tornozelo horrível. Compreendia o motivo que a fez pedir para dormir comigo, as desculpas e tudo. Eu definitivamente a entendia.

Exceto no assunto Lysandre e como ela ainda não tinha assassinado Anne e Debrah. Lysandre... Tê-la aqui comigo era como se ele não existisse. Seria perfeito se ele não existisse. Mas na minha mente, precisava deixar bem claro que ela só estava ali comigo por ironia do destino. Que voltando pra casa o pesadelo assombraria novamente e tudo voltaria a ser como antes. Então aquilo não influenciava a minha decisão de...  

Kamile

Visão de Kamile

-O que nos levou a isso?

-Hein? –Ele perguntou ainda meio perdido em seus pensamentos.

-Acho que se fosse antigamente não teríamos dado a sorte de cair na mesma dupla.

-Sorte? –Estremeci. Será que ele estava odiando isso? –Sim, uma tremenda sorte. –Ele só emendou depois de meu coração quase sair pela boca.

-Você não acha banal pensar que tudo isso, praticamente, aconteceu em consequência de um beijo. –Falei com receio.

-Por um beijo? Tem certeza?

Ele estava se referindo a parte que eu o trai, menti para ele e claro, a cereja do bolo: com quem ele mais odiava. E eu fiz tudo isso com um beijo. Impressionante! E não conseguia nem caminhar em um terreno desregular. Ai! Me lembrar disso fazia o tornozelo doer mais, porém eu não reclamava em voz alta. Só pioraria as coisas.

-Você realmente vê tudo “aquilo” como só um beijo? –Ele perguntou com ar de pergunta retórica.

-Eu vejo tudo “aquilo” resumido em um grande fato: a culpa foi minha. –Admiti, talvez pela primeira vez, aquilo em voz alta. 

Ele se calou. Nem discordando nem concordando. Sua mão parou no meio do meu cabelo emaranhado.

-Por quê? –Foi sua única questão.

-Por quê? –Repeti. –Por que nossos destinos estão sempre juntos? Ou por que eu fiz tudo aquilo? Por que eu não consigo te esquecer e nem você de mim? Ou por que estamos aqui nesse exato momento? Por que você está cuidando de mim? O motivo pelo qual você cedeu ontem e dormiu perto de mim? Quem vai saber o porquê de tudo isso. O por que de você e Lys serem tão “amigos”, ou o fato que leva todos nós estarmos aqui na Terra vivendo nossas vidas?! São perguntas, pelas quais não tenho respostas. E até temeria ter. –Discursei.

Foi a vez dele de jogar suas duvidas na minha cara.

-Por que mentiu pra mim? Por que o beijou? Por que amassou nossa história como um rascunho, um papel? Por que sempre tão linda e perfeitinha?! Por que tão inesquecível? Por que tão especial? –As palavras pareciam espinhos pulando garganta a fora. -Por que eu vou fazer o que vou? Por que...

-Pera, o que você vai fazer? –Interrompi.

Ele se calou por um minuto. Quando alguém falou novamente, já não era nenhum de nós dois.

-Finalmente! Os últimos perdidos. –Lys veio acompanhado de Rosa.

-Hãm? –Perguntei. Minha mente ainda estava esperando uma resposta de Castiel. No meio de tantas perguntas... Ele só tinha me dado mais uma!

-Oh! O que aconteceu com o seu tornozelo?! –Rosa resmungou.

-Ela torceu. –Castiel respondeu curto e seco, como ultimamente.

Ainda meio perdida, pouco senti quando Lys me tirou do colo dele. Apesar de preferir que fosse Cast, foi Lysandre que me carregou até o ônibus, até que não estávamos longe.

Antes de perder Castiel de vista, ele me olhou intensamente. Um olhar incompreensível. Uma mistura de ódio e amor. Perguntas e respostas desconsideráveis. Saudade e orgulho. Decisão e indecisão. E o pior: o mistério. O que se passava na cabeça dele nesse exato momento? Eu no colo de Lys enquanto Jade passa alguma erva-cidreira no meu tornozelo. Podia parecer que eu estava “protegida”, “segura”, mas sem ele... Um milhão de pessoas não era o suficiente para me fazer feliz. Nem pra me curar...

Por muito tempo. O tempo. Eu acreditaria que aquela seria minha última lembrança dele.