O Que É Amar? escrita por Hikari


Capítulo 11
Contra o tempo.


Notas iniciais do capítulo

Meus pequenos filhotes! Como vocês estão? Bem? Mal? Bem mal?
Estou profundamente grata por todos que aguardaram, que favoritaram, que comentaram, que me inspiraram e encorajaram a continuar! Amo cada um de vocês, e são minha peça rara para construir minha arquitetura.
Desculpe-me pela demora -- como sempre. Espero que gostem desse capítulo, eu consegui dividir o que tinha escrito em dois, portanto o próximo não vai demorar para sair, pois já está pronto (e é um capítulo pequeno, yay!).
Espero que gostem! Boa leitura. (:



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Tempo presente – Manhattan.

A noite estava inapta para acalmar Percy. Era como se ela houvesse apenas perdido todo o senso de compreensão e vigorosa virtude em confortá-lo, em erguê-lo e consumá-lo em seus braços a fim de trazê-lo a sanidade a qual, conforme os segundos se acumulavam, pareciam estar sendo confrontados e retirados dele em uma única estocada inesperada por sua mente ainda desconcertada com todos os acontecimentos. Estava se desestruturando, desintegrando, desgastando-se. Como todas as rochas as quais, aparentemente, foram exaustivas e incoerentemente coalizadas com o mar constante e incansável, suas ondas agregando-o, envolvendo-o, e por fim, delimitando-o e reduzindo-o a pequeninos cristais de areia. Ele era a rocha, e estava sendo exterminado, amassado, massacrado para refratá-lo em uma partícula insensata e imprecisa de uma alga perturbada e desnorteada.

O vento assobiava e tropejava ao redor de Percy, cercando-o como uma horda de cavalos de batalha, relinchando e insistindo para que se apressasse. O ar estava denso e repleto de um balanço certeiro que poderia derrubá-lo, derrubá-lo com aquele exato golpe vibrante que ainda recalcitrava em seu peito. Algo o incomodava, e aquele incômodo instalava-se em suas costelas como pequeninos seres gingando envolta de risadas debochadas e desdenhosas, reduzindo o fiapo de destemor que ainda conseguir sentir. Era assombroso estar vulnerável daquela maneira, com o céu abastado de eletricidade, com nuvens preponderantes reluzindo nas faíscas que recortavam suas laterais com o romper de raios e lampejar de relâmpagos, a deteriorada névoa cobria as suas cabeças com a tonalidade derradeira de escarlate, quase como um indício de uma guerra civil dos Olimpianos. Percy não conseguia compreender o motivo para tal agitação súbita, e hesitava no pensamento de finalmente entendê-la. Entretanto, os deuses não tinham muita tendência a justificarem-se, tinham? Podiam ter eras e milênios de idade, entretanto comportavam-se como se ainda estivessem em um gigante berçário fumegante com potência elevada de desentendimentos e contusões, com bebês de dez metros de altura, com fraldas e chupetas, atingindo a humanidade como se considerassem-na apenas parte de um torrencial playground.

Percy sacudiu a cabeça, tentando dissipar a imagem que, lentamente, desbotava-se de sua mente. Tudo o que menos precisava no instante era um infante-Zeus de fralda esculpida com esboços de nuvens de tempestade velozes, um raio de borracha e um cabelo desgrenhado e levantado pela própria descarga elétrica que oferecera ao irmão Poseidon que berrava um choro ensurdecedor de alegórico desgosto. O moreno aflou, uma crescente montanha de flamejantes zumbidos que ressoavam em seu ouvido desconcentrando-o. Um trovão retumbou perto o suficiente para o zumbido aumentar de intensidade.

Seu olhar resvalou para as formidáveis massas que continuavam a agrupar-se em brotos acima de sua cabeça, novamente. Estavam mais perto do Olimpo do que anteriormente, e portanto suspeitava que esse era o motivo pelo qual havia a ausência inquietante de monstros perseguindo-os. Uma observação preocupante que simulava um gélido pavor que o acobertava como uma fina camada de neve faria caso estivesse embrenhado em algum monte no inverno.

Uma das principais centelhas que incumbiam-se para concernir Percy em uma espécie de tormenta individual foi o sumiço das estrelas. A tempestade encobrira as veredas das pedras cintilantes e levara-as para a cova onde não permitiriam serem vistas. Percy escoara um sentimento temoroso para dentro de si e o abafara, por ora. Desde quando Silena nascera, ele sempre apontara para as estrelas para energizá-la e animá-la quando esta encontrava-se melancólica. E após algum tempo, tornou-se uma usual forma de Silena compelir o pai para a praia onde ela saltava em suas costas e fazia-o encarar as estrelas que ascendera junto a ela, crescera com ela, e estava presente fitando-a quando ela dera seus primeiros passos para os diversos empecilhos que fora instigada a enfrentar. Não foram fáceis, Percy já avistara-a caída, e ferida, mas todas as vezes quando ele disparava em direção a ela com uma urgência precipitada e apressada, a preocupação trotando em estalidos, ela olhava aos céus serenamente, e encontrava uma estrela prematura reluzindo no vasto espelho de nuvens, a azulada pintura quadriculada. Percy podia escutá-la ainda sussurrando, seus olhos uma maresia pacífica e pacata, expressões abrandadas e irrefutáveis: “Não se preocupe, papai. A mamãe ali em cima disse que está tudo bem. Que está tudo muito bem”.

Certo dia, ouvira-a dizer as mesmas palavras quando quase perdera-a no redemoinho de água congelada que se formara perto do barranco de um lago cristalizado enregelado, uma cratera proveniente de uma rachadura no gelo, fora da área do Acampamento. Ela não era completamente imune aos tortuosos e maciços trôpegos mordazes das águas, como ele era. Ela descendia dele, mas apesar de conter alguns dons, ainda não era totalmente capaz de controlá-los. Quando ele decidira aceitar a proposta que ela afincara-se e estava obstinada em sair triunfante, em levá-la em um passeio, na época do inverno, por Manhattan, quando em trechos irregulares havia monstruosas camadas compactadas de neve, a qual aprofundava-se e afundava até os calcanhares de Percy, e quase ingeria as pernas da pequenina ao caminhar. Eles avançaram até alcançarem uma distância perto o suficiente do acampamento, e longe o bastante para que novas descobertas pudessem ser feitas pela Silena. A filha do filho de Poseidon ainda tinha apenas quatro anos, e ele raramente deixava-se vaguear e perambular para fora dos arredores do acampamento, onde ela poderia estar em segurança e proteção. Havia um pequeno lago em uma extremidade, e Percy, fadigado por ter se empenhado em apostar uma corrida pedida pela pequena, sentara-se em um canto e vasculhava ao redor, em busca de adversários prováveis, porém, pouco depois de planificar o local ele voltou-se para sua criança, que escorregava na superfície glacial do lago congelado. Ele observara-a com um sorriso enviesado e faceiro no rosto, sentindo uma profusão de emoções colidindo-se e integrando-se até adquirirem uma cascateada de uma paternal emoção adornada de orgulho e admiração, um encanto tinindo pelos seus olhos enquanto a garotinha tentava erguer-se, roçando com os dedinhos encobertos por uma luva uma estrutura de apoio, porém titubeando e desabando novamente. O que Percy não havia esperado, foi que o ar drenasse seu espaço em um vácuo e em um tortuoso movimento vertera a correnteza, transmutando dúzias de venti aparentemente não satisfeitos em rugirem sua canção para dois semideuses empoleirados em seu caminho. Percy erguera-se em prontidão um segundo após achegarem-se, empunhando Contracorrente em uma sacada ágil, seus músculos tensionados para a batalha. Entretanto, eles estavam apartando Silena de si, trajando uma barreira que separava sua filha dele próprio. Gritara seu nome, porém a pequena, uma fração de segundos após ter percebido que os invasores eram mais hostis do que imaginara em primeira vista, estava tentando recuar, suas pernas trêmulas deslizando pela superfície de gelo, as mãozinhas grudadas as laterais do corpo, enroladas em punhos e em uma convulsão de um tremor embasbacado, os olhos fitando fixamente os espíritos de vento e seus ombros encolhidos em visível pavor infundido. A sola de sua bota pendeu no ar, e seus joelhos fraquejaram esmoreceram suas forças e fizeram-na tombar e arrastar-se até o centro do lago, onde dispersara os venti furiosos, que logo concentraram sua atenção em seu aspecto miúdo e frisado. Entretanto, antes que Percy resvalasse em um impulsionado arremesso para frente, o fino e delicado gelo ruíra, e desprendera-se de sua coalizão arrojada. No momento quando o primeiro venti investia sobre ela, Silena já estava submersa. Seu corpinho rolara para dentro da mortiça água frívola, e o fraccionado pedaço de gelo boiara para a superfície novamente, onde o frenético venti arremetera-se, colidindo-se e dispersando-se, desintegrando-se em novas fissuras de neve que aderiram os recantos onde havia a abertura das frestas, fincando o pedaço de gelo novamente na superfície em si. Assim que Percy alcançara o compartimento onde antes Silena postava-se, ele permanecera ali, o quadriculado trecho desprendido novamente cravado ao todo, como se nunca houvesse se subdividido. Abaixo daquela película de gelo, a pequenina encarava-o apavorada, com os verdes-mar manchados de um pânico que Percy nunca esqueceria, que gravara-se em sua mente como se houvessem tracejado com uma lâmina nivelada em chamas. Ele não se importara com os golpes gastos e vorazes dos venti, não mais era relevante a ele. Percy, em um momento de paralisia entorpecida, ficou simulado ali, com as mão estendidas grudadas no plano de gelo, onde as palmas de Silena esquadrinhavam-se, unindo-se às dele através da espiral de neve compactada. A pequena havia sufocado um choramingo, que contudo fê-la tossir e engasgar, enfraquecendo-se, sua pele tornando-se pálida como a neve, bolhas de ar escapando pelo seu nariz e boca, e seu corpo frouxo desgarrando-se do gelo, escorregando para o fundo. A visão de Percy escureceu, não apenas pelas punhaladas agonizantes que os venti coagiam nele, mas pela fúria dos próprios houverem interrompido a tranquilidade genuína de sua filha. Prendendo sua respiração pelo maior tempo que podia, ele cerrou seus dedos em torno da bainha de sua espada e rasgou um arco amplo atrás de si, ao virar-se em súbito e esquivar-se de mais uma estocada lúgubre dos espíritos de vento. Dezenas deles se desagregaram, dissolvendo-se em vazios que criaram um silêncio assustador nos ouvidos de Percy, que não comemorou sua vitória. Ele cerrou os punhos, impelindo-o em um soco difundido mirando ao congelado lago. Ele sentiu um forte repuxão no fundo do estômago ao estagnar qualquer outro pensamento ímpar e focar-se no degelo do bloco pelo qual conseguia enxergar sua pequena afundar em uma vagarosa e decrépita constância, que em menos de dois segundos liquefez-se, e Percy lançou-se para suas garras. Embalara sua filha na submersão obscura, um sombrio frio escorrendo pela sua medula em um temor fundido ao assombro, não demorou-se para lançar-se para cima, onde quebrara a superfície para aconchegar o vento cortante em sua pele exposta, tentara acobertar a filha com seus braços afim da corrente gelada não atingi-la. Silena estava fria e imóvel, porém respirou calmamente assim que encontrou o ar para submeter, Percy a havia abraçado e envolvido em seus braços, apertando-a contra si que não notara que as roupas da pequena estavam secas, assim como as dele. Ela murmurara as palavras para o pai, tocando-lhe a face e mostrando-lhe um ponto luminoso nas nuvens esquálidas. Enquanto ela sorria, um doce sorriso manso e puro, Percy despejara lágrimas que sombrearam e tingiram a roupa da garota, que limpava as gotas das bochechas do pai com seus dedinhos pequenos. Haviam-se mantido juntos por um longo tempo, flocos de neve já haviam salpicado seus cabelos e Silena descansava no peito do pai, escutando seus batimentos cardíacos pulsarem em sua audição, diluindo o capcioso aspecto sombrio que assentava-se com eles, e deleitando-se com o momento bondoso onde estava salvaguardada nos mornos braços carinhosos do pai, os movimentos constantes e brandos dos dedos de Percy acariciando seus cabelos, e o contínuo e leviano sopro deslocando a Percy uma sensação de realização e alívio, que levavam tanto a ele, quanto a Silena, ao sono.

O moreno balançou a cabeça, mais uma vez. “Não se preocupe, papai. A mamãe ali em cima disse que está tudo bem. Que está tudo muito bem”. Um nó desleixado e amargo arranhou sua garganta, raspando suas cordas vocais, ele disfarçou um grunhido cheio de exaspero ao limpá-la, fazendo um ruído que atraiu a atenção da pequena Holly, que corria logo ao seu lado, de dentes trincados e a testa franzida, como se desconfiasse que ele não estivesse realmente com eles, o que, de fato, era exatamente o que decorria.

–Quanto tempo irá demorar? –Isaac, um dos filhos de Hermes perguntou, de esguelha lançando um fixo olhar para o irmão, com uma carranca na careta de repulsa, enquanto Neil, seu gêmeo, inclinava-se para o lado e apoiava todo seu peso no corpo do irmão, em expressiva desorientação. –Não acho que o “mais velho” aqui vai aguentar suportar por mais quinze segundos.

Isaac arfou quando tentou reencontrar seu equilíbrio, aprumando as costas. Seu olhar estava arregalado e uma expressão inexpressiva refletia uma centelha de distopia em sua face, como se visualizasse cinzas e poeira para todo recanto de seu campo de visão pelos efeitos de alguma Terceira Guerra dos Titãs que supostamente haveria transcorrido em sua mente incoerente, as bochechas em um tom doentio de amarelo esverdeado, a rigidez do corpo denunciando seu temor oculto e a lívida pele dando-lhe a insinuação de uma esquelética vestimenta.

–Você está superestimando minha capacidade... –não fora capaz de finalizar seu argumento, pois foi interrompido por um urro rouco de um monstro distante, porém que visivelmente os haviam localizado. Neil grunhiu em frágil demonstração de derrota, e tornou a Percy, esquecendo-se momentaneamente do argumento do irmão. –Será que a Sra. O’Leary não pode nos levar naquela viagem pelas sombras, mais uma vez? Prometo que não irei resmungar dessa vez.

–Não é sua voz que incomoda... –comentou baixinho o gêmeo, que continuava a examinar a frente, distorcendo as feições em contragosto. Holly bufou ao escutá-los, fechando por um breve instante os doces olhos os quais firmemente fixavam-se a frente, as íris arroxeadas, lançando sombras sob as pálpebras, causando uma delineada mancha obscura, dando-lhe uma aparência sombria, em tétrico destorço, como se houvesse acabado de ver a própria Morte. O que não é tão longe da verdade, Percy pondera, franzindo a testa e tentando manter sua concentração focalizada no solo onde pisa, na sola de seus sapatos desgastados esmagando a superfície plana e levemente acurvada.

Entretanto, ele simplesmente não conseguia. Uma força oculta pairava sobre sua cabeça, em uma propensão infindável de uma tormenta aflitiva a qual não era capaz de escapar. A princípio, inócua; contudo, salientava um profundo e inesperado ardor em seu cerne, uma sensação palpável de um rasgo dentro de si, acometendo-se contra ele com uma poderosa e sobrecarregada dose de desordem, pregando-lhe uma solidão imensurável, uma ausência incomodante que ribombava em sua mente como se os filamentos de seu DNA estivessem desfiando e seus neurônios rompendo-se em uma colisão de despreparadas e ofuscadas provocações, de vislumbres de memórias conservadas e cujo significado aflorava e estremecia, conclamando calafrios e arrepiava sua medula. Não era o melhor momento a qual deveria lembrar-se de tais pensamentos. Sim, eram boas recordações. Contudo, com Silena perdida, a dor dilacerante de seu âmago conduzia um impacto irreduzível e impressionantemente largo. Ela abrangia misteriosas crateras no fundo de si, escavando bolhas e rochosos distúrbios em meio a lancinante, inevitável e gloriosa queda da esperança que paulatinamente esvaia-se de si. De encontrá-la, de descobrir o porquê de seu desaparecimento, de desvendar seu paradeiro. Tudo mesclava-se em sua cabeça, juntamente com os roncos lamentáveis dos monstros, os agitados e frívolos sons glacias dos raios, todos os ruídos rachando seu crânio e enevoando sua mente.

Olhou para cima. Para o fundo da paisagem escura, imprecisa e turva. Seus pulmões aparentavam perfurar sua caixa torácica, inalando o odor refrescante e perfurado da noite, que no entanto, transmitia a seus sensores um azedo e repugnante cheiro o qual impregnou-se em suas narinas como garras de águias – ou melhor, de . Talvez fosse apenas seu alarme disparando, alertando-o de um provocativo perigo (o que era desnecessário a essa altura), ou talvez fosse o sangue seco em seu queixo misturando-se com o fio fluente que escorria de suas têmporas.

Não era apenas as costas que os brilhantes aspectos deixaram para ele, resolvendo lançar em sua direção uma cortina de uma escuridão densa o bastante para cegá-lo e desintegrar a sua parte que tentava ainda bombear esperança na bolha dilatada da própria esperança já tensionada e prestes a estourar a qualquer minuto. Eram as memórias. Aquele sonho que ele teve por ter-se permitido dormitar em um estado letárgico quando estavam todos descansando e estava de guarda no primeiro e determinado turno. É claro que não poderia deixar alguma das crianças tomar conta do seu posto. Embora tenha lhes dito que a despertariam em rotas regulares, não iria realmente fazê-lo. Esperava, com alguma centelha de ansiedade, que Sra. O’Leary o auxiliar em seu dever. Porém, o que deveria, de fato, aguardar? Ele podia sentir o solo estremecer pelo potente ruído que ela emitia no canto do espaço onde haviam repousado e demarcado em um temporário acesso preparatório. Não precisava disso. Sua intenção seria esperá-los gaguearem dentro de nebulosas bucólicas e achar uma maneira de encontrar-se com o destinatário Olimpo. Silena não gostava de noites escuras. , em enrodilhar as cintilantes estrelas naquele instante. Percy podia relevar em convicção que antes da prisma da sonolência traga-lo para a inconsciência onde ele não realmente necessitava

–Per...cy... –a pequena experimentava as palavras, mastigando-as com hesitação, ainda exóticas e vagarosas em sua fala arrastada, caretas fluindo conforme as letras dispersavam-se, compenetrada, acendendo em seu rosto como frutos de sua frustração, seu nariz contorcendo-se ligeira e singelamente, os dedos agarrados firmemente à barra do vestido safira simples, de tecido fino e macio o qual acariciava suas perninhas cambaleantes e agitadas, embora focalizava-se nos olhos verdes cintilantes a sua frente com determinação e perseverança, os seus próprios faiscando o mesmo esverdeado profundo, cuja intensidade perfurava e penetrava na mais obscura e obstinada escuridão. As frescas letras flutuaram e escorregaram pela sua língua e lábios rosados, resultado de sua persistência. –Percy?

O terno homem que sentava-se na extensa areia úmida da praia, reclinado para trás, com os braços apoiados na lateral do corpo e a longa perna direita estendida enquanto a esquerda arqueava-se. Ele observava atentamente sua filha imóvel em concentração a sua frente, as suas pernas pequeninas cuidadosamente calculadas em uma linha paralela uma em relação a outra, postada entre o pai e o mar, clamando por atenção. Como se, de fato, necessitasse de mais. Percy compadecia-se, levantando o canto dos lábios no mais formoso e luminoso brando sorriso; ele retinia surpresa e admiração, acompanhados de um ardor caloroso vindo de seu âmago e subindo-lhe até as faces, ruborizando suas bochechas de um encanto imutável e inesquecível.

Ele ajeitou a postura, enrijecendo as costas, inclinando-se para a filha. Silena enchia as bochechas de ar, em exaspero e ansiedade pela sua reação. Percy ainda conseguir lembrar-se daquela noite, enquanto fingia dormir, da cena que retratava ao seu lado, quando sua pequena garota despertara abruptamente, desenroscara-se do aperto carinhosamente seguro e protetor do pai, o qual havia aninhado seus braços firmes em seu colo, salvaguardando e abrigando a garotinha que havia sido ocultada em meia a exacerbada cautela diligente de seu afeto, ela arrastara-se meticulosamente para fora, e escalara seus ombros, repousando em seu tórax, quase fazendo-o arquejar, porém antes de fazê-lo, conseguiu deter-se e conter-se em seu desejo ardente de abrir os olhos, as pálpebras que disputavam de sua cônscia agitação, inquietas, indisciplinadas para espiar o que a pequena planejava realizar, contudo permaneceu inerte, apenas escutando-a iniciando a treinar dizer seu nome baixinho, ao tempo que enrodilhava seus dedinhos no cabelo escuro e desarrumado do pai, enrolando-o e alinhando-o, pegando-os em tufos e desarticulando-o em mechas e em uma jocosa brincadeira genuína. Percy anuviou uma risada, evitando-a de escapar. Suas mãos cobriram carinhosamente os cotovelos delicados da filha, os dedos suavemente arranjados como se houvesse a possibilidade de um osso de sua princesinha rachasse.

–Silena. –murmurou com um afeto delicado, inclinando a cabeça e encostando seus lábios em sua testa recoberta pela franja loura dispersa, a qual ondulava em tênue e ornamentado movimento, como ondas de um mar sereno e singular. Assim que retornou a encará-la, encontrou-se com a garota com seu nariz franzido em concentração e curiosidade, ela cravou seus olhos verdejantes no pai, incrustados de uma intensa determinação, perscrutando-o em uma profunda harmonia com a suavidade das líricas e rodopiantes esferas que investigavam suas feições em uma compenetrada busca obstinada às reações do pai, as quais estavam levianamente esclarecidas para qualquer um observar. O canto dos seus lábios vergaram-se sem ele ao menos notar. –Estou orgulhoso de você, minha pequena.

A expressão preocupada de Silena dissolveu-se como a água da chuva despencando dos céus e misturando-se às águas do oceano, formando uma homogênea linha de alívio. Suas pálpebras fecharam-se momentaneamente em uma profusão de contentamento e realização, satisfeita pelo seu triunfo sobre as palavras. Ao abri-los mais uma vez, por um instante Percy foi capaz de vislumbrar Annabeth, seus olhos e sua feição contrastando-se na suavidade perspicaz de Silena. Seus lábios rosadas afloraram na pintura que Percy contemplava em uma vivaz cúmplice de complacência inocente. Ela escalou seus ombros e pendurou-se em seu pescoço, impondo-lhe uma pressão fraquejada que Percy cedeu, curvando-se para seu corpinho miúdo e enroscando-a em seus braços fortes e acolhedores.

Ele queria poder abrigá-la em seu calor, salvaguardando-a de quaisquer perigos e ameaças o qual o mundo onde viviam poderia acobertá-la, e iria; embora realizasse todo o possível para deixá-la em um amortecedor e protegido caminho, sabia que não deveria prendê-la a ponto de impedir seu desenvolvimento. Um momento, ou outro, ela iria acabar ferindo-se. E com essa ferida, a qual iria cicatrizar-se, ela iria aprender mais um princípio. E Percy estava perseverante em sua decisão de evitar com que isso acontecesse – ou, ao menos, ensiná-la de um modo onde ela iria apenas conservar sua sabedoria, reduzindo a torturante consequência em um fiapo desvanecido pelas correias do vento do passado, sem precisar acabar em uma encruzilhada sem saída, ou volta; ou precisar suportar a agonizante ferida crispada que teria de carregar como fardo em uma longa empreitada sem retorno, onde a inclinação inquire sua desavença entre a cônscia barra de ferro cravada em segurança em um entrave de apoio e orientação. Ele seria seu guia. Ou assim desejava.

Subitamente, seus braços surgiram pesados e exauridos, e uma sensação oca flutuou pelo espaço onde minutos antes sua pequena encontrava-se. Suas pernas cravaram-se, trêmulas, em um solo plano. Permanecia com os punhos latejando quando ele levantou-se em uma abrupta velocidade estonteante, a tonteira cegando suas pálpebras fazendo-o tropeçar ao tentar caminhar um passo à frente. Olhou para baixo, em um relutante vislumbre do nó de seus dedos. Eles pareciam ter sido efervescidos em brasas fulgurantes, com a pele arranhada e rasgada, linhas de sangue escorrendo até sua palma; sentia como se o trecho de seu membro houvesse sido arranhado por um tigre raivoso, e arremessado em uma névoa cáustica a qual derretera seus ossos. Observando seu redor, pôde compreender o que ocorrera. Novamente, estava no hospital; não hospital, de fato, mas um local improvisado do mesmo. Ele apoiava-se na barreira da porta, com os pés inconstantes em sustentá-lo. Tentava amenizar sua respiração irregular e seca, e enternecer seus batimentos cardíacos frenéticos, em estado de espanto e paralisia.

Passos ecoaram para seus ouvidos, e ele voltou-se ao corredor, ofegante e estarrecido. Seu peito rugia de uma ansiedade a qual ultrapassava sua muralha de reclusão. Lembrava-se agora. Haviam-no acabado de arrastar da sala onde Annabeth fazia o parto, ele gritara e berrara seu nome, chamando-a e tentando desvencilhar-se do aperto que os filhos de Apolo faziam nele, empurrando-o e divagando-o para cada vez mais distante de sua sabidinha. Haviam-no retido em um quadrado esbranquiçado de espera, e ele socara a superfície de madeira com pedregosos entalhes até não suportar mais a pungente dor que despertara em seu íntimo, excedendo sua trajetória a ponto de causar-lhe pontiagudas e febris golpes em sua têmpora, e tingindo sua visão com pontos coloridos aleatórios em espaçadas paisagens de sua sanidade. Por fim ele desabara naquele chão e aguardara, com a cabeça repousada na porta, seus olhos ardendo e uma fúria crepitante rugindo em seu âmago, protestando e ameaçando rasgar a membrana de controle o qual ele empunhava. Aparentemente, Apolo providenciara barreiras para separar-lhe de qualquer meio mágico de atravessar as fendas as quais eram oferecidas a ele para impedi-lo de escapar e arremeter-se junto a sua esposa mais uma vez; as janelas, o corredor e as portas fincavam-se altivas em seus postos, como guardiãs onipotentes, resistindo a inúmeras tentativas vãs de derrubá-las. No entanto, ainda encouraçava-se na esperança da valente e inescrupulosa vontade e força de Annie. Ele não podia perdê-la, não podia sequer imaginar nunca mais ver seu sorriso ou ouvir o som harmonioso de sua risada, ou o cintilante cinza de seus olhos minuciosos e espertos reluzir enquanto interpretava as constelações e fitava a lua nos céus.

Porém, assim que meticulosamente analisou a face dele enquanto este movia-se em vagaroso e calculado passos em direção a ele, pode ter um preciso sentimento do que era obter dentro de si um vazio amorfo e intenso, em ser apunhalado pelas costas por uma adaga venenosa, em como era sentir, em um jorro acre e corrosivo do próprio sangue latejando e pulsando pela sua veia, embrenhando uma marcha constante em seu ouvido, uma lancinante agonia a qual o acobertava como um sopro sombrio; o sopro desgastado desejando-lhe desdenhosamente uma boa noite, com dentes mordazes picando sua pele, trazendo-lhe um frio atordoante que quase fê-lo desmoronar ao chão, sem forças. Era assim que começaria? Era assim que seria a partir de agora? Ele titubeou, relembrando do sorriso de Annabeth cujo reconfortante torpor provocado pela mensagem cravada em seus olhos não veria mais. Aquela mensagem que lançava a ele todos os fins de tarde, quando entrelaçava seus dedos no dele e beijava sua testa, como se ocultasse algo, porém recusando-se a dizer-lhe o que era exatamente. No entanto, ele sabia agora. Sabia que ela já conhecia o que aconteceria a ela. E quando ela olhava-o com olhos mansos e dóceis, ele podia agora entender o que era.

“Persevere por mim, Cabeça de Alga”.

A noite prologava-se, com o tempo oferecendo-lhe facadas pontiagudas que queimavam seu peito. Era uma noite enregelada e suspensa no tempo. O tempo o qual aparentava ter sido congelado, paralisado e emboscado. Em um tique-taque vibrante em seus ouvidos, unindo-se ao seu sangue correndo em seu corpo, frenético. Percy podia ter uma nítida sensação de que a ponta de seus dedos ter sido afundadas em degraus escamados de lava, seu rosto perdera a cor vivaz, sendo substituído por um cálido fulgor inebriante. O filho de Poseidon foi capaz de enxergar uma presença desconhecida e oculta em sombras vagueando com seu capuz o qual açoitava suas costas, onde sob sua obscuridade surgia um a face deformada e cruel de um gigante, o qual golpeava-o nas laterais, projetando uma foice em seu esterno para apenas virar as costas e partir.

–Como ela está? –seu murmúrio saiu rouco e trêmulo, apesar de tentar convencer a si mesmo de estar confiante e aprumado. Sabia a responsa, embora coagira a perguntar. Podia vê-la nos olhos de Apolo, podia interpretá-la apenas de um vislumbre inócuo. –Ela está bem, não está? Está apenas descansando, não é?

Um silêncio correu por ambos, rodeando os calcanhares de Percy como um predador de ombros rígidos e membros poderosos clamando por uma guerra; Percy podia senti-lo avolumando-se em seus tornozelos e enrolando-o como uma corda esfiapada e áspera, uma corrente de aço, que envolvia suas pernas, insistindo em desestabilizá-lo, aguardando esperançoso para poder contemplá-lo cair; uma queda irrefreável e inevitável. Uma impressão densa e fantasmagórica dominava-o, provocando-o a ceder, e desistir de sua esperança vazia. Porém Percy apoiou-se na parede com firmeza, seus dedos entorpecidos e já inaptos a captar a textura de planícies em decorrência da raivosa força sobre a qual Percy comprimia no vão concreto da estrutura.

Ninguém falou por longos segundos, que aparentavam perpetuarem-se pelo eco infinito do redemoinho devastador onde Percy reteve-se; seus olhos esverdeados haviam esmorecido, o brilho desbotando-se com a rapidez de uma folha seca de outono se dispersando e esfarelando-se no mínimo contato. Sua visão tornou-se vítrea enquanto fitava morbidamente o chão. Não havia percebido o movimento vagaroso e volátil de uma silhueta nos braços dele, não interessava-se em observar o arredor pois prendera-se a um único pensamento cujo ribombar de seu som em vigor soava ameaçadora e sufocante.

Eu a perdi... Não pude... não pude cumprir a promessa...

Uma gota de lágrima escapou do canto de seus olhos, escorregou pelo seu nariz e trovejou para a liberdade. Duas gotas fincaram o chão entre seus pés. Vieram em conjunto uma nova onda de lágrimas, que, no entanto, não vieram a se encontrar com a linhagem anterior. Aquelas lágrimas não encontraram-se com o chão, como ele esperaria. E onde ela repousou, fê-lo arfar em surpresa, engasgando-se em seu próprio medo, medo da perda, medo do amanhã, medo da noite, medo do presente, medo do desconhecido. Ele abafou em seu íntimo um espasmo incontrolável, um pânico irreversível que parecia almejar explodir dentro de seu peito. Ele concentrava-se, com uma inesperada mudança ascendendo dentro de si, o interceptor, a invasora. A sua ínfima sequência de lágrimas a qual fragmentara-se e prorromperam de seu queixo haviam sido interrompidas em sua corrida descuidada por pequeninos dedos gordos e vacilantes, que cambaleava e buscava suprir a solidão a qual era acometida bruscamente, retirada do conforto e consolidado espaço onde descansara por meses. Parecia aguardar agarrar uma inexistente barra onde suster-se, procurando arduamente e incansavelmente o seu centro, seu refúgio, a luz para a qual se englobar, a fim de seu brilho eclodir no meio da escuridão densa e profunda que incidia na sua, ainda intacta e desvendável, visão do mundo; ela não conhecia o que a cercava, e isso a apavorava. Percy podia visualizar isso ao fitar os dedinhos agitados, a mãozinha frenética embalando o ar, sua busca em vão, apunhalando um constante vácuo que aparentava aterrorizá-la. As gotas de lágrimas lufaram em sua pele intocada, alojaram-se na depressão da concha que seus dedos formaram ao retrair-se, assustados, pávidos, em uma amarrotada profusão de sentimentos inatos e enobrecedores.

Percy ainda arquejava, piscando repetidamente a fim de expurgar os rastros de uma frieza palpável cujas garras alojaram-se de seu peito. Sentiu seu próprio pulmão retrair-se, encolhendo-se em temor e em uma indomável hesitação ao deparar-se com a mãozinha. Tinha de aparecer, não tinha? Tinha de achegar-se à ele, naquele momento, naquele exato instante. Uma sôfrega respiração, e um retumbar de paralisia incrustado em seu raciocínio emaranhado antecedeu a sua decisão de correr. Uma instintiva sensação de correr fazia com que ele se apoderasse de um terror que havia muito não ponderara a acumular. Embora soubesse que fosse um pânico incoerente, estava destemido em sua decisão de titubear e fugir daquilo que velejava para a boca de seu estômago, como um punhal violentamente arremessado em seu calcanhar de Aquiles. Porém, antes mesmo de seus pés verterem para a saída, a mãozinha aproximou-se e tocou-lhe o queixo. Ele fechara os olhos, enegrecera a visão, as pálpebras cravando-se em cerrada posição. Não estava preparado, não sentia-se apto para vê-la. Pelo menos, não ainda. Sabia o que veria, sabia o que estava diante de si. E embora negasse de aceitar, opusesse a encará-la e fixar um compreensível olhar da qual era preciso, ele apenas não conseguiu reunir forças ou coragem o suficiente para fazê-lo. Ficou imóvel, sua expressão dominada por uma histeria de feições, tentando grandiosamente reter-se em uma, sem progresso. Em vão. Seu toque era avassalador, morno e surpreendente, uma mistura de vívidos sentimentos ultrapassou a compreensão de Percy. Sentimentos que confortaram o interior deteriorado dele, que reformularam, reconstruíram, o alicerce seguro e firme que desabara, sentimentos que levaram-no a sentir uma paz revigorante, acalentando e retumbando em seu íntimo ritmo constante, uma melodia suave, leve, de um novo começo, um início que sempre estivera presente, a continuação de um fim interminável. Uma nova alvorada na escuridão tenebrosa e imperscrutável no qual as teias invariáveis cujos fios gosmentos enroscavam-se e impediam-no de prosseguir, aquela escuridão negra e vazia, parecera acomete-lo, reduzi-lo a frangalhos – porém, agora, como a água escorregando pelo tato frágil e indefeso da pequenina palma, ele reestruturava-se. Um alerta piscava em seu ponto visual. Uma acautelada armação para adverti-lo do redemoinho que sobreviria investir nele. Não de modo abrupto, não de modo violento, contudo de uma maneira sutil que lhe dava uma impressão de ser golpeado por afiadas lâminas em estreitas faixas de si mesmo. Ele achava um ponto mais cintilante em todo o emaranhado de galhos e embora aquela ardil garra ainda continuava fincada em uma lacuna impreenchível dentro de seu peito. Seus olhos abriram-se, em sedenta voracidade, contudo sua cabeça permaneceu abaixada, temerosa, pávida.

Sem muito delinear seus pensamentos em um claro argumento, ele levantou os braços e revolveu a mãozinha nas dela, os pequenos dedinhos apanharam seu dedão com ansiedade, segurando-o com uma força que Percy não imaginaria ela possuir. Tracejou um sorriso em seu rosto, e observou seu dedo sumir naquele aperto cândido. Apesar disso, relutava em elevar os olhos, e vislumbrar o que certamente sabia o esperar. Um pânico inconsciente refratou dentro de si, ordenando ao organismo de Percy que seu sistema nervoso ativasse seu letárgico alarme. O que seria dele? Como ele conseguiria fazer o que sabia ter de fazer com a ausência constante daquela a qual prometera ajudá-lo? Ele nunca imaginara que um dia pudesse tê-la... Não, não... Até por fim ouvir suas batidas cardíacas suaves, amenas, tranquilizantes, resfolegando com um doce e afável murmúrio de conforto e alento, uma calorosa sensação havia habitado em seu íntimo, uma sensação de clara esperança, de evidente êxtase, um completo e definitivo ardor de carinho e afeto. Naquele dia, quando segurava as mãos de Annabeth, ele sentiu-se seguro e determinado, um verídico e valente guerreiro que nunca admitiu encontrar em si mesmo. Oh, sim. Mas aquilo era antes. Antes de descobrir o que aconteceu. Antes de saber que estava sozinho. Sozinho? Como conseguiria? Como saberia cuidar de uma pequenina vida, sem ela? Ele sentia-se incompreensivelmente incapaz, indeciso, frustrado. Sentia-se culpado, também. E isso incluía no aglomerado de emoções as quais transbordavam e afogavam sua respiração. Sentia-se culpado, indignado por aqueles exatos pensamentos terem se esgueirado para sua mente delicada, desgastada em camadas de resignação. Não deveria pensar naquelas coisas, porém, já era tarde demais. Ele já não conseguia discernir o que faria, qual emoção apegar-se, qual realidade prender-se.

Um ruído suave e engasgado, vindo do fundo da garganta, achegou-se em seu ouvido, transpondo quaisquer penhascos e barreiras o qual ele havia edificado, esvaindo pensamentos obscuros de uma névoa cáustica e esbranquiçada, a qual impedia ele enxergar e se orientar. Ela engasgara-se. Aquele desentoado encanto rompera, ruíra, os vestígios da reticente teia escrupulosa e sombria bordada por palavras avertidas. Não importava, de qualquer maneira. Não importava. Aquele pavor genuíno que irrompera dentro dele esvaia-se a cada segundo pelo qual se transcorria, aquele temor, aquele arrepio gélido, aquele firme retração em seu tórax, o terror roçando seus pensamentos frágeis e indefesos. Não... não era verdade, era? Havia algo mais indefeso, mais instável, mais apavorado do que ele. E ele não podia apenas esquecê-la, abandoná-la, quando essa mais necessitava de sua companhia. Ele não iria. Não podia. Ela estava assustada, podia sentir isso. Pela pressão tênue e quebrantada, trêmulos dedos, pequenos toques. Ele, sem ao menos ponderar, pôde detectar sua própria mão comparavelmente grande abrigando aqueles dedinhos, tão delicados, clamando e ansiando por poder ter o calor adstringente para protegê-la. E agora tinha. E não iria soltá-la. Não, não iria.

–Percy? Você está pronto? –a voz parecia ser emitida de longe, distante de onde realmente estava. Ela era familiar, embora não reconhecesse com total convicção devido ao confrontado estado de seu raciocínio, cambaleante, anuviado. –É a sua vez. Ela escolheu os braços do pai. –ele não mexera-se, ainda. Seus pés encontraram apoio no solo, onde antes encontrava apenas em impasse. A solidez antes flácida, uma massa volúvel a qual seus pés conseguiram subjugar. Seus braços formigavam, em uma latejante sensação desagradável de impotência. Embora tentasse controlar-se, ainda não afrouxara o aperto que a pequena lhe infligia em seu dedo. Um suspiro lento e paciente espalhou-se pelo recinto, e a voz refez-se, com mais vigor, com uma cúmplice clareza. –Ela é a sua filha, Perseu. Está na hora de segurá-la, de tê-la contigo. De assumi-la como, de fato, seu legado.

Ao assentir, sua cabeça já estava em solene e leviana repercussão com a responsabilidade posta em si. Um fardo retirado de seus ombros foi-se apreciado ao, cautelosamente, desvencilhar a mãozinha da pequenina e estender seus braços com segurança. Ao erguer seus olhos, sua confiança oscilando, ele pôde vislumbrar o sorriso incentivador e os olhos complacentes, ao mesmo tempo, aristocráticos de Apolo, satisfeito, porém, com sua reação. Ele baixara sua atenção a pequenina, abrindo um torto sorriso compassivo na direção da criança ao ajeitar a pequenina em seus braços para trocar seu encarregado. Um fluxo de emoções comprimiu-o, combatendo contra a parte a qual repreendia-o. Seus olhos pareciam percorrer a sala em busca de algo indesvendável, como se pudesse encontrar em algum recanto o bravio aspecto que parecia ter sido espantado de dentro dele. Aquela força a qual insistentemente, em repetidas e incontáveis empenhos, dedicara-se em encontrar. Ele achava-se fraco, debilitado. E se não pudesse retornar mais? E se encontrasse-se tão presa, a ponto de não ser capacitado o suficiente de cuidar daquela herança sua? Tão pequena, tão minimamente quebrável e delicada.

Talvez, talvez, nessa fraqueza, ele possa e tenha de retirar aquela valente perseverança, aquela bravia fortaleza onde poderia ser possível fortalecer-se e achar o pacífico sussurro do qual necessitava. Herói, certo? Era o que dizia-lhe. O que sempre diziam-lhe. “Quero ser como Perseu! Perseu Jackson! O Herói do Olimpo!”. Evidente, certamente. Mas como ele poderia conclamar-se um, se não podia ao menos fixar seu olhar com coragem em sua própria filha? Não se importava com esses títulos. Ele era um semideus normal, notório, embora tenha uma sorte absurda de alcançar onde ascendeu. Não era um herói. Era um tanto quanto cada meio-sangue era. Um célere pensamento debochado ciciou pela sua cabeça, tímido e intempestivo, embora com uma marcante lembrança a qual aparentara haver sido deixada por brasas vigorantes, flamas incendiárias, ferozes, vorazes. “Você não é forte o bastante, Filhote dos Três Grandes. O que você acha que vai fazer com uma criança nos braços? Sozinho? Encontra-se sano, novamente? Onde está sua ébria fortaleza de ódio, tristeza, mácula? Ela ainda não foi curada, não está sanada. Ela pode abrir-se a qualquer instante, a rachadura pode teimosamente forçar sua ruptura. Você vai, mesmo, criá-la?”.

O meticuloso e vertiginoso pensamento não concluiu-se, pois logo pôde sentir em seus braços encaixar-se uma pressão morna, calorosa, amistosa. Uma branda trouxa aveludada acomodou-se em sua pele, levando a seu contato uma doce sensação de dever, de compaixão, de abnegada e calma sábia responsabilidade de proteção. Seu rosto dedicava-se a concentrar-se em qualquer rota, qualquer ponto impreciso desde que não seja o rostinho detalhado de quem sabia que veria. O que ele estava fazendo? Ao menos ele sabia. A incerta expectativa estourava em seu peito em uma ardente queimação, como fogo espalhando-se pelo seu corpo prestes a entrar em combustão. Seus batimentos eram agitados, impacientes.

Faça-o, Percy. Acabe com isso, acabe com a angústia que criou. Acabe com a impertinente teimosia e encouraçada caixa trancada a qual mantêm-se determinado em esconder a fechadura. Extingue essa insistência em permanecer em seu frio, frio coração. A gélida barreira que construiu é supérflua, não vai funcionar. Você tenta surgir em volta de ti um círculo de autopreservação quando sabe que irá se queimar. Mas isso é bom, é bom porque ao queimar-se experimentará um novo começo. Uma nova alvorada que você sabe não poder cessar. Aquela alvorada, aquele ponto central, que você e Annie centralizavam-se em sonhar. Mas minha Annie se foi... Mas... não. Percy, acorde. Ela não se foi. Ela não se foi! Olhe para baixo, verte a direção de seu olhar para a sua imponente filha!

E foi o que fez. Naquele impulso instantâneo, obedecendo quase mecanicamente a voz de sua mente tumultuada.

Seu rosto rosado aparentava estar em permanente rubor. Sua bochecha amassava-se ao enterrá-la no conforto de Percy, sua boquinha estava em constante insatisfação em encontrar uma trave para aliviar-se, a sua pequena língua inconstante, manuseando-a na abertura como se explorasse a nova acomodação, demonstrando-se por entre os lábios abertos em uma fresta visível, seus dentes ainda ausentes; seu narizinho meio franzido, miúdo em contornos brandos, uma afetuosa linha perpassando-o como se degustasse do seu sonho vívido; amenos riscos delineando seus traços dóceis e afáveis, entornando-se em suas pálpebras, semicerradas, seus olhinhos ainda imperceptíveis, encobertos pela membrana sensível; as sobrancelhas suavemente arqueadas, em uma expressão exata a quando Annabeth tranquilamente deslizava em seu mais profundo sono – onde em noites reluzentes e insolúveis, densas e friccionadas de gelo, não conseguia ele mesmo fechar os olhos, e observava-a descansar. Percy inspecionava a filha com uma insaciável sede, um brilhante espanto admirado, sem retroceder quando, delicadamente, escorregou seu dedo pela testa, o filamento do nariz desleixado, ligeiramente flexível e alinhado como os de sua Sabidinha, seus lábios formados em um muxoxo paralisado em embriagada serenidade, e estancando no queixo, tão parecido com o seu. Os fios ainda escassos no topo de sua cabeça refulgiam em um aparente dourado filigranado, suavemente envolvendo o ápice de sua cabecinha, ainda adormecida.

Ele foi capaz de sentir o peso considerável da filha, seu corpinho quente e frágil cobrir-se e movimentar-se, inquieta, uma desorientada tentativa de comportar-se em seu colo inexperiente, do pai desajeitado, inseguro. Percy nunca imaginara que um dia encontraria a si mesmo carregando algo – não, alguém, uma versão pura da mistura sua e de Annabeth – de demasiada dependência, de genuína confiança, em uma submissa mansidão para com ele. Ele, a quem logo escutaria ser chamada de um título novo, um título inusitado do qual nunca esperaria ser reclamado assim que conscientizou-se de ser um semideus. Aquele mesmo nobre título, honrado e descomunal título deslumbrante, mais radiante que ser um herói.

Pai. Ora, sim. Uma risada baixinha de irrefutável orgulho e uma indescritível afetiva ternura cujas impotências acometeram-se sobre ele, em rápido e desconcertante impacto impetuoso. Embora, ao imaginar-se, gostaria, de fato, ser considerado por ela como seu herói. O único, e mais precioso, almejo dele seria ser implantado como um herói pelos olhos grandes e sonolentos da pequenina. Quão heráldico seria? Podia sentir a pulsante energia retornar aos seus membros, endireitando-o, tornando-o o Percy que precisava ser. O Percy que precisava se lembrar. Que sua filha precisava. O que estava pensando? Não podia abandoná-la. Queria transformá-la em uma digna moça virtuosa, ah sim, como a mãe. E, talvez, quem sabe, descobrir sua habilidade em combate como o pai? Podia ouvir Annabeth soltar uma risada sonora a qual perpetuou em sua audição como um sino calibrado. “Você nunca desiste, Cabeça de Alga. Mas sei que nossa filha vai cumprir suas aptidões esperadas”, fora o que dissera na última noite que tiveram juntos.

Tempo passado – Casa de Annabeth.

Silena escutava atentamente o entoar doce e elegante do silvo da brisa leve cujo sopro remetia-se contra os galhos das árvores, no pico de sua estrutura, ramificações já escuras e despidas de quaisquer figuras verdes as quais tentavam infiltrar-se em sua paisagem. Elas eram arremessadas e soavam sua canção de ninar que proliferava-se no corredor oblíquo e encurvado das corredeiras velozes que fustigavam as laterais de sua cabeça encoberta, e propulsavam os seus enterrados cabelos, achando brechas e fragmentadas aberturas por entre os tecidos interligados por lã viçosa e macia, a qual possuía rupturas, por onde, satisfeitas, o licor suave do retumbar do vento carregava em suas costas o embalo, permitindo com que riscasse a canção por entre as portas abertas a fim de encher seus ouvidos, os quais estavam revolvidos pelo cachecol denso que havia sido forçada a usar pela filha de Atena.

A pequena piscou os olhos, enxotando os indesejados flocos de neve em que, por razão de sua aderência, aglutinava-se em seus cílios, seu queixo levantado enquanto sua cabeça tombava para trás, os cabelos presos dentro do cachecol enrolado em seu corpinho miúdo e encolhido. Ela comprimia seus lábios levemente arroxeados, sentindo os pingos enregelados desabarem em sua pele, e tocarem a superfície de sua testa, bochecha e nariz, o qual agora tingia-se de um rubor vindo da frívola e gélida carícia e rastros que a neve lhe oferecia. A garota observou os traços do céu, estranhamente moldados em nuvens dispersas de um trecho da cidade, enquanto a clara parte metade dividia-se, em uma nítida e rebuscada cisão, onde massas aglomeradas e cinzentas sobrecarregadas flutuavam e pairavam sobre sua cabeça. Sua testa franziu-se, em uma confusão coerente. Ela tateou o bolso do casaco demasiado grande para sua estrutura delicada e diminuta, porém ela pouco lixava-se com tal detalhe. Minunciosamente ela examinava os céus, enquanto rugiam longínquos trovões que ameaçavam aproximar-se e descansar em suas posições. Silena mordeu o lábio inferior, e deslocou seu foco de atenção, mirando em um galho enegrecido e vacilante, oscilando ao som do vento, da dança esporádica a qual sacudia seus braços levantados e abertos. As perninhas da garota divagaram, movendo-se e reestruturando sua sustentação. Mudou de peso, tentando equilibrar em harmonia a sua simetria sutil que distendia sua sombra em sua extremidade esquerda, na direção do sol enevoado e oculto em meio a pomposos contornos de formas fulgurantes retorcendo-se acima.

Seu pai ficaria furioso se descobrisse o que acabara de fazer. Ou bem, o que estaria prestes a coagir, e por fim acontecer. Não decorrente de uma ideia inconstante, ponderava sobre sua decisão a um longo instante desde que acordara naquela madrugada. Porém, que importância teria? Caso não consertasse o estrago que promulgara, provavelmente ela seria uma inexistente criatura abandonada e esquecida em uma linha temporal rachada.

Hm, hm. Prometo lavar os estábulos quando chegar, papai. Silena realçou seus lábios para cima, em um sorriso enviesado e breve. Apreciava os sinos translúcidos que as pontas do auge das árvores secas do inverno alojavam; seu ecoar de badalares frescos e belos, sua doce sinfonia sincronizada com a dança ritmada das silhuetas dos fios que adornavam envolta as ruas, as casas e as emergentes vegetações eventuais. Suas pálpebras fecharam e abriram-se perspicazes, em uma astúcia minúcia da paisagem. Baixo, cima, cima, baixo, inverso e contrário, ao mesmo tempo que sensatamente direcionadas em sua posição habitual. Percy normalmente não a deixava deitar sua cabeça na beira de sua cama e deixá-la dependurada no oco espaço, enxergando o mundo em um salto de cabeça para baixo, enquanto sentia sua testa esquentar e sua mente abrandar em uma leveza aérea, uma respiração despretensiosa, assim como os pensamentos. Dizia poder sufocar. Não... sufocar? Silena duvidava que algo pior do que beber o sangue de górgona pudesse acarretar em sua composição, entretanto obedecia as ordens as quais era comandada a receber.

Contudo, naqueles inusitados instantes quando Percy anuviava sua cautela, ela escorregava pelos cobertores, arrastava-se até a beirada e em um argucioso movimento, propelia sua cabeça para um mergulho abaixo, do beliche de cima, com seu pai abaixo, muitas vezes com suas madeixas ligeiramente encaracoladas flutuando, imaculada e etérea, em um sublime balanço gongo, alguns centímetros de distância do filho de Poseidon. Naqueles curtos segundos, apenas deixava-se vaguear pelo interior do chalé; e, enquanto seu pai não notava, analisava-o estudando mapas ou limpando pérolas que, raramente, encontrava quando ia submergir em companhia da filha no mar quando esta insistia para passarem a tarde reunidos. Como em família. Uma família que embora estejam muitos membros separados, estão unidos em um só propósito e desejo, naquele momento.

E enquanto arrebatava a cabeça para trás, pelejando os contornos dos detalhes escrupulosos dos objetos e das naturezas do abstrato, ela pôde ouvir em um baixo murmúrio da advertência rigorosa do pai, que apesar de tentar endurecer a feição e sombrear o rosto com severidade quando a corrigia, não era capaz de submeter-se a uma obstinada supressão, e fraquejava ao enternecer seu timbre e atenuar o semblante contraído. Nos momentos quando ele ralava com a pequena, Silena o encarava com uma inalterada e cândida concentração, os lábios levemente separados em compenetrada e densa reflexão de como seu pai aparentava disputar uma batalha interior em um fulgor incomparável, enquanto fazia caretas e assemelhava-se a Quíron com dor no quadril. “Silena Chase Jackson! O que você pensa que está fazendo?! Não vai querer ter um oceano tumultuoso ondulando em sua cabeça. Acredite em mim, é pior do que ter de suportar Ares a sua frente... Desça já daí, pequenina”.

Silena abaixou a cabeça, enterrando seu maxilar no aconchegante cobertor roscando-se em seu pescoço. Seu pai... como estaria? Ela chutou com suas botas impermeáveis, que eram duplamente maiores que seus pés, a neve impregnada em sua sola. Apesar de transpor menos camadas de roupa do que o usual quando tinha a oportunidade de visitar Thalia nos recantos nevoeiros onde ela e as Caçadoras ultimamente estavam empreitando, ela não sentia frio. Sua mandíbula estava trincada e seus dentes cerrados, atritando uns aos outros, contudo sentia-se adequadamente aquecida.

Uma brisa escorreu pelo espaço ao seu redor, rindo de sua estrutura frágil e vulnerável. Silena verteu seus lábios em um bico equivocado, um muxoxo indiscreto. Espirrou, contrariada, e seu corpinho estremeceu enquanto suas mãos voavam para a parte inferior do rosto, que embora o ar golpeasse sua superfície, ainda penetrava um calor constante cujo impetuoso ardor emanava de sua pele. Mantendo as mãos em suas bochechas, ela aconchegou o queixo acima da camada densa do cachecol o qual encobertava seu pescoço e clavícula, e, inspirando profundamente, soprou uma condensada expiração pesada e trêmula. Estava exausta, apesar de houver descansado pela noite, aparentemente, mais longa de sua curta vida. Seu nariz estava enregelado e em um ardiloso fulgor decorrente dos dentes cautelosos de correntes da fugaz caminhada dos submissos servos de Éolo. Suas bochechas coravam instantaneamente ao contato vibrante do toque amistoso e acolhedor da umidade suave e jocosa que se divertia em se empreitar pelos fios de seu cabelo os quais delineavam seu rosto e curvavam-se em leveza e em uma ligeira forma de arco na região de seu pescoço, alguns tufos desajeitados colados a nuca e com as pontas dos longos cachos ocultos pelo seu casaco espesso e amortecedor, o qual ela surpreendentemente suava.

Aguardava, paciente, no degrau da porta da casa, a sua mãe. Não havia pressa, o silêncio aglomerava-se em colunas enfileiradas pelo caminho, como se indicasse à ela o trajeto que devia seguir. Nenhum ruído era extraído das extremidades, uma vez que o trânsito interrompera seu percurso pela intercepção da vil onda de neve acumulando-se nas estradas. Apenas, ao longe, sendo carregado como que nos braços de uma mãe, ninando-a, acalentando-a e acobertando-a em seu infindável retalho de escolhas em diversas possibilidades de uma encruzilhada. Silena, de certa maneira, sentia-se em uma singular paz a qual tentara desfrutar serenamente. Esfacelou qualquer ímpeto de ira, dor ou preocupação em relação ao seu presente, e palpável futuro, e deixou-se vagar pela paisagem concreta da brancura imparcial. Ela esmagou um trecho de neve que revestia o chão, aproximando-se da borda do degrau, e estendeu o braço, abrindo as mãos em um receptivo acolhimento de uma minuciosa pontada de neve, a qual foi permitida repousar com cautela em sua palma enluvada. Silena retirou as luvas, delicadamente, e abrangeu três flocos distorcidos e assimétricos na macia almofada do íngreme declive de seus dedos, onde os abrigara como pequenas criaturas desproporcionais e racionais.

–Mamãe está demorando, não está? –sussurrou em um rouco e secreto balbucio, um nervosismo circulando pelas suas veias. –Será que papai já acordou?

Apropinquando sua mão para o nível de seus olhos, analisou as formas que continuavam a se abrigar em sua cálida palma irrequieta, com os dedos agitando-se involuntariamente. Elas derretiam, minando suas energias vibrantes e vigentes, reduzindo-se a um fiapo de água, como gotas de lágrimas... Como as lágrimas de mamãe.

Silena inclinou a cabeça levianamente para o lado, observando-as escorrer pela sua mão e cair no solo entre seus pés. Elas espelhavam a porta entreaberta, distorcida e túrbida em um vislumbre bruxuleante e enevoado da esperança da pequena de reconhecer o que estaria para vir, um inesperado e incoerente abrigo onde afundaria. Acordara naquele dia com um hostil e incomum fervor que subia-lhe nas entranhas, aparentando esmigalhar as paredes de seu intestino e usá-las como cordas bambas de uma brincadeira decrépita. Mas resolvera não relatar a ninguém sobre o incômodo imprevisível. Apenas tentara ignorar, com certo desconforto, aquela sensação que crescia em seu peito, um breve e ligeiro pânico realçando sua mente e tocando seus pensamentos, provocando um instinto involuntário de correr e encontrar uma abertura para seu tempo. Ela não pertencia ali. E era como se todas as forças do passado a estivessem pressionando e acorrentando para que ela fugisse, enxotando-a e tentando transpassa-la com uma adaga afiada, perfurá-la com o próprio cajado do tempo, ferindo-a e atingindo-a com flechas que pontilhavam sua mente despreparada; ela tinha de ocultar-se, tinha de retornar. Mas não agora. Não depois de ter causado aquilo com os pais. Portanto, tentara utilizar aquela crosta armada do degelo para revestir a si mesma com uma carcaça relativamente resistente. Sim, era indefesa. Mas tinha de conseguir sobrepujar aquela pressão amargurada e pesarosa que impulsionava contra ela uma poderoso contra-ataque que sua mente infantil e inexperiente não podia suportar; não era capaz de aguentar. Suportar bem, suportar os irrevogáveis sofrimentos como mamãe fez, como papai sempre o faz... não, não conseguia. Aquele aconchegante travesseiro o qual repousava sua cabeça parecida dissolver-se juntamente com a casca bravia da neve. A cristalina e calada expressão glacial indecifrável, tracejava-se em meio a linha de sua palma, levando-a a um disfarçado torpor medíocre das aflições agonizantes que feriam e castigavam as costas oprimidas da pequena Silena.

Você não me dissera que isso aconteceria, Al. Onde você está?

Os raios do sol mal eram vistos naquele céu cinzento e soturno, com os delineados contornos tétricos de nuvens inescrupulosas. Imobilizada, Silena fitou acima de si, com o rosto abaixado e uma alastrante agonia martelando seu braço, onde carregava as gotas liquefeitas que pingavam pautadas e metódicas na neve sob suas botas, moldando seu caminho. Franziu a testa, as sobrancelhas unindo-se como acontecia com o semblante de seu pai. Pássaros, que conforme sua visão remota apareciam em um ponto preto minúsculos, circulavam ao redor da direção onde era para o enorme globo amarelo estar. Ela levantou o braço e deixou escorrer pelo seus dedos as gotas, enxergando-as atravessar sua respiração em forma de vapor frio e reluzindo diante do brilho inofensivo de um taciturno sol afogado.

Você está bem, Apolo?

–Silena? –a voz sobressaltou-a, drenando a cor de seu rosto e fazendo-a virar abruptamente, o que resultou em sua perda de equilíbrio. Ela sacudiu os braços, empertigando as costas e em tentativas vis de buscar um firme afinco para seus pés aderirem o solo; algo impossível uma vez que a umidade desviava os flocos e fazia-a deslizar. Uma mão forte e decidida apanhou seu braço e segurou-a, impedindo-a de colidir com o chão. Seu coração batia descompassado e dolorosamente contra seu peito, em um cruel e espontâneo ímpeto em avolumar as constantes e duras investidas em seu corpinho quebradiço e atrofiado. O excesso de adrenalina fez despontar sobre si uma maior quantidade da estranha queimação em seu peito, o que fê-la arfar. –Pronto, eu a segurei. Não vai mais cair.

Percebeu estar com os olhos cerrados, os dentes trincados e os ouvidos zumbindo. Queria gritar e expelir o que quer que estivesse reagindo em seu estômago, em sua mente. Mas não podia. E não permitiu que qualquer rastro aparecesse em seu rosto quando abriu os olhos, tentando amenizar os pensamentos e apaziguar seu coração. Annabeth encontrava-se a sua frente, agachada a seu nível, e com os olhos acinzentados escurecidos pela preocupação. Sua testa enrugara-se, estudando-a e analisando-a. Os dedos da mão de Annie deslizaram pela sua face, ajeitando a franja de seu rosto e acariciando seus cabelos. Deu um sorriso tremeluzente, com a esperança de dissipar a desconfiança de sua mãe. Embora Annie tenha cedido suavizar seus traços, ainda mantinha-se alerta.

–Você está bem, pequena? Se machucou? –perguntou, com delicadeza e um toque de cautela, a loira. Silena engoliu em seco, aprumando os ombros e endireitando a coluna. Ela anuiu com a cabeça, forçando um sorriso enviesado explodir de dentro de si, quando parte de seu cérebro, importunado e obsesso, defrontava-se com seus pensamentos e perspectiva para implodir, ou entrar em combustão. A pequena obrigou-se a empertigar-se e segurar os pulsos da mãe de maneira afável.

–Estou sim. –olhou para os lados, sentindo alguém empreitando a região, como se a espionasse e examinasse seu fácil acesso e vantagem em desestruturá-la. Porém, não conseguiu distinguir figura sequer, contudo notava, pelo canto dos olhos, um solícito movimento a qual embaralhou seu cérebro. Ela franziu o cenho por um instante, tornando àquele ponto, focalizando-o e concentrando-se nele, porém nada alterou-se, e aquela visão de movimento apagou-se de sua frente como se nunca houvesse surgido. Percebendo o fitar da mãe sobre ela, logo reatou a expressão original; tranquila e atenciosa, o olhar dócil como de um golfinho, pensou, divertida, Annabeth. –Estou exceptiosamente bem.

Annabeth sustêm uma risada, que refreia no meio da garganta. Silena a olha espantada, curiosa de súbito. Ela inclina a cabeça para o lado, fazendo peso na mão esquerda da loira, cuja mão englobava com afeição no rostinho da garota. Esta, quando abre a boca para articular uma questão, é interrompida pelo som da gargalhada da mãe. O primeiro riso da manhã que tilinta como uma harmonia única, acolhedora, conflitante ao mesmo tempo que reconfortante e nostálgica ao soar pela audição de Silena. Os cinzas soturnos e incompreensíveis desanuviaram e tornaram-se obséquios, enigmáticos, clareando-se sob algo que Silena não conseguia decifrar.

–Você quer dizer... excepcionalmente? –Annie sugere, deslocando uma mecha de seu cabelo para trás das orelhas, Silena analisou-a com seus enormes e cintilantes de admiração. Imitando a mãe, ela empurrou uma mecha, desajeitadamente para trás das orelhas, as quais retornaram para a testa, aborrecendo-a e fazendo-a trotear seus dedos pela superfície do rosto em três tentativas insistentes que apenas fizeram Annabeth encantar-se e alargar seu sorriso que iluminou a perplexidade de Silena. Ela desistiu de seus cabelos obstinados e curvou suas sobrancelhas em determinação.

–Foi o que eu disse. –Silena fez um muxoxo com os lábios, estufando a bochecha, adquirindo uma postura sensata ao tentar ser como sua mãe, algo que ela imaginava se transformar quando crescesse, e algo que se orgulhava e regozijava ao ser comparada com a Filha de Atena, no seu presente, e no futuro perdido de Annabeth. Reiterou, astuta. –Sepcionamente.

–Excepcionalmente. -corrigiu Annabeth, em uma dedicada paciência, fervoroso enternecimento. Silena, emburrada, bufou de discórdia.

–Sim! Sim! Excepcio... –começou e ao hesitar, vacilando em sua própria confiança concernente a sabedoria a respeito da palavra.

–...nalmente. –completou Annabeth, notando a careta que Silena faz ao dizê-lo, surpreendentemente como ela antigamente ficava quando era corrigida de algo a qual assegurava estar correta. Porém, logo após, foi possível visualizar em seu semblante a feição desapontada e desnorteada do Cabeça de Alga, quando estagnava em uma informação e era repreendido por ela. O que fê-la se lembrar do seu Percy, de sua contenda e de sua necessidade em voltar a ele e pedir-lhe o perdão. Seu coração retraiu-se como se um gancho o estivesse rasgando, vagarosamente, em uma lentidão proposital, apenas para seu ressentimento contra si mesma expandir-se e abrigar todas as lacunas vazias de seu âmago, amargurando quaisquer espaços que Silena havia preenchido. Seu sorriso murchou-se, tornando-se em uma infeliz reta. Não vamos nos separar, nunca mais.

E então a voz reapareceu, resgatando-a.

–Eu ia conseguir... faltava apenas o resto. –a criança murmurou baixinho, e ergue seu queixo, fixando-se em sua mãe, a qual empenhou-se para dar um sorriso, que embora fosse verídico, límpido, ainda salientava um sonoro toque de amargor e melancolia sofrida, não abandonada por completo em seus pedaços estilhaçados cuja afiada e cínica ponta infiltrava-se na sua preocupação transcendente. Preocupação do quê? Meneou a cabeça por um lacônico instante, alígero o suficiente para passar despercebido pela pequena. Annabeth inspirou profundamente, e estancou a apreensão que aflorava incessantemente dentro de si. Sabia que devia confiar em seus impulsos abruptos, em sua aptidão inata, porém, não agora.

Ela agachou-se, armando-se de um sorriso complacente e transbordando bondade e carinho. Assim que ficou ao nível da pequenina, ela encarou fixamente seus olhos esverdeados, em nítida fantasmagórica formação nebulosa de ansiedade. Conhecia aquele olhar. Conhecia mais do que deveria. E a ruga que trilhou em sua testa foi camuflada pela branda expressão de Silena. Aquela expressão ingênua, a qual transformava as catastróficas nuvens cinzentas de tempestade em um claro céu despontando uma luz refulgente, acalorada e afável. Como aparentemente fazia com frequência no coração de Annabeth, dissolvendo camadas de gelo frívolo e cortante, cujas lâminas gotejantes rasgavam-na em finas tiras. Ela conseguia reconstruí-la e trazer sua sanidade de volta.

–Silena, -a pequena encolheu-se bruscamente na pronuncia de seu nome, o tom de Annie soando sensato e intenso, de certa forma seu timbre moldando uma contração mais madura do que ela costumava sobrecarregar quando normalmente dirigia-se a garotinha. Movendo sua mão, apanhou os dedinhos enluvados de Silena, laçando-os como se uma sede a houvesse acobertado, uma sede exasperada de tê-la por perto e protegê-la, e um temor... um temor de perdê-la e nunca mais encontrá-la. No canto de seus lábios, edificou um sorriso suave e terno, quase instantaneamente ao elevar sua mão e pousá-la na lateral do rosto da pequena filha desconhecida. A garota inaugurava uma feição ao mesmo tempo ausente e reclusa, firmemente enraizada a sua frente e com uma energia regente de fugir de sua presença. A garganta de Annabeth contraiu-se, retraindo-se em temerosa confidência. Ela testara aquela frase inúmeras vezes em sua mente, contudo, como poderia passar a pequena sua preocupação, se mesmo ela envergonhava-se do que iria dizer? Afinal, ela deveria compreender com exatidão os passos que daria. Porém, não era exatamente o que estava ocorrendo. –Eu preciso que você me diga algo.

Silena aquiesceu automaticamente, dedicando-lhe um olhar fixo, o qual mesclava-se com o pavor de ter sido descoberta, e a incerteza sobre o que viria a se desencadear. Ela não poderia ter deixado escapar muita informação sobre si mesma, teria? Se ela ao menos soubesse... No entanto, tinha uma profunda convicção que era capaz de espantar quaisquer vestígios de deduções, ou suposições, aceradas as quais conflitavam-se em exceder sua demonstração. O que ela poderia fazer para abrandar, entorpecer, os equívocos? Talvez deveria seguir alguma instrução imediata e repentina, seu instinto, quando isto ocorresse. Se ocorresse...

Silena abaixou ligeiramente o queixo, seus ombros encolhendo-se inusitadamente, um nó formando-se no estômago, apertando-se e atenuando-se em uma acentuada queimação frenética, que esperava que se acalmasse, assim como esperava que seus batimentos cardíacos repentinamente acelerados se abrandassem. Estava ansiosa, apreensiva. Desde a conversa da noite – ou seria madrugada? – ela não conseguira harmonizar seus pensamentos agitados, repreendendo-a por seu interino exaspero extenuado. Embora tentasse ser remotamente lembrada como uma garotinha determinada e valente, verídica e sábia, sagaz e preparada, tudo o que conseguia transpassar era insegurança, temor, e confusão.

–Sim? –sua voz não era mais que um fino aviso advertido, um fio de sua tonalidade original a qual havia se descascado e reduzido a uma mínima e parva decadência sonora. Annabeth franziu o cenho, porém não fez perguntas. Percebeu pela sua postura que algo a incomodava, não havia necessidade de aulas a respeito de expressões corporais. Era evidente.

Agachando-se, ela acobertou as duas mãozinhas de Silena e docilmente suplantou os temores, atenuando os cantos dos lábios em um meio-sorriso constrangido. Flocos de neve começaram a acumular-se no topo da cabecinha da pequena, derretendo e escorregando pelos fios fiados por redemoinhos.

–Você vai estar ao meu lado quando chegar até o fim desse caminho? Não sei se vou conseguir sozinha... heróis também sentem medo de aceitar que erraram, sabe? –Annabeth escorregou o dedão em sua palma para aquecê-la, e obteve um largo sorriso compassivo da criança, cujas bochechas libertaram uma vívida tonalidade rosada, como se o sol houvesse resplandecido subitamente por entre as nuvens que a escondiam de modo exemplar. Ela assentiu, frenética, confirmando o que Annie aliviou-se em poder receber: a terna e doce Silena que encontrara naquele dia, primeiro dia, quando fascinara-se pelo encanto sincero da pequenina. –Ótimo, muito obrigada, princesa... está pronta para ir? –atritando a palma de suas mãos em seus bracinhos, acrescentou com preocupação. –Agasalhou-se bem? É uma longa jornada.

–Já passei por jornadas mais rigorosas! Não se preocupe. –sua determinação ao endireitar-se, ereta, fez Annabeth arquear as sobrancelhas. Jornadas mais rigorosas, sim? Ela ansiava por descobrir quais eram. Porém, antes de ter a oportunidade de associar as devidas perguntas, Silena agarrou sua mão e impulsionou-se para frente, rompendo o estado inerte da loira e arrematando-a em sua direção. –Vamos, Annie! Estamos perdendo tempo. Vamos logo!

Seguindo o olhar destemido da princesa, ela viu a expectativa, energia e perseverança a qual recordava-se com clareza de observar em todas as empreitadas que já passara... aquele olhar, absurdamente semelhante com os verdes-mar tão conhecidos. Aquela expressão vigorosa, confiante, tal como a dele. Desde aquela primeira missão, aos doze anos.

Percy.


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Notas finais do capítulo

Uuuuhu, e então? Eu havia estagnado em uma época difícil que tive, mas espero ter conseguido trazer para vocês o que suas expectativas formulavam. Sinto muita falta de vocês! E agradeço a cada um que comenta, e permanece comigo.
A capa do Sangue do Olimpo está muuuito linda, não é? Mal consigo aguardar. O que vocês acharam? Uma nota? *-*
Reviews? (:



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