É engraçado como tudo passa rápido. Há 16 anos meu pai morreu, e 11 anos atrás supri a necessidade de um. Nessa época minha mãe me deixou também, quer dizer, era como se ela não estivesse lá. Desde então temos sido só nós dois. Somos como Yin e Yang, ele precisa de mim, e eu dele.

                Lembro-me de ter sido uma criança normal, eu brincava, conversava com meus amigos, dormia na casa deles, e até os levava para dormir na minha casa. Ninguém nunca desconfiou de que eu era atormentada todas as noites por um ser que somente eu e minha mãe sabíamos existir.

                - Por que tens medo? – Ele me perguntou em uma noite chuvosa, como a primeira em que o vi.

                - Não tenho medo. – Respondi, mas minha voz dizia o contrário.

                - Nem precisa ter, minha querida. Não lhe farei nenhum mal.

                - Você faz mal a todos, porque não a mim?

                - Eu a escolhi.

                E desde esse dia não tenho mais medo.

                Venho criado um vínculo estranho com ele, é como se o meu dia só funcionasse com sua presença. Tento encobrir tudo isso com a bebida, mas sempre que retorno ao meu estado sóbrio tudo fica pior.

                É engraçado também como eu só me lembro de coisas que o envolvam. Não me lembro de primeiro beijo, primeiro filme de terror, nada disso, só me vem à cabeça coisas relacionadas a ele, como quando eu estava na praça da cidade, brincando com as outras crianças e então ele apareceu em meio às árvores. 

Um homem alto de terno e gravata. Sem rosto. Acho que fui a única que o vi, e então corri atrás dele para o meio da floresta, onde ele se abaixou e me deu uma bala. Aquela foi a bala mais deliciosa que já comi, uma mistura de doce e azedo. Sorri para ele, e então ele me tomou em seus braços e me colocou em seu ombro. Andamos a floresta inteira em um ritmo acelerado, apreciando tudo. Então voltamos.

Sinto como se fôssemos ligados de alguma forma, como se não desse para quebrar as correntes que nos envolvem juntos. O que me intriga é que, bem, não sei como será a partir de agora, mas espero que não mude.