Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 23
Uma rede chamada Dakota Marshall




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Me viro, abrindo rapidamente a mochila e entregando a rede para Dakota. Nem dá tempo de nos sintonizarmos, Dakota dispara como um guepardo, desaparecendo na primeira curva.

Eu e Zen nos encaramos logo em seguida e, numa troca eficiente de comandos, corremos, parando no fim do corredor para observar o movimento na campina à nossa frente. Silenciosa e reluzente. O vento faz o capim verde deitar e a luz do sol reflete no cume da Cornucópia, dourada e coniforme.

É nossa única chance. Depois de alguns breves minutos, ouvindo as respirações um do outro, decidimos que chegou a hora.

Um calor característico dos momentos de adrenalina, me invade antes que eu dê o primeiro passo, percorrendo todo o meu corpo com leves arrepios. Semi-serro os olhos diante do brilho solar, mordo o lábio inferior – numa tentativa frustrada de abafar o medo e a excitação – e respiro fundo.

Sem hesitar, partimos como flechas, esmagando o capim ressecado, um passo atrás do outro, respiração inflando, uma expectativa corrosiva roendo nossas costelas. Zen, vem pouco atrás de mim, tentando me acompanhar, esticando o máximo que suas pernas finas e curtas podem alcançar.

Atiramos nossas costas contra a parede quente e lisa da Cornucópia. O perigo paira ao nosso redor como uma nuvem de vespas. Zen, prevendo o que acontecerá em seguida, se agacha rapidamente. Vejo uma pedra cinzenta em sua mão. Ele acena confirmando, preparado.

Aguço minha audição, mas não ouço nenhum ruído vindo do interior do monumento. A quietude pode ser um mal sinal. E se os Carreiristas não estiverem lá? O nosso plano iria por água abaixo...

Sinto o gosto de ferrugem na boca... somos as iscas... Ah meu Deus, e se nada der certo? E, se nesse exato momento, a morte estiver pairando sobre mim? Nunca a temi tanto, tudo pode ter sido em vão se eu acabar morrendo nessa emboscada... Eu prometi à Annie, aos meus pais, todos estão sofrendo por minha causa... Eu prometi! Fecho a mão, apertando até as unhas furarem minha carne e os nós dos dedos embranquecerem.

Zen aguarda o último sinal para atacar. Uma lágrima arde no meu olho direito.

–- Vamos lá. – sussurro, assentindo com a cabeça em resposta.

O garoto fecha os olhos e também deixa escapar uma lágrima silenciosa.

Atacamos.

Ao adentrar a abertura da Cornucópia, pisamos num solo mais preciso e liso. Meus instintos apitam, não empunho nenhuma arma ou instrumento, eu sou uma isca agora, sou responsável por atrair a caça, não por combatê-la. Abro os braços, na posição mais vulnerável que consigo imaginar... o sangue corre mais rápido, o coração salta e meus olhos semi-serrados se abrem por completo.

Nada. Silêncio.

Instinto apita. O peixe não pescou o tubarão.

Dan e Irina não estão aqui, mas o perigo está se aproximando... Eu sei, eu sinto!

Olhamos em volta, assombrados, surpreendidos, temerosos. Medo, angústia, tensão, raiva, dúvida... tudo começa à girar, o vento assobia, tropeço numa mochila largada.

–- Não tem ninguém aqui, é melhor a gente ir embora... – Zen alerta, preocupado.

Engulo em seco e concordo.

O som do canhão foi ensurdecedor, me sobressalto, confiro se Zen está vivo e me deparo com a face empalidecida do garoto. Desesperados, corremos de volta para a saída, mas antes que tivéssemos chance de escapar, duas sombras surgem, tapando os únicos arcos de acesso do chifre.

Dan sorri para mim. É um sorriso sofrido, abatido. Ele está coberto de arranhões, sua blusa está rasgada em vários pontos, expondo cortes profundos e amarelados por pus, um imenso cascão fez uma crosta marrom abaixo do seu olho esquerdo e um buraco vermelho na cabeça manchou algumas das suas mechas loiras.

A cara debochada e cheia de covinhas não parece mais a mesma, o Carreirista valentão está frágil, mas ainda é capaz de segurar na face alguns resquícios de crueldade, tentando me intimidar.

Irina, logo atrás de mim, aponta um grande facão de bronze para o peito de Zen. Sua cabeleira ruiva desalinhada, lhe dá um temível aspecto felino, voraz. A convicção e o ódio profundo com que nos fuzila é desconcertante – passamos a perna nela uma vez, e ser feita de boba deve ter sido uma facada certeira no seu ego carreirista – Irina está sedenta, sem paciência para joguinhos, pronta para fincar essa lâmina em nós.

As posições se inverterão mais uma vez, eu e Zen devíamos estar no lugar dos Carreiristas, à um passo da fuga, mas acabamos encurralados, rendidos. Como conseguiremos fugir? Ah, meu Deus, não, não pode ser, chegamos tão longe para morrer na praia? Dakota, ela não pode fazer nada, está no labirinto, esperando por nós. Como conseguiremos fugir?

Miro os dedos encolhidos, em garra, de Dan. As gotas vermelhas de sangue deslizam entre eles e pingam no piso liso da Cornucópia. O sorriso sumiu. Reconheço o pequeno machado que ele está segurando, e volto á engolir em seco, imaginando a reação aterrorizada de Annie ao me assistir ser decapitado – embora duvide que ela mantenha os olhos abertos diante do televisor.

–- Ué, o que o gnomo e a sereia vieram fazer aqui? Ta com sedinha é...? Ou será que ta com fominha? Oh, deve haver um motivo muito forte para obrigá-los a recorrer à nós... afinal, cara a cara não é muito o estilo de vocês... – rouco, Dan atropela as palavras, mas não deixa de existir certa frieza nelas.

–- Respondam! Ou morram sem direito à última palavra! – a impaciência de Irina não me surpreende. – Vamos seus filhos da puta! Digam!!!

Zen olha para mim – os olhos bem abertos, a face pálida reluzindo, as mãos tremendo violentamente – transparecendo dúvida e insegurança.

–- Ah, compramos o silêncio de vocês, não tem problema! Dan, pode matar, não temos nada à perder! – Irina ordena, Dan levanta o machado.

–- Com todo o prazer. – o rapaz prepara para fincar o instrumento em mim.

–- Dakota! – grito por fim, desesperado – Dakota! – continuo à gritar, as gotas de saliva respingando na cara de Dan, franzindo a testa até uma grande mancha vermelha começar á se formar na região. – Dakota!

–- O que tem aquela vadia ordinária?! – Irina decepa meus gritos.

–- Dakota nos traiu. – Zen responde, melancólico, surpreendendo-me a facilidade com que despejou a mentira. – Tentou nos matar com a espada do Finnick, obcecada pela vitória, mas antes que houvesse uma morte, fomos interrompidos por uma onda de escorpiões teleguiados.

Pasmo, espero a reação dos Carreiristas.

–- Aquela vaca pode ser tudo, menos burra... Porque ela iria abandonar o Finnick antes de nos tirar do seu caminho? – a pergunta de Dan vem com um tom mais sério dessa vez. Os dois estão acreditando na história de Zen!

A fluidez e convicção com que o garoto responde, me espanta novamente.

–- Porque, antes de qualquer coisa, ela queria ter o prazer de matar o Finn.

Dan assente. Irina não diz mais nada. Os dois se convenceram com nossa história, mas continuam com as armas em punho. A tensão com que nos encaravam, se esvai, os ombros de Dan relaxam, o tradicional e puramente cruel sorriso desenhando seu semblante. A garota mantém o facão apontado para Zen, limpa uma gota de sangue no canto da boca e começa á caminhar lentamente em direção ao meu aliado.

Salto para trás quando Dan gira o pequeno machado entre os dedos, o brilho esverdeado das esmeraldas me lembram os olhos da minha mãe quando ela chorava, e a visualizo, em frente à um televisor, limpando as lágrimas e apertando a mão do meu pai com toda a força, sendo consumida pelo medo de perder o único filho.

O pontinho vermelho brilha no teto arredondado, uma micro câmera, nos transmitindo, ao vivo, para o país. Espectadores apreensivos, distritos mergulhados no silêncio da expectativa. Penso nos meus patrocinadores, e em como todo o esforço que fiz para conquistá-los foi em vão. Menti para o Zen, sobre a Annie, desfilei nu, fiz mulheres desmaiarem na platéia, dei meu sangue no treinamento... E agora eles sumiram! Nem mesmo uma espada descente eu tenho!

Mais dois passos e minhas costas encontram as de Zen, não se ouve um ruído em quilômetros. Imagino Dakota, em posição de ataque, rede em punho, silenciosa, alerta, lançando seus olhares vorazes para todo lado.

–- O jogo acabou para vocês. Faço questão de acabar com as esperanças daquela cadela de matá-lo, peixinho... Dois peixes com uma única rede? – Dan ri, sarcástico – É uma oportunidade única...

“Vamos ver quem cai na rede de quem Dan...” estou em ebulição, rangendo os dentes de ódio.

–- Não. Eu fico com o Finnick. Você resolve como vai eliminar o gnomo. – o corte rápido da garota silencia Dan.

Sussurro para Zen e ele compreende rapidamente.

É muito rápido.

Dan e Irina percebem o movimento, mas já é tarde demais. Os sorrisos evaporam, a adrenalina volta à correr e, entrelaçando os braços de Zen nos meus, levanto o garoto com com o quadril e ele aplica um chute certeiro no rosto de Irina. A vadia tem o grito abafado pela sola da bota de Zen e é arremessada pela arco de entrada.

Uma veia se dilata na testa de Dan, a carranca de ódio do garoto me dá arrepios. Avanço em sua direção, mas lembro... estou sem armas, precisamos fugir, os conduzir até a emboscada! AHHHH, a lâmina corta o ar ao meu lado, me desvio outra vez e outra e Dan possuído de ódio, descontrolado!!!

O breve instante em que a lâmina do machado finca na parede da Cornucópia, há silêncio, troca de olhares alterados e um segundo fatal. Ouvimos rachaduras se formarem depressa, e antes que Dan pudesse respirar, corro. Sou decapitado sem piedade, não, não, no último segundo eu me agacho!!!

Uma pedra passa zunindo logo acima, acertando o rosto de Dan. O grito monstruoso de dor ecoa no interior do chifre, o garoto começa a golpear às cegas, urrando, livrando a saída.

Zen passa por mim como uma bala, mas Irina surge na sua frente! Descrente, olho para a outra saída, a garota deu a volta por fora do chifre. Fico de pé num salto e corro para o lado oposto, Zen me segue.

Fugas pela sobrevivência. Eu já cansei delas! Mas não tenho tempo de pensar nisso agora, o mundo em volta é apenas uma confusão de borrões. Vislumbro um cadáver masculino ao longe, completamente mutilado, e a barriga de um aerodeslizador se aproximando da campina. Tento sintonizar qual a entrada certa para a região onde Dakota se encontra. “Terceira curva à direita...” , relembro as palavras dela... “ a entrada em frente ao arco sul da Cornucópia”.

Atônito, freio o passo bruscamente e Zen se esbarra em mim. Começo à correr na direção oposta e ele me segue. O suor escorre por todo meu rosto, fervendo os miolos que saltam dentro da minha cabeça.

“Por Favor... não pode dar nada errado...” peço mentalmente, engolindo em seco.

Ouço passos esmagadores atrás de mim. Irina e Dan se aproximam. Acelero a corrida, chegando aos poucos ao meu limite. A impressão que tenho é de que minhas pernas irão se soltar à qualquer momento... “ A vitória está próxima...”

Deslizo na entrada do labirinto. Sinto a breve sensação de liberdade se extinguir bruscamente ao ficar, mais uma vez, entre as paredes do imenso labirinto de vidro. Rachaduras assustadoras lançam arco-íris descoordenados de luz em todas as direções, os galhos estão enlouquecidos, se enroscando rapidamente, dando a assustadora impressão de que fogem de mim.

Dakota, nós estamos chegando.

Os Carreiristas estão sedentos por sangue, querem a minha cabeça e a de Zen, a decisão e violência dos seus passos me assustam, acelero o passo, isso ainda não acabou!

O Segundo Golpe. Os Jogos estão chegando ao fim...

Segunda curva à direita...

O último corredor surge à nossa frente, derrapo um pouco e os primeiros efeitos do desespero amarram minhas pernas, abafam minha respiração, cegam meus olhos. Uma curva para a vitória. Salivo, saboreando a vingança tão próxima...

Porém...

Dakota surge antes do esperado.

Silêncio. Confusão, descrença, angústia... compreensão...

O medo esmaga todo o meu ser com uma violência surreal como nunca aconteceu antes. Freio o passo bem à tempo de ver um sorriso cruel e triste ganhar forma na face angelical e sardenta da minha primeira inimiga. O terror empurra meu coração pelo esôfago até a garganta, todas as veias do meu corpo se contraem e o sangue desaparece da minha face suja e chorosa.

“-- Só quero te dar um último conselho. Muito cuidado com a sua coleguinha, a Dakota. Ela é realmente perigosa, dissimulada.”

–- Não... – sussurro, quase inaudível – Não... – as palavras embargadas vêm com um arrastar torturante – Você não pode nos trair assim...

Os Carreiristas se juntam ao espetáculo, surgindo no início do corredor. Antes que atacassem, no entanto, interrompem os passos para observar a curiosa cena.

–- Dakota, por favor... – isso não faz sentido.

Rezo para que seja apenas um pesadelo, o pior da minha vida, mas ainda assim um pesadelo... Ou mais um grande e engenhoso plano da Dakota... Mas a dor naqueles olhos castanhos é real...

–- Porque, sua vagabunda!!!! Porquê?!?!?


Estou de volta, no Distrito 4, sentado à beira de um rochedo.

Observo o sol desaparecer aos poucos na linha do horizonte, dando ao mar uma tonalidade alaranjada, que sobe com a maré cheia, quebrando as ondas com violência à beira da imensa rocha onde estou sentado.

Eu poderia facilmente nadar para longe dali, mas meu corpo ficou flácido, desobediente e paralisado. A rede se aproximava cada vez mais. Me desesperei, mas meu corpo continuou teso, flutuando, como se estivesse sem vida.

A rede me enrolou, apertando, tirando a minha liberdade. Vou morrer, penso, e nunca mais verei minha família, meus amigos e a Annie, nunca mais...

Tudo por causa dessa rede, que me prende, sufoca. Estou de pés e mãos atadas, não há o que fazer, nem como fugir, esse é o meu destino. Está escrito...

Sem hesitar, Dakota me envolve com a rede de trepadeiras.


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Notas finais do capítulo