Uma Mudança De Vida escrita por surviveworld


Capítulo 1
Capítulo 1 - Introdução à vida de John Watson


Notas iniciais do capítulo

Espero que apreciem o início deste conto e o contato com os demais personagens (principalmente Sherlock Holmes) virão ao longo dos outros capítulos.
Boa Leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/285436/chapter/1

Outubro de 1921

Doutor John Watson empilhava ordenadamente cada ficha que constava os dados de seus pacientes. Particularmente, estas folhas eram dezenas, pois toda Winnyn se consultava com ele – o único médico disponível que resolvera fincar raízes nesta pequena vila. John havia acumulado este serviço, deixando-o para Sarah, mas a secretária havia ido até a cidade mais próxima fazer a compra dos medicamentos necessários que faltavam em seu consultório e a enfadonha tarefa de catalogar por ordem alfabética os nomes de seus pacientes recaíra em suas costas.

Além disso, era melhor estar ocupado em algo que aliviasse o tédio que lhe carcomia a mente, afinal, por Winnyn ser uma vila com menos de 300 habitantes, havia tempo que o médico não consultava realmente alguém. Claro que havia uma ou outra queixa de indisposição de seus vizinhos (principalmente das senhoras mais idosas) que acabavam por lhe procurar, mas nada que demandasse um significativo tempo ou fosse realmente preocupante. John passava seus últimos três anos de vida imersos numa imensa falta de sentido.

O Doutor Watson nascera e fora criado em Winnyn, e devido à posição de seu pai – também um médico e o único da vila (assim como fora seu avô), havia imposto que seu filho haveria de seguir a mesma profissão assim como era de direito dos homens de sua família. Até então, John não conhecia nada mais que o seu círculo estreito de amigos da escola e as doces e simpáticas amigas de sua irmã Harry, com a qual uma delas, num acordo mútuo entre os pais de John e os da amiga de Harry, se tornou sua prometida noiva: Mary Morstan. Mas como o Sr. Watson não admitia um casamento prévio à formação de seu filho, John era destinado a estudar e obter seu diploma antes de qualquer coisa. Foi então, com 18 anos completos, que John havia sido enviado para grande Londres para estudar medicina, e os olhos de um jovem Watson brilhavam com a drástica mudança de vida que Londres lhe oferecia.

Londres não era nada parecida com a pacata Winnyn e as missas de domingos, os pequenos bailes entre os vizinhos, os piqueniques rentes à bela cachoeira que enfeitava a vila ou os lábios da doce Mary Morstan. Não, Londres era o puro êxtase – era agitada com os automóveis, com o tom negro das recentes indústrias, com o som do trabalho, da máquina, do urbano. Era uma cidade com um clima mais sóbrio do que aquele quente e pacífico que John se acostumara em Wennyn. Em Londres, o estudante John Watson havia vivido fantasias e alucinações que só um jovem do interior poderia algum dia experimentar com tanta intensidade. Sua futura esposa Mary Morstan, agora, habitava um espaço muito pequeno em sua mente sem sequer John dar-se conta disto. Durante os anos de sua formação, John havia sido mais que contente ao estudar em St. Barts e dividir um quarto com Mike Stamford, experimentando coisas e situações com as quais seus pais e toda Wennyn condenariam firmemente, ao seguir a risca o que a juventude lhe propunha como todos os outros estudantes.

E dessa forma, quando a formação de medicina havia chegado ao fim, John havia negado firmemente voltar para Winnyn. Seu pai enviava a cada semana uma extensa carta obrigando-o a voltar para a vila com o seu diploma e casar-se com Mary, e o único que John fazia após ler ameaças e ameaças do pai ao lhe dizer que cortaria o dinheiro que enviava para seu sustento era amassar o papel e enfiá-lo no lixeiro próximo de sua escrivaninha. No futuro de John Watson não caberia mais o pacato estilo de vida de Wennyn.

Mas contrariando as expectativas do recém-médico, uma guerra havia estourado na Europa e todos os jovens de boa saúde e residentes na Inglaterra foram convidados a se alistarem. John Watson foi prontamente convidado a integrar uma equipe de médicos que serviriam de auxílio e apoio no campo de batalha e não havia como dizer não. Não houve muito tempo para que John explicasse a sua família que estava deixando sua amada Londres e seguindo viagem para guerrear no Afeganistão sem sequer voltar definitivamente para Weinnyn como médico. Simplesmente, num curto final de semana, John havia ido para Winnyn de trem e com beijos açucarados na mãe e na irmã e em Mary (que chorava como nunca, como se fosse perder o marido que ainda não era seu) e sob o olhar reprovador do pai, John seguira viagem para servir e curar soldados numa guerra.

E os anos do Doutor Watson foram marcados por diversas experiências que muitos senhores com o dobro de sua idade teriam nunca algum dia vivido. E John sabia disso, pois quem frequenta uma guerra acaba arcando com consequências em longo prazo: os tormentos que inundam a mente, os sonhos obsessivos, cenas que não se apagam com tanta facilidade, pavor, temor. Vestígios de uma violência impossível de ser deixada para trás voluntariamente e que impregnaram o jovem Watson. John vira homens morrendo por uma batalha que sequer fazia sentido, jogando fora suas vidas sem compreender o porquê do seu destino – e muitas vezes morriam ali, em suas mãos, com John tentando a todo custo tampar feridas e buracos de bala.

Ao mesmo tempo em que uma angústia o assolava, John Watson deixava assumir, apenas para si mesmo, que sentia falta da vida que levava. E entendia, mais que nunca, os sentimentos de apatia que deixava transparecer no dia-a-dia em Winnyn: um cotidiano absurdamente impróprio para um homem que praticamente conhecera uma face do mundo que ninguém naquela vila havia entrado em contato e jamais ousariam sonhar com tal. Cada vez que esse pensamento o assolava, uma saudade concreta do que vivenciara antes, John se censura com um suspiro melancólico que escapa de seus lábios por tornar a pensar que preferia desistir de sua pacata vida para enfrentar uma vida rodeada de perigo.

John olhou em seu relógio e notou que já se passavam das cinco da tarde. Havia perdido a noção do tempo imerso em uma reflexão a cerca de sua vida, pois o sol intenso do verão já se derretia por detrás das cortinas esbranquiçadas e ele sequer tomou nota da passagem do dia enquanto estava metido na tarefa de organização. Retirou seu jaleco imaculadamente branco, pendurou-o e deixou dentro da gaveta de sua mesa as fichas um tanto já organizadas de seus pacientes. Deveria se apressar para trancar a pequena clínica, e seguir até sua casa para o jantar.

Ao terminar de trancar as portas e deixar a clínica, John seguiu seu caminho de casa sendo cumprimentado por senhoras que observavam suas crianças que ainda se lambuzavam com sorvetes nas ruas devido ao calor, até ser efetivamente parado em seu caminho por Gregory Lestrade.

– John Watson, que bom vê-lo! Diga-me, não tem mais aparecido no armazém... – O homem fez uma pausa e perguntou, cautelosamente: - Não me vá dizer que é a Sra. Watson que adoeceu novamente!

Sr. Lestrade, um homem com a mesma idade de John e com cabelos grisalhos, era alguém que John poderia considerar como um amigo em Winnyn. Eles haviam frequentado a escola juntos, e agora Gregory havia herdado do pai o armazém mais completo da cidade, estava casado há um considerável tempo e era pai de duas meninas. John lhe destinou um sorriso amigável, balançando levemente a cabeça em negativa e respondeu ao amigo:

– Mary está bem estes dias. Graças a Deus ela tem melhorado! E até mesmo acredito que conseguirei a sua companhia para a missa de sábado.

– Fico imensamente aliviado de saber que Mary está bem. – Respondeu Gregory com um sorriso sincero no rosto. – E se não for inconveniente, quero dizer que levarei minha esposa para vê-la. Sabe que as duas são muito amigas, e minha esposa ficou muito preocupada ao ouvir que Mary havia ficado de cama. Tive que acalmá-la dizendo que não era nada mais que um mal-estar.

– Faça melhor, Gregory. Venha você e Molly para o jantar de amanhã. Tenho certeza que Mary sentirá um prazer e felicidade imensa em recebê-los. Isso irá até mesmo animá-la.

John deixou-se sorrir com o agradecimento educado de Lestrade e prontamente se despediu. Acenou para o amigo e continuou em seus passos que o levaria para casa.

Mary e John Watson haviam se casado logo após o retorno de John da guerra.

John havia sido basicamente obrigado pelo pai a honrar um compromisso acertado há tempos, e ele assim o fez com um pouco de receio. Não por Mary, afinal, a moça era delicada e doce – tinha os cabelos loiros e lindos olhos azuis repletos de longos cílios, uma boca pequena e sempre rosada e uma pele branca que sempre era escondida por vestidos e sapatos de bom gosto. John não tinha, realmente, porque reclamar de sua esposa. Sabia que ela daria uma boa mulher, mas mais uma vez, a vontade de liberdade em John era sempre como um grito oco que insistia em ecoar em sua mente. Estar casado não era, necessariamente, uma vontade que aflorasse na alma de John.

Quando haviam se casado, Mary era exuberante em vida. Mas nos últimos meses vinha apresentando uma oscilação de temperamento, uma melancolia associada a um barulhento estado de humor que a fazia querer apenas se trancar ao quarto e recusar a comida que a Sra. Gilbert fazia. O doutor em John percebera os sintomas em sua esposa e sentia-se mal por desconfiar ser ele o causador de tamanha mudança de humor em Mary, ainda mais quando sua esposa rompia em um choro efusivo, sem motivo e entre soluços enquanto John tentava consolá-la.

Mary deixava escapar entre essas crises, diversas vezes, que sentia muito por não conseguir dar a John um filho.

Durante os anos de casado John e Mary não haviam gerado um filho e John não sabia bem de quem a culpa da infertilidade recaia, mas já ouvira boatos circulando que a culpa toda era de sua esposa com um ventre infértil e John se assustava com a mente maldosa da vila. Nunca e jamais, em hipótese alguma, John culparia Mary por não terem algum filho. E, talvez, John pensasse que era melhor assim.

John chegara a casa e a primeira coisa que observou foi Mary sentada na pontinha do sofá com um vestido de seda rosa com delicadas costuras em renda. Seus cabelos foram cuidadosamente penteados em uma trança e uma maquiagem leve recobria seu rosto da cor de leite. Ao ver o marido passar pela porta da frente, a Sra. Watson levantou-se decidida a recebê-lo com um sorriso nos lábios, logo perguntando apressadamente como John havia passado o dia.

– Não fiz nada de interessante, querida. – John beijou a testa da esposa enquanto a mesma o ajudava a retirar o paletó e o pendurava em um gancho de madeira próximo a porta. – Você bem sabe como é esse lugar... Parado igual o vento nesse verão!

Mary, ainda sustentando um sorriso, respondeu: - Pois eu dou graças a Deus quando você não faz nada de interessante! Isso significa que todos estão bem e sem doenças!

– Se não há doenças, qual a função de um médico? – John perguntou com um tom zombeteiro na voz, internamente feliz de ver Mary esbanjando uma alegria e saúde. – E como você passou hoje?

– Bem, bem. Senti apenas uma dor de cabeça no almoço, mas a Sra. Gilbert me fez um ótimo chá que até posso dizer que me curou! – Mary respondeu rapidamente, puxando John para que ele se sentasse à mesa de madeira que continha a louça de porcelana, uma linda travessa de carne assada com batatas e ervas, além de uma torta de maça corada.

– Além disso, pedi que a Sra. Gilbert me deixasse fazer um jantar adequado para você! Esses dias em que estive doente não te vi comer direito, e por isso me sinto uma esposa irresponsável... Mas isso vai mudar, eu prometo! – Ela deu uma piscadela marota enquanto colocava um prato com a refeição em frente ao marido.

John a olhou e a agradeceu pela atitude sorrindo ternamente. Ele realmente esperava que desta vez Mary continuasse com esse humor alegre, e que não recaísse a uma tristeza infinita e voltasse a ficar presa em seu quarto.

– Tenho uma notícia para te dar – John cortou um pedaço de carne e antes que a levasse para a boca, olhou para a mulher, continuando: - Hoje me encontrei com Gregory e ele me disse que Molly estava com saudades sua, e acabei por convidá-lo para jantar amanhã.

Mary sorriu amplamente para ele, com o queixo pendurado em sua branca mão direita que ostentava uma grossa e dourada aliança. – Há quanto tempo não vejo Molly! Pois sim, fico muito feliz de saber que a verei amanhã! Farei um lindo jantar com a ajuda da Sra. Gilbert! Aliás, você sabe o que Gregory gosta de comer?

John respondeu que não tinha a menor ideia e que seu amigo comeria qualquer coisa. Ficou observando que sua esposa tagarelava sobre o cardápio do jantar de amanhã, fazendo perguntas para John que ela mesma respondia, como se o fato de ter os Lestrade em casa fosse realmente um acontecido memorável.

(continua)


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Mudança De Vida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.