Little Firefly escrita por Isabella


Capítulo 4
Mentiras


Notas iniciais do capítulo

"A verdade alivia mais do que magoa. E estará sempre acima de qualquer falsidade, assim como o óleo sobre a água." - Miguel de Cervantes



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As semanas passaram rápido e eu e Ed estávamos muito próximos, ele e uma garota chamada Emily eram os únicos amigos que eu fizera naquela escola. Percebi que vários estudantes tinham preconceito com intercambistas ou estrangeiros, mas eu não estava preocupada.

As pessoas tendem a ser pateticamente dentro dos padrões, um dos motivos pelos quais não fui bem aceita. Eu era um exemplo concreto de quebra de limites. Não ia cheia de maquiagem ou com roupas cor-de-rosa para a escola, não era líder de torcida e não falava sobre coisas fúteis. Apenas me sentava na carteira e assistia às aulas tentando me concentrar. Eu me acostumara ao fato de não ter ninguém me cobrando notas altas, mas não deixava que isso se tornasse um incentivo para o desleixo. Eu me esforçava, ao contrário das outras garotas que tinham pais para lhes pagarem cartões de crédito e o futuro garantido.

O céu daquele fim de manhã estava cinza, ameaçando chover. Fazia um frio fora dos padrões brasileiros, e eu estava praticamente congelando. Era uma sexta-feira desanimadora, daquelas que só se tem vontade de deitar no sofá com um cobertor e assistir filmes. Uma sexta com cara de domingo. Domingos eram difíceis para mim, costumavam ser os dias em que eu me sentia mais solitária. Eu sentia falta de estar com minha avó, assistindo programas de auditório brasileiros e comendo chocolate; nós conversávamos sobre a vida, meu futuro e outras coisas mais. Ela ficaria orgulhosa de saber que eu estava em Londres, a cidade com a qual eu sempre sonhei.

Eu e Ed voltávamos da escola rindo e conversando. Eu o deixaria na porta de sua casa e seguiria o resto do caminho para a minha. Eu me sentia à vontade perto dele, e nossa conversa fluía livre e natural, sem a necessidade de puxar assunto. O vento batia em nós com força, e o frio era intenso. Olhei para as nuvens cinza e ameaçadoras no céu: pelo visto, iria chover a tarde toda. Por muito tempo o céu nublado refletia meu estado de espírito, mas não agora. Era como se meu céu deixasse de ser tão cinza e passasse a ter pequenos raios de sol. Eu apelidei esses raios de “esperança”. Sentia-me bem por pensar que ainda havia esperanças para mim, quando eu acreditava que tudo estava vazio e escuro.

Observei as folhas secas caídas no chão e o modo como as árvores as soltavam. Olhei novamente para o céu cinza-chumbo e em seguida para Ed, que parara de falar e olhava o céu também. O vento batia em seus cabelos ruivos de um modo quase cômico, os fios apontavam em direções diferentes e balançavam com o vento. Seus olhos azuis refletiam a cor cinza do céu que ele observava com atenção. Uma de suas mãos estava no bolso, e a outra passada por cima dos meus ombros. Seus pés caminhavam tranquilamente, e seus sapatos estavam encharcados por pisar em poças – havia chovido na noite anterior – formadas na calçada.

-Parece que vem chuva por aí, você não acha? – ele disse, abaixando a cabeça para me olhar.

-Sim, e parece que vai ser a qualquer momento, melhor apertarmos o passo.

Começamos a andar mais rapidamente, e como que para confirmar minhas palavras, um grande trovão ecoou dos céus, nos assustando. Os pingos grossos de chuva começaram a cair sobre nós, aumentando meu frio e molhando meu rosto. Começamos a correr, ainda faltavam duas quadras para chegarmos à casa de Ed e mais uma quadra para a minha. Com certeza eu iria pegar uma gripe, sempre fui fraquinha e peguei gripe por qualquer motivo, e dessa vez não seria diferente.

Os cabelos de Ed balançavam enquanto ele corria, e eu soltei uma gargalhada. Ele me olhou confuso, mas continuou a correr. Eu já estava completamente encharcada, minha blusa grudava no corpo e meu sapato fazia um barulho engraçado de água enquanto eu corria. Só paramos de correr até chegar à varanda coberta da casa de Ed.

-Não quer entrar para se secar, Angel? – ele me perguntou, rindo do meu cabelo molhado. – Está parecendo um cachorrinho castanho molhado.

-Não, seu besta – eu respondi, rindo. – E você não pode dizer nada de mim, seu cabelo também está me dando vontade de gargalhar.

Ele remexia na mochila, procurando a chave de casa. Seus pais só voltariam à noite do trabalho. Sua expressão estava preocupada e ele revirava a mochila freneticamente.

-Algum problema? – eu perguntei, começando a ficar preocupada.

-Esqueci as chaves! Provavelmente em cima da bancada da cozinha...

Eu o encarei. Não podia deixá-lo sentado na porta de sua casa a tarde inteira, ainda mais que estava chovendo e nós ainda não havíamos almoçado. Mas tampouco eu queria convidá-lo para a minha casa. Não que sua presença não me fosse agradável, mas pelo fato de eu morar sozinha. Eu não contara a Ed sobre meus pais...

-Você vai para a casa comigo, não pode ficar aqui na varanda com esse frio e sem almoço.

-Angel, eu não...

-Calado, Edward – eu disse, rindo. – Você vem comigo e pronto.

Ele deu um sorriso e eu retribuí nervosamente. O que ele pensaria de mim? Que eu era uma mentirosa por não ter contado nada enquanto ele se abriu e contou todos os seus problemas para mim? Eu o observei. Desde o dia em que nos conhecemos eu me afeiçoara a ele, e Ed se tornara muito importante na minha vida. Eu não suportaria mais uma perda.

-Vamos? – eu disse, puxando-o pelo braço.

Corremos até a portaria do meu prédio e o porteiro resmungou algo sobre estarmos encharcados e molhando o hall de entrada. Meu prédio não possuía elevador, eram só cinco andares. Eu morava no terceiro. Subimos as escadas e chegamos à velha porta de carvalho da entrada do meu apartamento. Havia uma campainha fora de funcionamento e um tapete escrito “Welcome” no beiral. Virei a chave na fechadura enferrujada e abri a porta.

Eu já me mudara com o apartamento mobiliado, mas tentei ao máximo deixar tudo com meu jeito. Comprara um pequeno tapete em tom pastel e o colocara de baixo do sofá cor de café. Havia uma série de porta-retratos alinhados sobre o raque onde uma televisão pequena se apoiava. Não era lá aquelas coisas, mas eu gostava. Era simples, puro e possuía certo charme.

Ed entrou e eu fechei a porta. Ele estava parado próximo ao sofá, tomando cuidado para não pisar no tapete e encharcá-lo. Realmente, desde os seus fios ruivos até os cadarços deixavam o chão com pequenas poças. Eu também deveria estar daquele jeito. Dei risada, Ed parecia um cãozinho molhado.

-Vem cá, vou pegar umas toalhas – eu disse, fazendo sinal para ele me acompanhar pelo pequeno corredor.

-Angel, tem certeza? Seus pais não ficarão bravos?... Eu estou molhando tudo!

-Eu também – respondi, contendo as lágrimas que insistiam em umedecer meus olhos quando Ed falara sobre meus pais.

Fomos até o banheiro e eu puxei duas toalhas de dentro do armário de madeira. O banheiro era pequeno e Ed e eu estávamos a menos de um palmo de distância um do outro. Estávamos frente a frente, eu podia sentir sua respiração e contar cada sarda de seu rosto. Seus olhos azuis mergulharam nos meus, e eu me senti zonza. Apenas ficamos ali, nos olhando. Podem ter se passado anos ou milênios, eu não saberia a diferença. Ele passou as mãos em volta da minha cintura e eu parei de respirar por um momento. Quem eu estava querendo enganar? Eu queria, mas tinha medo. Medo de tomar alguma iniciativa e estragar tudo. Então apenas esperei, ainda olhando em seus olhos azuis e intensos. Eles refletiam o que Ed sentia por dentro, nunca fora difícil descobrir suas emoções, seus olhos eram bem expressivos e sinceros. Naquele momento, pareciam temerosos, assim como os meus. Ele deu um suspiro, como que se rendendo, e seu rosto foi chegando mais perto. Ambos respirávamos rápido, nervosos. Ele me deu um beijo na bochecha.

-Obrigado por me deixar ficar aqui – ele disse.

-Sem problemas, mas sua roupa ainda está molhada.

-Eu não me importo, com tanto que você não se importe também.

Eu sorri, abracei-o novamente e saí do banheiro. Não fora dessa vez, acho que pelo fato de ainda estarmos muito confusos com toda essa situação. Aliás, quem eu era para pensar que Ed queria alguma coisa comigo? Eu fora muito estúpida. Estúpida o bastante ao ponto de acreditar que ele me escolheria, no meio de tantas outras garotas mais bonitas. Eu não possuía nenhum atrativo, nada que o fizesse gostar de mim. Dei um suspiro e fui trocar minhas roupas molhadas.

Depois de trocada, fui à cozinha preparar o almoço. Na noite anterior eu fizera Lasanha para o jantar, e sobrara. Abri a geladeira e coloquei a travessa de lasanha no microondas. Ed me observava com interesse. Ele se sentara no chão da sala e estava enrolado em uma toalha, seus cabelos já quase secos. Não pude negar que ele estava lindo daquele jeito: a roupa molhada, os lábios e o rosto corado. Os olhos observando atentamente tudo o que eu fazia. Seu moletom jazia em cima da mesa que ficava no canto da sala, e sua camiseta grudava no corpo.

Coloquei a comida em dois pratos, levei-as para a mesa e o convidei para sentar. Eu não me considerava uma cozinheira de primeira, mas aprendera a fazer aquela Lasanha com minha avó. Não ficara tão boa quanto à dela, mas dava para se apreciar o sabor.

-Está muito boa – Ed disse, comendo o último pedaço de seu prato. – Sua mãe quem fez?

-Ah, obrigada. Mas não foi ela... Fui eu – eu respirei fundo, precisava contar a verdade para ele. – Ed, eu preciso te contar uma coisa – continuei, com minha voz falhando.

-Pode me dizer, estou aqui para te escutar – ele disse, os olhos transmitindo preocupação.

Eu me levantei e retirei os pratos da mesa. Não conseguia pensar na reação de Ed. Ele me consideraria uma mentirosa, e provavelmente não iria mais falar comigo. Uma lágrima escapou dos meus olhos: eu não suportaria perder mais alguém. Mas eu precisava, era o certo a se fazer. Voltei para a sala e sentei-me no chão ao lado de Ed, sentindo-me corajosa.

-E então, o que você queria me dizer? – ele perguntou, com certa curiosidade.

-Ed, eu moro sozinha nesse apartamento. Não tenho pais, não tenho família. Eles... Eles morreram em um incêndio. Fui emancipada e me mudei para cá. Sinto muito se menti para você... Eu só não me sentia pronta para te contar ainda.

Ao contrário do que eu pensava, Ed apenas me abraçou e sussurrou que tudo ficaria bem, que ele estaria ali para mim. Em muito tempo, eu soube novamente o que era ter apoio. Redescobri a sensação de ter alguém para te segurar, se você caísse.

Não consegui ser forte. Meu corpo se sacudia com o choro compulsivo, falar sobre isso trazia tudo à memória novamente... Eu recebendo a notícia, o velório, o enterro... Eu sentia que já carregara tantas mágoas na vida que não me surpreenderia se começasse a chorar e nunca mais parasse.


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