Little Firefly escrita por Isabella


Capítulo 10
Pela Noelle


Notas iniciais do capítulo

"Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?" - Guimarães Rosa | "Um gato é malandro e livre, certo? Não. Têm graça, suavidade e sentimentos. São superiores até mesmo aos humanos, pois não se deixam dominar. Algumas deveriam aprender com os gatos, demonstrar sentimentos de menos e amar demais" - Isabella Viana



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Os raios do sol fraco sol matinal batiam nas minhas costas desnudas, aquecendo-as agradavelmente. Eu podia ouvir as cortinas balançando com a brisa gélida das primeiras horas da manhã; eu estava acordada, mas tampouco querendo abrir os olhos. Eu tivera um sonho tão maravilhoso que estava tentando voltar a ele, mesmo que fosse relativamente impossível. Virei-me na cama, tentando achar uma posição confortável. Eu dormira em cima do meu braço e agora ele estava formigando. Foi quando me virei de novo que esbarrei em algo, era meu urso Cedrico... Estranho, eu não me lembrava de tê-lo colocado em minha cama... Pelo o que sabia, ele estava em cima do pufe vermelho desbotado do meu quarto.

Abracei-o, e por incrível que pareça, seu peito subia e descia como se estivesse respirando tranquilamente. Abri os olhos assustada e dei com Ed deitado ao meu lado, espremido na pequena cama de solteiro. Ele estava sem camisa e de calça jeans, sua costas branca ainda mais clara pelo reflexo do sol da manhã. Olhei para mim mesma, assustada. Eu estava de shorts e top, meu pijama habitual. As lembranças da noite anterior passaram pela minha mente. Geralmente, eu era um pouco grogue assim que acordava, e tinha dificuldade para me lembrar das coisas logo de cara.

Suspirei aliviada. Bem, qualquer um que olhasse para aquela cena tiraria conclusões erradas e nos chamaria de adolescentes irresponsáveis, mas não havia acontecido nada de mais na noite anterior. Nós apenas conversamos até dormir, e Ed tirara a camiseta, sentindo-se mais confortável. Eu não poderia negar, é claro, que talvez – se estivéssemos prontos – aconteceria algo a mais.

Ed se virou na cama e abriu os olhos incrivelmente azuis, finalmente acordando. Seus cabelos estavam mais bagunçados do que o habitual e sua cara ainda exibia sinais de sono. Ele bocejou, espreguiçando-se.

-Bom dia, meu ruivo – eu disse, dando-lhe um beijo na bochecha.

-Seu cabelo parece um monte de feno – ele observou, a guisa de bom-dia. – Gosto quando está desarrumada assim.

-Eu estou sempre desarrumada – respondi, revirando os olhos. – Sabe muito bem que não sou como as líderes de torcida.

Ele riu.

-Ah, olha esse seu cabelo, queridinho. Precisa de uma hidratação urgente! Amiga, cadê o meu gloss? Ah, esse gloss não combina com o meu sapato, preciso comprar um novo com o cartão de crédito do papai – eu disse, piscando os cílios exageradamente, tentando imitar as líderes de torcida. – Nossa, preciso urgentemente comprar mais tinta loira de cabelo, vou marcar uma hora no salão hoje mesmo, tenho que humilhar todas na festa de sábado à noite.

-Muito engraçado, Ashley Pink – ele respondeu, desarrumando ainda mais meus cabelos embaraçados.

Ashley Pink era uma líder de torcida da escola. Seu nome era apenas Ashley, mas ela fazia questão de ser chamada de Ashley Pink por todas as pessoas da escola, menos por suas duas amiguinhas irritantes que a chamavam só de Pink. Quanta maturidade. Ela era loira platinada, os cabelos escorridos até o meio das costas e uma franja de Barbie. Tinha a pele bronzeada artificialmente e ia carregada de maquiagem para a escola, em plena manhã, como se fosse um casamento ou algo do tipo. Suas roupas eram típicas de uma patricinha fútil da área mais nobre da cidade, e eu nunca a vira sem salto a não ser nas aulas de educação física. Ela odiava vestir o uniforme cinzento que todas as garotas vestiam para correr e praticar esportes nas aulas de educação física, então customizara o seu com uma estrela rosa na parte esquerda e um grande “Pink” escrito atrás, como se fosse seu sobrenome de verdade. Resumindo: ela era ridícula e perversa, uma típica patricinha de filmes. Quando a vi pela primeira vez, jurei estar vendo a Barbie em pessoa.

-Não me ofenda, cabeça de cenoura – eu disse, dando-lhe um tapa carinhoso na testa.

-Ok, ok. Você não merece um xingamento tão horrível quanto Ashley Pink... E então, Angel? Tem algo preparado para hoje?

Na verdade, eu tinha. Eu sabia que Ed não poderia ficar para sempre na minha casa, e eu voltaria a ficar sozinha. Acostumara-me a ficar sozinha, mas aquele apartamento passava uma tristeza tão grande quando éramos só eu e o tique-taque do relógio de parede... Eu iria adotar um gato, já decidira. Era segunda-feira e feriado em Londres, normalmente aos feriados o canil da cidade ficava aberto, pois o número de visitas subia. A maioria eram pais cansados levando crianças para escolher um mascote que lhes agradassem e não desse tanto custo. A maioria da minoria, por assim dizer. O canil não era muito movimentado, as pessoas pareciam ter uma espécie de preconceito com “vira-latas”. Não era meu caso, queria um gato de rua mesmo, sem família.

-Bem, eu estava pensando em passar no canil municipal...

-Para quê? – ele perguntou, uma ruga de curiosidade formando-se na sua testa.

-Sinto-me muito sozinha nesse apartamento... Já sou acostumada, é claro. Mas estou cansada de me sentir assim, quero adotar um gato.

-Por que você não compra um? Os do canil municipal precisam ser adotados por cidadãos londrinos...

-Eu já fui naturalizada aqui, tenho os documentos e tudo. Não quero comprar, quero um abandonado, dar oportunidade para que ele também tenha um lar.

-Acho muito nobre de sua parte, Angel.

-Então vamos tomar café e ir? Os petshops só ficam abertos até meio dia e eu vou ter que comprar ração e tudo o mais...

-Claro – ele disse, dando um beijo na minha testa.

Tomamos café e eu peguei os documentos. Ed passou em sua casa para tomar um banho rápido e eu fiquei sentada no sofá conversando com sua mãe. Eu realmente gostava dela, era uma mulher muito simpática. Chamava-me de nora. Bem, eu ainda não era nora dela, claro. Ed ainda não me pedira em namoro e eu não queria apressar as coisas.

Ed saiu do banho e nós caminhamos até o canil, que não ficava muito longe. O dia estava nublado, mas não muito frio. Ventava bastante, as folhas caíam com força nas árvores e forravam o chão de laranja. Eu caminhava animada, pronta para gastar rasas minhas economias com tudo o que o meu pequeno gatinho precisasse.

Chegamos ao canil e eu fui direto para a seção de gatos, havia de várias cores: pretos, laranjas, brancos, malhados. A maioria eram gatos adultos e ariscos, por conta de terem morado na rua por muito tempo. Eu não sabia qual escolher, nenhum me chamara à devida atenção.

-Angel, vem aqui! – chamou Ed, empolgado. Ele estava em frente a uma gaiola grande, com vários filhotes.

Eram pequeninos, uns subindo por cima de outros. Quando me aproximei, eles vieram até a grade, miando e ronronando, uns tentando me arranhar. Eram filhotes diferentes uns dos outros, cada um de uma cor. Ajoelhei-me diante da gaiola, tentando vê-los melhor. Foi quando percebi, bem no fundo da gaiola, um gatinho muito menor que os outros. Ele não possuía rabo grande como os outros, apenas uma pontinha. Quem fora o ser humano terrível que fizera aquilo com seu rabo?  Era todo malhado de laranja, preto e branco. Naquele instante, eu soube que nascera para ter aquele gato.

Eu me identificara com ele, o único que não se misturara ou “fizera amizade” com os outros gatos, o único diferente. Chamei a atendente.

-Moça, eu quero aquele gato – eu disse com convicção.

-Tem certeza que quer este? É uma fêmea, chegou aqui há algumas semanas... Ela é muito introvertida, recomendo que escolha outro mais agitado...

-É esse mesmo que você quer, Angel? – perguntou Ed, chegando mais perto para ver melhor o gato.

-Sim, eu quero ela.

A mulher se virou e foi até o balcão, pegando a chave da gaiola.

-Ed, olhe só para ela... É tão linda, não acha?

-Você notou que falta um pedaço do rabo dela, certo?

-Sim, eu percebi. E é isso que a torna especial. Ela é diferente, introvertida. Eu nasci para ter esse gato.

A mulher voltou com a chave e abriu a gaiola. Eu peguei a gata no colo e ela acordou e me olhou com olhos verdes como a copa das árvores na primavera. Chamaria-se Noelle, o nome que eu sempre quis dar a um gato, desde pequena. Eu nunca pudera ter um, pois minha mãe tinha alergia. Paguei vinte libras pelo registro e saí do canil levando Noelle em meus braços. Ela observava tudo, temerosa.

-É uma linda gatinha – Ed disse, fazendo carinho atrás de suas orelhas. A princípio, ela se encolheu com o toque de Ed, com medo. A veterinária do canil nos contara que achara Noelle na rua, com o rabo sangrando. Provavelmente alguém fizera isso com ela. O rabo tivera que ser amputado.

-Ela ainda é um pouco assustada com os humanos, não é mesmo? – eu disse, passando suavemente a mão pela cabeça de Noelle.

-Bem, ela vai perder esse medo com o tempo. Conheço uma garota que era do mesmo jeito – Ed comentou, passando o braço pela minha cintura.

-Eu era assim...Ed, muito obrigada, se não fosse por você eu ainda...

-Shhhhh – ele me interrompeu. – Não tem que agradecer nada, ok? Se não fosse por você eu também já teria desistido de tudo. Vamos andando? Daqui a pouco o petshop fecha...

Fomos até o petshop e compramos uma casa cor-de-rosa em tom pastel para Noelle, ração, petiscos e alguns brinquedos. Eu me sentia uma mãe saindo da maternidade, cheia de bolsas com as coisas do bebê. Era cômico. Ed carregou as sacolas e fomos para meu apartamento. Noelle desceu com um pulo suave do meu colo, e começou a andar pelo apartamento, conhecendo o lugar. Ela passou o rosto pelo sofá e ronronou.

-Parece que ela gostou daqui, não é mesmo? – perguntei animada para Ed.

Ele nada respondeu, apenas me encarou com os olhos indecisos e travessos, apoiado na parede do corredor. Fez um movimento com a cabeça, chamando-me para mais perto. Passou as mãos pela minha cintura e fitou-me, mordendo o lábio.

-O que foi, Ed?

-Tenho uma coisa para te perguntar – ele finalmente disse.

Meu corpo todo se enrijeceu, era mesmo o que eu estava pensando? Agora que eu tinha Noelle, estava me sentindo feliz como nunca antes, afastando para longe a perspectiva de ficar sozinha naquele apartamento. Se Ed perguntasse o que eu pensava que iria perguntar, meu dia estaria feito.

-Bem... Noelle precisa de um pai, não é mesmo? – ele disse, dando uma risadinha e olhando para ela, que trançava em nossos calcanhares. – O que eu quero saber, Angel, é se você quer... – ele fez uma pausa e se ajoelhou, espremido no pequeno corredor. – Que namorar comigo? Pela Noelle, claro – ele acrescentou com uma risada.

Eu não sabia o que dizer, aquele era o dia mais feliz que eu já tivera em anos. Tudo parecia um sonho. Ou melhor, um devaneio de uma noite quente de verão, como diria Shakespeare.

-Claro que aceito... Pela Noelle- respondi, tentando conter o rio de emoção que me invadia. Ele se levantou e passou as mãos pelo meu rosto. Entrelacei os dedos pelos seus cabelos ruivos e lhe dei um beijo.

-Pela Noelle... – ele sussurrou no meu ouvido, rindo suavemente.


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Notas finais do capítulo

Para ver a Noelle, cole essa url no seu navegador (imaginem sem o rabo, ok? KK): http://bocaberta.org/wp-content/uploads/2009/11/gato-malhado-1-300x178.jpg



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