O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 6
O preço da desobediência


Notas iniciais do capítulo

Não seja um mousehover: clique e leia :D (sem notas iniciais dessa vez...)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/282390/chapter/6

Vamos voltar um pouco no tempo para entender o cruzamento dos caminhos de Madeline, Luan, um esperto ladrãozinho desconhecido e um verdadeiro Silencioso no Bosque Rupes, sudeste de Tarantela. Naquela ocasião, Madeline perseguia uma pessoa vigorosamente por algum motivo ainda obscuro, Luan corria atrás dele porque era o único ser com quem poderia estabelecer contato e saber o que estava acontecendo naquele sonho e porque não conseguia acordar dele, até que esbarrou em Madeline. Este foi o segundo contato dele com a jovem aprendiz de feitiçaria, embora seja o primeiro do qual ela se lembra. O Silencioso e sua perversa montaria, um Skarg, acabaram sendo invocados no quarto de Luan enquanto este tentava dormir, e essa intervenção em outro mundo permitiu que Luan, de algum modo, também cruzasse a linha de volta, indo parar no Bosque Rupes.

Madeline já estava há alguns dias instalada naquele tedioso quarto. A princípio, achara que uma semana seria um tempo razoável a esperar, não só porque isso deixaria Lumin feliz com ela, mas pela magnitude do plano do qual ela fazia parte. Porém, dia após dia sua, inquietude aumentou, e, diante do isolamento humano e da falta de notícias do mundo externo, ficou insuportável esperar mais. Sendo assim, ela decidiu sair do quarto antes dos sete dias previstos, para um passeio outro que ir até o norte, para Bromópolis, como tinham combinado.

A decisão mais difícil que tinha de tomar era levar ou não levar o livro consigo. Depois que se convenceu de que não conseguiria passar o resto do tempo trancafiada naquele aposento detestável, encarou o livro de Merlin por longos minutos depois de já pronta, até decidir que era melhor levá-lo. Se algo acontece comigo, estou perdida de qualquer jeito, e nossa missão falhará. Se não pretendo que algo dê errado, então o livro está mais seguro comigo que sozinho no quarto. E assim pôs o livro na bolsa e pegou a chave do quarto na gaveta da estante. Sentia-se mal por trair a confiança de Lumin, mas disse para si que nada daria errado e que defenderia o livro com a própria vida se preciso fosse (embora sua vida fosse parte importante de levar o livro até o professor Walter). Tudo correria bem, ela voltaria para o quarto depois de ler alguns periódicos, tudo lindo. Mas nada correu assim.

Quando chegou à hospedagem na Rua dos Travesseiros, não teve tempo de reparar no lugar, mesmo porque fora teletransportada direto para frente do estabelecimento, e também chovia um pouco ali, motivo pelo qual ela teve de entrar rápido. De dia, porém, parou para observar com mais cuidado as construções, e elas eram magníficas agora sem nenhum vidro imundo entre seus olhos e as fachadas das casas. Elas iam alto, uns dois ou três pisos, e quase todas tinham uma espécie de gárgula nas laterais, e os tetos tinham o formato de fatias bem finas de pizza no topo delas. As cores eram bem velhas, algumas nem tinta tinham, apenas tijolos vermelhos e uma espécie de plantinha crescendo no rejunte, mas ainda assim era bonito de ver.

A rua seguia toda assim, uma rua estreitinha por onde mal passaria uma carruagem, casas apertadas umas às outras como uma fila de homens lado a lado na qual vai-se sempre adicionando mais um à fileira um sem aumentar o cumprimento da mesma. Canos de ferro azul de todos os diâmetros entortavam-se em todas as direções pela frente das casas, e inúmeros fios de energia ziguezagueavam de um lado a outro da rua, muitos deles cheios de adereços coloridos amarrados, similares a serpentinas de carnaval. Ela achou aquilo engraçado, mas na verdade era uma espécie de código que sinalizava diversas coisas sobre a residência, desde número de residentes até as origens daquela família. Grupos pequenos de pássaros cantarolavam nos fios de energia, pulando e conversando na língua dos pássaros. Algumas casas não tinham segundo andar. Ao invés disso, onde deveria ter um segundo andar havia uma árvore de tronco largo e cujos galhos projetavam-se até o outro lado da rua, fazendo uma adorável e grande sombra com suas folhas. Seguia-se assim ao longo de toda a Rua dos Travesseiros, ora do lado esquerdo ora do lado direito, de modo que, se vista de cima, a rua pareceria com uma estreita linha azul ladeada por telhados multicores e grandes pontos verdes sobre a linha azul alternando o lado a cada tantos metros.

Andando mais um pouco, passou por ruas mais largas, onde já trafegavam mais pessoas e as lojas eram mais sofisticadas, com belas vidraças e mesas nas varandas onde homens de dinheiro tomavam café e conversavam sobre economia. Vislumbrou plantas decorativas que, de tão vivas e coloridas, chamariam a atenção de qualquer um. Havia também muitos letreiros que se moviam por mágica como grandes outdoors (nem tão grandes, pois havia uma regulamentação sobre os tamanhos dos letreiros e todos respeitavam-na). Até ali nada era tão surpreendente, pois embora as lojas de Argória fossem um pouco menores e mais modestas que aquelas (até porque Argória era uma cidade portuária, Tarantela não), tudo que viu ali já tinha visto alguma vez em algumas regiões de Argória ou nas cidades vizinhas.

Quanto mais via, mais se maravilhava com as curiosidades da cidade. Passou por uma rua muito extensa, dividida por um canteiro central largo, de piso feito de mármore e sombreado por grandes árvores de folhas amarelas e laranjas. Dezenas e mais dezenas de estudantes sentavam pra conversar, tocar música, jogar jogos de tabuleiro, cartas e queimar aulas. As árvores eram muito altas, e mais acima delas, um céu artificial mostrava diversas informações aleatórias e imitava um céu de verdade, embora fosse apenas uma cobertura lá no alto, que ia de um lado a outro da rua. A cobertura era suspensa pelos imensos prédios na esquerda e na direita. Só então ela percebeu que os dois prédios eram na verdade uma única construção, a Academia de Artes e Ofícios, e a rua passava bem por dentro dela.

Continuou andando e se impressionando, e em pouco tempo já estava se sentindo uma turista, comprando itens que não eram necessários à sua tarefa e conversando com pessoas quaisquer por pura vontade de falar com alguém. Claro, não saberia como justificar os itens que comprara quando supostamente estaria trancada na pousada à Rua dos Travesseiros, mas ninguém precisava saber (e ela esperava que o professor Walter fosse compreensivo se caso ela chegasse com um ou dois souvenires). Cruzou a parte mais bem frequentada da cidade, e acabou inevitavelmente indo parar em uma área não tão recomendada para uma jovem carregando dinheiro e um livro de magia dos mais poderosos já publicados.

Agora ela andava por uma feira, e começava a sentir que deveria voltar. As pessoas andavam apressadas, os vendedores nas lojas pareciam mal humorados e algumas pessoas dormiam pelos cantos das paredes, outras pediam dinheiro. Em Argória, tais coisas não existiam, e ela se sentiu mal em ver aquilo. Quis ajuda-los, mas pensou que era melhor usar seus recursos para derrubar o rei que permitia que aquilo acontecesse em seu reino. Como ele pode se chamar rei se não cuida do seu povo? Tinha gente esbraveando toda sorte de coisas para todos os lados, e começou a ficar difícil andar por ali, quando então ela achou uma rua por onde poucas pessoas andavam, e havia um lago e depois um campo no fim dela. Chegando ao fim da rua, olhou para os dois lados e viu que as casas avançavam por cima do lago como uma pirâmide de lego de cabeça para baixo. Era curioso como elas não simplesmente desabavam dentro do lago, e Madeline ficou um bom tempo olhando aquilo, depois o lago, e do outro lado um campo com um bosque quase onde a visão não alcançava mais. Sentiu algo estranho dentro de si, e decidiu sentar nas pedras à beira do lago para descansar. Acho que andei demais, pensou.

Depois de cinco minutos, ouviu uma mulher gritar alguma coisa lá longe, e um menino magricela baixinho e assustado saiu do nada em alguma das tantas ruas que desembocavam naquela, à beira do lago, e veio andando em sua direção. Ela já se sentia um pouco melhor, e percebeu o quanto estava com fome e com sede. A criança se aproximou cautelosamente e parou a três metros, dela, o que ela achou engraçado.

– Oi, tudo bom? – tentou Madeline.

– Qual o seu nome? – o pequeno perguntou. Tinha o rosto bonito, mas um pouco sujo. Arranhões nas rótulas, uma camisa preta sem mangas e uma calça esfarrapada verde. Não vestia chinelas, e o cabelo era grande e salpicado. Olhava para Madeline com olhos inquisitivos e curiosos, grandes piscinas azuis encarando-a.

– Se você quer saber o meu nome, precisa dizer primeiro o seu, jovenzinho. Ninguém lhe ensinou a tratar bem as damas? – ela brincou, mas ele não parecia amolecer com a brincadeira.

– Acontece que eu não sou um “jovenzinho”, sou uma “jovenzinha”, mas ninguém me trata melhor por isso. Meu nome é Alice, eu moro logo ali naquela casa – e apontou para onde parecia ter vindo o som da mulher gritando. – e você, quem é?

Madeline se retesou um pouco, surpresa pela seriedade da pequena e desculpando-se pelo engano que cometera.

– Desculpe, Alice! Eu...

– Não precisa se desculpar. Todos cometem esse erro. Mas você ainda não disse seu nome. E parece meio doente, o que está fazendo aqui?

Apesar de muito pequena, Madeline desconfiava que Alice não era assim tão nova, ou ao menos tão infantil quanto ela esperaria de uma criança.

– Oh, desculpe outra vez. Meu nome é Madeline, eu... estou andando por aqui. E sim, tenho sede. Será que você sabe onde posso comprar água por aqui?

– Sim, o velho Tritão vende todo tipo de bebida, eu posso levar você lá. O que tem nessa bolsa? – Alice parecia curiosa sobre o livro nas costas de Madeline, agora que reparara nele.

– É um livro de alquimia que eu preciso estudar, coisas chatas – e riu para Alice, que pela primeira vez decidiu ser amigável e retribuir com um sorriso seco que não passou despercebido.

– Vamos, você não parece muito bem. Eu levo você até o barbudo Tritão.

As duas andaram e conversaram um pouco ao longo da rua, Alice interessada em Madeline e Madeline interessada em saber onde estavam exatamente – acabara de se dar conta que não memorizara o caminho de volta.

– Você tem vinte anos? – perguntou Alice.

– Não! Sou mais nova que isso, cinco anos mais nova. Você sabe contar?

– Melhor que você – falou Alice, que deixava Madeline surpresa a cada resposta.

– Oh! Eu adoraria ver isso. Qual a minha idade então? – Questionou Madeline, divertindo-se com a desenvoltura da outra.

– Se eu jogar um seixo de peso dez gramas com uma força de sete braços (uma das unidades de medida de força neste mundo) a um ângulo de vinte graus da superfície do lago, a pedra quicará seis vezes e afundará a uma distância de vinte metros de onde nós estamos agora – respondeu como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Madeline abriu a boca na tentativa de balbuciar algo, incrédula e estupefata. A sensação de não entender algo explicado tão matematicamente por uma criança de aproximadamente dez anos fê-la sentir-se estúpida, então o primeiro pensamento que teve foi que aquela menina apenas lera aquelas palavras todas em um livro de física e as estava repetindo aleatoriamente agora.

– Você está inventando tudo isso, não está?

– Eu não sou uma mentirosa! – Alice fez uma careta para Madeline e arriscou deixa-la, mas esta correu atrás dela se desculpando outra vez e pedindo que ela, por favor, não a deixasse sozinha ali.

– Eu não sei como voltar... Estava na Rua dos Travesseiros, você sabe como chegar lá? Eu prometo não mais lhe chamar de mentirosa. Na verdade, não quis dizer isso, é só que você é inteligente demais para sua idade.

Alice foi de um semblante choroso a um entediado em poucos instantes.

– Sei, mas você não quer mais sua água?

– Sim... vamos – E voltaram a andar. Madeline achava o comportamento de Alice cada vez mais estranho.

– Então, eu gosto muito de matemática. Minha mãe não se preocupa e às vezes não me deixa ir à escola, e os meninos fazem piada de mim porque eu estou sempre meio suja, mas eu não ligo. Agora eu quero ver se você é boa com matemática também. Se uma caixa cheia de água custasse uma moeda de ouro, quantas caixas cheias de água você conseguiria comprar?

Madeline achou a pergunta deveras estranha. Primeiro, porque nada tinha a ver com o contexto, segundo porque uma caixa cheia d’água não era uma mercadoria muito comum e muito menos tão cara, e terceiro porque não sabia quantas moedas de ouro tinha para comprar caixas cheias de água.

– Há uma informação faltando. Quantas moedas de ouro eu tenho pra comprar as caixas? – Madeline perguntou.

– Não sei. Quantas moedas de ouro você tem? – Alice riu-se e deu de ombros.

Madeline pensou um pouco, mas não entendia o enigma. Quando pensou em moedas de ouro, o primeiro valor que lhe veio à mente foi o último com o qual precisara lidar: o valor que lhe foi dado na saída de Porto da Baleia. Foi esse o valor que disse.

– Eu tenho cem moedas de ouro, posso comprar cem caixas – Respondeu, e então algo inusitado aconteceu. Alice sacou um pequeno canivete de dentro da calça, pegou uma das bolsas de Madeline e puxou, cortando a alça num movimento só, e disparou na direção oposta, rindo e correndo tão rápido quanto um leopardo. Coincidência ou não, a bolsa que ela roubou era a das moedas de ouro.

– Volta aqui, sua ladrazinha! – gritou Madeline, correndo o melhor que podia atrás de Alice. Alice corria rápido, apesar das pernas pequenas, e correu ao longo da rua na beira do lago até chegar a uma ponte de pedras que dava no campo do outro lado, e continuou correndo em direção ao bosque lá longe. Madeline começava a ficar cansada, estendeu a mão direita e sibilou alguma coisa, fazendo uma parte da grama crescer e enroscar nos tornozelos de Alice, mas ela já ia muito afrente. Tropeçou e rodopiou no ar, ainda agarrada à bolsa. Quando caiu, algumas plantas encantadas agarraram-na, mas ela cortou todas elas rapidamente e continuou sua fuga em direção ao bosque, sempre olhando para trás para verificar se Madeline ainda a perseguia.

Madeline ia ficando cada vez mais para trás, não importa o quão rápido tentasse correr. Esperou uma outra boa oportunidade de tentar a mesma tática, mas falhara outra vez, dessa vez Alice já estava alerta. Quando chegou à fronteira do bosque, Alice entregou a bolsa para outra criança exatamente igual a ela, mas a blusa era verde, e aquilo deixou Madeline extremamente confusa. Alice correu pelas margens do bosque, enquanto a outra criança entrou e se camuflou em meio às centenas de árvores.

Ah, droga! – Madeline pensou. Só agora lhe ocorrera que estava numa baita enrascada. Embora ainda tivesse o livro, não conseguiria seguir em frente sem dinheiro. Precisava recuperar sua bolsa, bem como precisava voltar correndo para o seu quarto tedioso e não se meter mais em problemas. Ela deu uma última olhada para Alice, que já ia longe pelo campo, e decidiu que entraria no bosque para perseguir o outro ladrãozinho. Como eu fui ingênua!

Ela já não corria, pois percebera que a outra criança entrou no bosque cautelosamente, e talvez não fosse prudente ir tão rápido, pois poderia passar direto por ela e acabar se afastando. Tentou usar algo que aprendera há muito tempo, um encantamento na língua dos pássaros, na tentativa de que algum deles denunciasse a localização da outra criança, mas os pássaros não responderam ao seu chamado, pois o próprio Bosque Rupes, onde ela estava agora, estava sob um forte encantamento que o imunizava de qualquer encanto externo. Sendo assim, eles simplesmente alçaram voo, ignorando o chamado de Madeline.

– Eu devia ter prestado mais atenção em como fazer esse encantamento direito! – pensou ela, imaginando que não proferira as palavras certas.

Encostou-se a uma árvore perto e quase desabou em lágrimas de desespero, mas a árvore estava envolta por líquens e a percepção de algo sujando sua roupa fê-la desencostar no mesmo instante. O medo dera lugar à raiva em um piscar de olhos, e isso aguçou os sentidos dela, bem como sua determinação em encontrar sua bolsa de dinheiro de volta. Olhou ao redor calmamente, mas tudo que viu eram plantas rasteiras verdes, algumas teias de aranha que deram certo calafrio nela, troncos retorcidos e revestidos de líquen que iam até o alto, e, até onde sabia, a pequena poderia estar tanto diante dos seus olhos, camuflada e rindo dos seus esforços inúteis, como trepada em algum dos milhões de galhos acima dela.

O bosque poderia se estender por tantos quilômetros quando a própria cidade, e Madeline tentava lembrar-se de encantos que pudessem ajudar naquela situação.

– A chave é não perder a calma – dizia para si mesma, mas sabia que a calma não existia nesse momento, quando poderia estar estragando todos os esforços do Klien, a esperança de milhões de pessoas em Pedragória que nem sequer sabiam de sua jornada, mas que seriam beneficiadas com a queda de Dorian Van Der Claus, e, claro, as milhões de vidas que seriam poupadas com a prevenção dos intentos doentes dele. Na verdade, o que mais doía era o pensamento de encarar Lumin depois de ter falhado, e sentiu-se mal consigo mesma por ignorar a importância de todos os outros motivos pelos quais estaria em maus lençóis.

Andou e andou bosque adentro, sempre escondendo, mas ciente de que talvez o ladrãozinho estivesse acompanhando cada movimento seu, apenas esperando que ela se afastasse para ir embora com seu dinheiro. A vagância de Madeline se estendeu por logos minutos que logo viraram horas, e o bosque mais adentro não era tão assustador em tons de verde e azul escuro, mas sim dourado pela luz do sol, um dourado bonito e sereno, e o chão era mais regular, coberto de folhas mortas de cor verde, amarela, laranja e vermelha. Não havia teias de aranha, só o canto dos pássaros e o som de outros animais. Por outro lado, o mundo era árvores até onde os olhos alcançavam. A essas alturas, ela já pensava em meios de conseguir dinheiro para o resto da viagem, ao menos até encontrar o professor Walter, e então precisaria explicar como tudo saíra tão errado.

Como que por mágica, ela não precisou mais procurar. Ouviu sons de galhos quebrando ao longe, e não demorou a perceber que se tratava de uma perseguição. A princípio pensou que fosse um predador caçando sua presa, e nesse caso escondeu-se mais rápido que ligeiro. Depois que identificou de onde se aproximavam, pode ver que, na verdade, era alguém perseguindo outro alguém, e o outro alguém era o ladrãozinho (ou poderia ser uma menina, ela não sabia exatamente) que levara seu dinheiro. Ela imaginou que a pequena sorrateira criatura pudesse ter também roubado algo do perseguidor, e eles descreviam uma trajetória elíptica que passaria exatamente por onde ela estava. Curvou-se sobre o corpo e esgueirou-se na altura das plantas mais baixas para não ser vista, aos poucos se aproximando de onde eles passariam. Esperou pacientemente, mas o pequeno não estava tão desligado, e desviou justamente quando Madeline saltou sobre ele, deixando o caminho livre para que seus dois perseguidores esbarrassem violentamente um contra o outro na velocidade de um meteoro atingindo a terra. E foi o que aconteceu.

Madeline fechou os olhos e esperou pelo impacto, e acertou a mandíbula do outro com a própria testa, o que doeu muito. Soltou um “ai” de dor e caiu para trás, sentando sobre as pernas. O outro estava tão rápido que girou duas vezes antes de atingir o chão, levando a mão à boca e praguejando:

– Cacete, será que eu vou precisar morrer antes de acordar?

Uma lágrima se formou nos olhos dela, pela força do impacto. Olhou para o garoto, e percebeu que ele olhava para suas pernas.

– Pervertido! – gritou, jogando a primeira pedra que conseguiu, ao mesmo tempo em que ele também falou qualquer coisa e desviou da pedra, mas ela ainda acertou o seu ombro. Ela corou um pouco, mas o rosto sardento não deixava transparecer tanto quando as faces rosadas daquele garoto. Ao menos ele teve a decência de e envergonhar!, Pensou. Olhou para os lados por alguns momentos, procurando, mas perdera-o. Apenas aceitou que tudo daria errado, e quis socar alguém (possivelmente Luan). Ele perguntou algo que ela respondeu de mal humor. Olhou para ele com um instinto assassino, mas não durou muito.

Aquele garoto estranhamente lembrava-lhe Lumin, quando eles se conheceram. Hoje ele era mais alto e calado, cresceu muito nos últimos tempos. Os cabelos hoje eram longos quase como os seus, e os olhos tornaram-se tristes, mas ainda bonitos, porém nem sempre foi assim. Houve um tempo em que Lumin tinha os cabelos curtos (mas ainda assim longos para um garoto) e desarrumados, e os olhos espertos e vivos. Não espertos nesse sentido, pensou ainda irritada por ele ter visto debaixo do seu vestido. O garoto diante de si era bonito e parecia bobo, e estava extremamente acabado. Os olhos vermelhos denunciavam que ele estivera chorando, talvez. A pele brilhava de suor, pequenos restos de folhas marrons e arranhões de todas as espécies. Também tinha folhas nos seus cabelos, e sua camisa preta estava rasgada em dois lugares, bem como a bermuda marrom desbotada, quase amarelo ocre. Star Wars era o que tinha escrito nela, e ela achou aquilo completamente estranho e sem sentido. Demorou mais um pouco nos olhos dele. Era escuro como o mar na noite, enquanto os de Lumin eram como a superfície sombreada de uma montanha coberta de gelo num dia ensolarado, todo azul, mas ela não conseguia dizer a diferença.

– É você a garota do bosque. Como eu faço pra acordar? – perguntou Luan, e ela começou a achar que ele era louco. Só então lhe ocorreu que estava sozinha num bosque imenso com um estranho pervertido que poderia ser qualquer espécie de gente. A raiva e a recordação de Lumin que ele trazia tiraram dela toda essa percepção, mas agora que se dera o trabalho de pensar nisso tudo, tentou parecer agressiva e não frágil.

– Acordar? Você parece perfeitamente acordado pra mim. Acordado até demais. – Falou com firmeza, e ele corou outra vez. Diante daquilo, ela riu-se por dentro, e pensou que ele não poderia ser assim tão perigoso, afinal de contas. Ele parecia extremamente embaraçado.

– Escuta, eu preciso voltar pra o lugar de onde vim. Eu estava dormindo, tranquilamente, dai um maluco de capa preta me acordou, me...

– Shush! – Ela interrompeu-o. A menção à capa passou despercebida até que ela sentiu um calafrio terrível, e então a imagem de um Silencioso imediatamente saltou na janela da sua mente. O pavor percorreu seu corpo inteiro fazendo com que ela quisesse sair dali imediatamente. Ela saltou sobre ele, tapando sua boca e olhando para os lados, à procura de algum sinal de perigo. Desculpou-se com ele enquanto curava sua ferida numa rapidez incrível, e então correu e se escondeu atrás de um tronco. Ainda ouviu Luan pedir que ela esperasse, mas o que aconteceu depois fez seu sangue gelar nas veias: um Silencioso, um verdadeiro Silencioso, materializou-se numa explosão de fragmentos de luz azul reluzente, montando um Skarg tão demoníaco e feio quanto aquele que ela contemplou rapidamente no Porto da Baleia, algumas noites atrás. Mas havia algo de diferente nesse.

Ele tinha grandes botas meladas de sangue e lama, seus olhos eram lava viva, e seu rosto era coberto por um lenço amarrado atrás da cabeça e outro tapando sua boca. Seu crânio era estranhamente grande, e seu nariz parecia projetar-se para fora, como um focinho. Tinha os cabelos longos e emaranhados, como canudos de esponja correndo até a cintura, cheios de adereços em cores mórbidas. Era grande como um búfalo. Suas mãos eram escuras, e seus braços cheios de fitas e correntes. Ele não parecia um cavaleiro, e sim um bárbaro. O Skarg não era menos feio, e parecia maior do que os outros dois que vira antes. Ela tirou o livro das costas ainda escondida e agarrou-o contra o corpo, espremendo os olhos de pavor. Se as coisas estavam ruins, agora não podiam ficar piores.

Ela esticou a cabeça por detrás de algumas folhas grande para ver o que acontecia, e o Silencioso caminhava na direção de Luan. Achou que algo seria dito, mas o Silencioso limitou-se a pular para cima dele, e parecia que o único objetivo ali era mata-lo.

Em pânico, ela cometeu o que seria a maior imprudência da sua vida. “Portai”, tentou enquanto estava agarrada ao livro, e um brilho ofuscante levou embora Luan no mesmo momento em que sua cabeça seria esmagada pelas mandíbulas do monstro que se precipitava sobre ele. Ela queria, sim, salvá-lo, embora não houvesse pensado em como sairia dali depois, ou o que faria se o cavaleiro negro decidisse procura-la, ou, pior, se ele trancasse-a num encanto de área, e aí tudo estaria perdido, pois o livro estaria nas mãos do rei.

Por sorte, o encantamento também atingiu o Silencioso, que sumiu na mesma luz azul que o trouxe, junto com seu Skarg e Luan. Madeline viu-se sozinha de novo, imaginando se havia matado a ambos, se tinha apenas transportado eles para outro lugar, não evitando a morte de Luan, ou ainda se o Silencioso voltaria para busca-la. Não sabia mais o que fazer, e tantos pensamentos começavam a leva-la a loucura, de modo que ela correu bêbada pelo bosque, procurando a saída. Já não pensava no dinheiro perdido. Eles sabem onde estou! – pensou atordoada. Não fazia ideia que Luan estava a salvo, ou que o Silencioso não desconfiava da sua magia achando que era, na verdade, apenas o limite do que Nanrai poderia fazer. Ela vagou por muitas horas, tombando no chão, apoiando o corpo nos troncos das árvores e levando as mãos à cabeça. Seu corpo estava em frangalhos, e sentia a cabeça girando. Tinha fome, sede, e estava completamente perdida na escuridão da noite que caiu, até que deu de frente com uma pessoa bem mais alta que ela, mas cuja forma ela não conseguia reconhecer. Seus olhos não enxergavam, e suas forças lhe faltaram. Sentiu um golpe na nuca, vindo de um segundo elemento atrás de si, e o que estava na sua frente sorriu. Ela apertou os olhos chorosos e desfaleceu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Hey, senhoras e senhores leitores! Espero que curtam esse capítulo, e lembrem-se da existência dos reviews, coisas lindas que #todosamam :D



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Livro De Merlin" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.