O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 13
A verdade por trás da rosa – Parte III


Notas iniciais do capítulo

Fim da história de Dorian! =D (finalmente)



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Crivus andava furioso na sala do seu aposento privado. De pé à sua frente estava o filho, com os olhos marejados, lábios violentamente comprimidos e um grito de raiva contido na garganta. Ele não tem direito de falar assim comigo, não tem poder sobre o meu futuro. Mas não disse nada ainda, não seria prudente. O sol entrava inexorável pela vidraça da janela como um farol, apesar do frio que fazia à medida que o outono se arrastava para o fim, e Dorian tinha os olhos fixos na poeira que flutuava despreocupadamente através dos raios de luz, para então sumir nas sombras. O rei massageava a têmpora com os dedos longos, depois os passava pela extensão do cavanhaque, bufando.

– Você não tem ideia do problema que está causando com esse seu devaneio estúpido e infantil, Dorian Van Der Claus, não faz a mínima ideia!

– Eu não estou fazendo nada errado! Só quero...

– Calado! – interrompeu o rei estendendo o indicador para o filho ameaçadoramente – você não quer nada. Acha que pode sair por aí se engraçando com qualquer uma? Sabe quantas mulheres dariam um braço para fisgar um rei? Não sabe! Estou tentando construir um futuro decente para você, ingrato, e você estraga tudo saindo escondido com a filha de Percival Frattermoon!

– Não estamos saindo escondidos, eu quero...

– Eu já falei que você não quer nada! – gritou o rei – Vocês não podem nunca ficar juntos. Nunca! Você é um moleque irracional e incompreensivo que acha que tem um romancezinho com uma menina de rostinho bonito só porque começaram a nascer uns pelinhos no seu queixo – Dorian abaixou os olhos mais ainda, envergonhado – não tem nada de errado em se divertir, Dorian, e eu nunca lhe repreendi por isso, mas não uma Frattermoon, não no encontro de toda a realeza durante o outono, não debaixo do nariz dos Dremment!

– Eu não quero nada com aquela Dremment! – arriscou ele num tom um pouco alto demais, e os olhos do pai esbugalharam como se ele tivesse dito o maior absurdo do mundo.

– Não repita mais isso neste castelo, nunca mais! Está ouvindo? – E Dorian esse perguntou quem não estaria, pois o rei gritava agora – Seu futuro está atado ao de Geórgia, isso já foi decidido e é para o futuro do reino. A família Dremment vem de grandes administradores, com uma das maiores guardas pessoais do reino. A província mais próspera do sul do reino está sob responsabilidade do Dremment, essa união é estratégica para mantê-los sob nossos olhos, ganhar sua amizade. Não gosta dela ainda? Passe a conhecê-la melhor e deixe de perder tempo levando a menina Fratermoon para conhecer o campo de flores.

Aquela furiosa conversa unilateral começou quando, depois do almoço, Ricard abordou o rei da maneira mais cordial que conseguiu para tratar de um assunto muito delicado que causava certo desconforto na sua pequena Geórgia, que desde a noite anterior não saia do quarto. Acontece que, na tarde anterior a esta, os jovens estavam assistindo ao jogo de polo que era ritual de alguns senhores do leste do reino, quando Dorian foi flagrado flertando mais do que seria aconselhável com Lana, que não escondeu os sorrisos. Os dois desapareceram por alguns minutos depois disso, para então voltarem mais sorridentes do que haviam partido.

Dorian percebeu quando Geórgia, com uma carranca rosto, afastou-se com suas primas e servas a passos rápidos da arquibancada da arena de polo. Ele não se importou, apesar de tudo. Lana sentiu-se como se fizesse a coisa mais despicativa do mundo contra a pessoa mais justa do universo, mas o príncipe sempre contornava a situação alegando que o mundo não era como se esperava, ao menos para alguns, e para aqueles que ele era, seria um desperdício não aproveitar. À noite, encontrou-se com Lana de novo à beira do lago norte. E de manhã também, no campo de treinamento onde cavalgava sob os olhos atentos de Morgus.

Já galopava feliz para as colinas depois do lago com seu corcel favorito, um de pelos dourados e uma crina longa e escovada. Perto das colinas ficava o campo de flores, onde as senhoras tinham atividade marcada durante a tarde inteira. Havia marcado com Lana de escaparem sem ser notados, e de lá conhecerem a fazenda de moinhos, um completo parque eólico que usava a força do vento para tarefas mecânicas no subsolo, a dezenas de metros de profundidade, onde feiticeiros de segunda e terceira ordem mantinham um amplo saguão iluminado por archotes de fogo azul. Lá embaixo, além de usar o poder do vento para girar grandes engrenagens de ferro, os feiticeiros desenvolviam pesquisas relacionadas ao poder que elemento poderia fornecer à sua magia.

A meio caminho do campo de flores, dois soldados da guarda pessoal do seu pai o interceptaram, aproximando-se na velocidade de um raio. Crivus o queria no seu escritório urgentemente, mesmo que amarrado ao lombo do cavalo, eles acrescentaram. Sentindo-se humilhado pelo jeito como fora solicitado por seu pai através de meros guardas, Dorian puxou as rédeas dando meia volta e indo em direção ao castelo, com os soldados no seu calcanhar. Atravessou o portão de entrada, a longa alameda que vinha dele até a entrada do castelo, depois o imenso arco de pedra do paredão interior, e entregou o cavalo ao cuidador, bufando por dentro. Apesar da bravura inicial, toda sua coragem murchou ao entrar na sala onde o pai o esperava. Ouviu cinco minutos de violência verbal gratuita, onde tudo que conseguiu fazer foi não deixar as lágrimas caírem perante a ferocidade do pai.

– E não pense que eu não sei quando isso começou, Dorian. Você esquece que, quando você pensa em ser esperto, eu sou dez vezes mais esperto que você antes de você começar a pensar. Até um tempinho atrás estava tudo bem, mas você parece que engoliu fezes! No jogo de polo, Dorian? Aos olhos de todo mundo?

– Eu não entendo porque eu não posso seguir meus desejos a respeito de Lana Frattermoon. – Dorian contorcia todos os músculos do rosto na tentativa de não deixar o choro descer.

– Então você é um estúpido. – Crivus estava impaciente. Sabia ser amável quando queria, mas o dever estava tão encrustado nele que mesmo com membros da família era implacável às vezes. Sabia se redimir quando era preciso, mas quando bombardeava alguém, usava todo o poder de fogo sem piedade antes disso. Pegou uma caneca de ferro adornada – sua preferida, com um dragão desenhado na alça – e bebeu seu chá quente fitando as toras de madeira crepitando na lareira, buscando as palavras para continuar o monólogo.

– Essa noite você vai dizer à garota que isso é tudo um engano e não vai mais encontrar com ela. Vai procurar Geórgia Dremment, convidá-la para passear a cavalo amanhã de manhã e consertar a bobagem toda que você fez. Ao fim de todo dia, hoje incluso, quero que venha aqui e me diga o que fez e no que resultou. Fui claro? – perguntou calmamente, como se não estivesse gritando a plenos pulmões alguns instantes atrás.

Como Dorian não respondesse, o rei pousou impaciente a caneca sobre a escrivaninha. – Dorian? – Ele espremeu e arregalou os olhos, mas o filho não respondeu senão por um olhar pétreo tão ameaçador quanto o seu, mas a despeito do esforço inumano para manter as lágrimas no limite das pálpebras, a primeira delas escapou pelo rosto ousado do garoto.

Crivus bateu violentamente com as duas mãos abertas sobre a madeira da mesa – fazendo um estampido que pôde ser ouvido a três janelas de distância – e levantou de um impulso só, fazendo cair papéis, tinteiro, velas, pergaminhos e livros. Dorian abaixou os olhos rapidamente, não conseguindo mais desafiar o pai, e não conseguiu esboçar sequer uma palavra antes que ele esbofeteasse o ar, cuspindo entredentes a palavra “eorajea”, e foi como se um furacão acompanhasse o movimento de seu braço, jogando cadeiras, tapete, mapas, globos, quadros, e o próprio Dorian, contra a estante de livros no canto da sala.

O garoto só conseguiu murmurar um “ai”, apertando intensamente o ombro que batera com força contra a quina da estante, e o pai já caminhava em sua direção outra vez.

– Você vai aprender a nunca mais desafiar o seu pai, Dorian – os cabelos loiros encaracolados do rei flutuavam como se uma ventania percorresse seu corpo dos pés à cabeça, e os braços abertos como um maestro conferia-lhe um aspecto assustador.

– Perdão, pai, eu – Mas antes que terminasse, o rei já o jogava para o outro lado com ímpeto. Dorian já chorava agora, caído no chão como um moribundo e um corte no lábio. As mãos do rei já estavam a um braço de distância dos cabelos escuros do príncipe quando Guandarg irrompeu pela porta de supetão, “Solidificati!”.

Uma parede invisível se ergueu entre o rei e seu filho, Guandarg entre ambos. O velhinho tremia, de braços abertos de frente para o rei e a cabeça baixa como se esperasse morrer ali mesmo. Saia, foi tudo que Dorian precisou ouvir para correr da sala aos prantos. Guandarg imediatamente ajoelhou-se diante do rei, que olhava aturdido para onde Dorian estava segundos antes.

– Perdão, majestade. Sei que minha insubmissão é passível de morte, eu...

– Calado, Guandarg Nimorius. – Crivus esbofeteou as bochechas do velho feiticeiro duas vezes e andou de volta até sua cadeira, ajeitando os cabelos que caiam pelo rosto de volta para o lugar. – você não – e parou para tomar tanto ar quanto conseguiu – você não me interrompe quando eu estiver tratando com o meu filho. Nunca mais. Saia.

Guandarg já estava a meio caminho da saída quando Crivus mandou que ele voltasse. Ele fechou os olhos temendo pelo pior, mas retornou obedientemente.

– Na noite de amanhã – o rei começou, sentado na sua cadeira em meio ao caos em que transformara sua sala – a prima da jovem Frattermon vai se encontrar com aquele loiro de cabelos rebeldes, o filho de Arthur Donadgun. Eu quero que você enfeitice Dorian para que ele veja Lana Frattermon ao invés da prima. Isso é possível?

Guandarg engoliu em seco, perguntando-se se, caso respondesse com a verdade, o rei incorreria em tamanha crueldade contra os sentimentos do próprio filho. Tentou não demorar muito a responder, já extrapolara sua cota de insubmissão para uma vida toda. – sim, majestade.

– Faça isso. Agora saia da minha frente.

...

O decorrer da tarde pareceu acompanhar o humor de Dorian. A passos firmes e largos fincados no chão amolecido, de cabeça baixa e cabelos desgrenhados, o jovem príncipe poderia bem ser confundido com um camponês que acabara de sair do labor cruzando a colina, não fosse pela fúria austera com que caminhava.

Nuvens negras, cinzas e roxas carregadas de chuva se apressavam pelo leste, bebendo todo o azul e laranja do quase fim de tarde. Ventava forte, as folhas mortas amarronzadas cortando o ar em circular abundância. Antes de sair do castelo no melhor que conseguiu sem ser visto, Dorian deixou um recado com um dos servos do pátio leste. Diga a Lana Frattermon que o sol da tarde cavalga numa carruagem de fogo. Esse era o código para encontrarem-se nos estábulos da parte leste do castelo, um ponto secreto que os dois já vinham usando para se encontrar havia algum tempo.

Você não vai controlar minha vida, pai, pensava ele consigo mesmo, limpando com as costas das mãos sujas as lágrimas que caiam incessantemente dos olhos vermelhos. Vai ter que me matar se quiser me parar. Ele pressionava com força o ombro esquerdo, e as costelas doíam insanamente. Levou outra queda na descida dos degraus escorregadios do pátio, e agora os cotovelos e o queixo também estavam escoriados.

Uma garoa fina começou a cair quando Lana chegou ao estábulo escuro, sorridente, mas sem entender muito do que se passava. Todos os cavalos estavam presos em seus compartimentos de madeira, alguns relinchavam e remexiam, deixando o ambiente quente, barulhento e com um odor característico. O estábulo era como um longo corredor trespassado por outros seis corredores de menor cumprimento, uma construção grande o suficiente para comportar quase oitenta cavalos, com um segundo piso que mal permitia a alguém andar devidamente erguido, usado geralmente para estocar feno. No cruzamento de cada corredor, uma lamparina emitia uma luz tênue.

– Recebi sua mensagem, mas achei estranho! Você não pôde ir ao campo hoje à tarde? Preciso voltar logo para me arrumar para o jantar... – falou antes mesmo de alcançar o príncipe. Quando seus olhos fitaram-no depois de desmontar do cavalo, soltou uma exclamação de horror. Ela correu para ele, verificando se estava tudo bem.

– Seu rosto, suas roupas... O que aconteceu, Dorian? Você foi ferido? – falava enquanto tateava o príncipe com certo receio de quebra-lo.

– Não, está tudo bem, eu só... – Olhando para si tentando acalmar Lana, Dorian agora percebia o quanto estava realmente um farrapo. Obrigado, pai. – eu precisava te ver. – E abraçou-a com força, deixando-a ainda mais confusa.

– Aconteceu alguma coisa que eu precise saber, Dorian? Fala pra mim...

Quando se afastaram, os olhos de Dorian estavam vermelhos de novo.

– Eu tive uma discussão com... com o rei. – A chuva começava a engrossar do lado de fora, fazendo um barulho agradável enquanto quebrava contra o telhado ondulado e descia em torrentes pelos estreitos canais. – Mas não foi assim que eu me feri, eu caí no caminho pra cá. – Lana instantaneamente imaginou que aquela discussão tinha a ver com ela, e num piscar de olhos seu rosto tomou um aspecto preocupado. Ela juntou as mãos afrente do vestido simples que vestia, esperando que ele continuasse. Dorian apenas abraçou-a mais uma vez.

– Sobre mim? – ela quis saber.

Dorian demorou um pouco a responder.

– Não. – mentiu – ele só... Eu odeio quando ele tenta manipular meu futuro e me obriga a fazer coisas que eu não quero. É ruim ser filho do rei, e eu não dou a mínima pra feitiçaria. – Ele lembrou de Guandarg, e perguntou se tudo ficaria bem com o velhinho.

Lana abraçou Dorian mais forte, e os dois ficaram abraçados em silêncio ouvindo a chuva cair lá fora, o tilintar das correias e fivelas amarrando os cavalos que relinchavam constantemente, e a própria respiração ofegante.

– Quero te mostrar uma coisa – falou Dorian, puxando-a pela mão sem responder ao “O quê?” como se não tivesse ouvido. Adiantou-se pelo corredor principal até o fim dele, onde, em um cubículo espremido entre a parede lateral e uma caixa do tamanho de um boi, uma escadinha de madeira levava ao piso superior.

Lá em cima, janelinhas redondas quase grudadas com o telhado davam uma vista panorâmica de todo o horizonte a leste do castelo. Mas não agora. Agora, tudo que se podia ver eram algumas árvores mais próximas, o resto era chuva, cinza e névoa.

– Era isso que você queria me mostrar? – perguntou ela sem entender.

– Bom, não é normalmente assim... – ele respondeu. Na verdade, ele não sabia muito bem porque trouxera Lana até ali. Ficaram se encarando por alguns segundos cultivando a coragem e tentando inutilmente desacelerar a respiração quando Dorian finalmente tomou a iniciativa de beijá-la. Se beijaram longa e calorosamente por um bom tempo, até que as coisas foram ficando quentes demais, e pensamentos antes inimaginados começaram a tomar forma na cabeça de Dorian, naquela chuva, sozinhos, no estábulo. Lana só se deu conta muito depois, quando a mão boba de Dorian o traiu – ganhando uma tapa por isso.

– Dorian, não... – ela respondeu, se afastando.

– Por que não? – ele perguntou, imediatamente se arrependendo. – digo, desculpe-me, Lana. Eu... Eu não sei o que está acontecendo comigo – na verdade sabia. Lana andou na outra direção e ficou encarando a chuva cair copiosamente lá fora. Ficava cada vez mais escuro no estábulo, e Dorian sentou-se encostado a um monte de feno encoberto por uma longa capa de tecido velho abraçando os joelhos. Ela se juntou a ele algum tempo depois.

– Desculpa, eu não posso fazer isso.

– Tudo bem.

– Você parece triste, Dorian. – ela falou, pousando a mão sobre o ombro dele. Ele se resumiu a passar o braço por sobre os ombros dela e trazer pra mais perto, deixando que ela apoiasse a cabeça no seu peito, afagando-lhe os cabelos.

– Você vai me amar pra sempre? – ela perguntou sem olhar para ele.


– Sempre.


E voltaram a se beijar, dessa vez com mais ímpeto. Dorian tinha plena ciência do que estava fazendo ao passar por cima das ordens de seu pai, mas não se importava. Nada no mundo importava mais.

Lana lembrou-se de todas as conversas que Hellen lhe contava (e de como se sentia envergonhada em todas elas), e não conseguia, por mais que tentasse, se ver protagonizando uma delas. Sabia que estava cruzando os limites, mesmo os de Hellen, que nunca seria perdoada e poderia até ser punida por tal comportamento. Entretanto, aqui estava ela, permitindo que Dorian desbravasse a curiosidade de ambos. Sentia a adrenalina crescendo dentro de si, uma inquietação que não permitira que ela dormisse em paz se tivesse de encarar a noite pensando no que poderia ter sido, se fosse embora daquele castelo em uma semana e não tivesse, pela primeira vez na vida, ouvido seu coração.

Não deixava de sentir-se mal por Geórgia, mas elas não eram nada uma da outra, e Dorian não sentia nada por ela. Esse pensamento também a incomodava profundamente, tão cruel lhe parecia. O raciocínio falhava entre os beijos e abraços de Dorian, enquanto suas mãos descreviam trajetos que nem sequer as dela haviam percorrido antes. Qualquer que fosse a melhor atitude naquele momento, estava longe do alcance dela concluir.

Lana ficou nervosa quando Dorian, em meio ao turbilhão de braços e corpos que eles compunham, começava a despir-se de suas roupas. Ela tentou, em um breve rompente de racionalidade, pará-lo e dizer alguma coisa, mas a força e as palavras morreram no caminho, bloqueados por aqueles olhos violetas avermelhados e a boca vermelha. Ela estava envergonhada como nunca imaginara possível, mas também não conseguiu parar, e ali eles se renderam ao máximo da intimidade permitida à espécie humana pela primeira vez na vida de ambos. Foram momentos de puro descobrimento, no qual usaram todos os sentidos ainda sem muita certeza do que faziam.

Até a luz clara da lua pintar círculos azuis no chão de madeira através das janelas de vidro, Dorian e Lana se entregaram um ao outro inteiramente, e ao fim de tudo estavam os dois deitados sobre o pano acima do feno, suados, com as roupas espalhadas por todos os cantos.

...

Quando a manhã veio, Guandarg foi aos aposentos do príncipe pela quarta vez verificar se ele já havia acordado. Dorian estava sentado na sua cadeira perto da janela completamente aberta, bebericando um pouco de chá quente com uma atadura nas mãos e cotovelos. Vestia uma calça e camisa branca da maior simplicidade, os cabelos soltos sobre os ombros e os olhos perdidos ao longe.

– Meu príncipe?

Ele virou-se ainda delirante como se, a despeito do barulho da porta e os passos do velho, só o tivesse percebido agora.

– Guandarg! – e de repente ele levantou-se deixando o copo sobre o criado mudo, lembrando-se de como as coisas acabaram na sala de seu pai no dia anterior – Está tudo bem com você? O que ele fez?

– Nada – o velho tentou sorrir para despreocupar o menino, mexendo as mãos como quem recusa algo e caminhando até a janela – Seu pai fui muito compreensivo, ele entendeu que eu só quis protege-lo. Ele ama você, Dorian. Perdeu a cabeça, mas... há certos momentos em que precisamos aprender algumas lições, e você precisa aprender algumas que talvez eu não tenha ensinado ainda, ou que eu não seja capaz. – a voz dele era carregada de tristeza.

– Não quero lições dele, Guandarg. – O velho tomou uma expressão derrotada, repreendendo-o, mas Dorian abriu um largo sorriso, pronto a começar sua narrativa sobre a lição que aprendera no estábulo na noite anterior. Parou no meio do caminho, entretanto, pois combinaram que esse seria um segredo dos dois: Lana e ele. Desfez o sorriso tarde demais.

– Alguma coisa, Dorian Van Der Claus?

– Nenhuma. – respondeu com um sorriso cínico de orelha a orelha, sem mostrar os dentes.

– Quer que eu cuide dos seus ferimentos?

– Não! – falou, mais alto do que pretendia – Eles vão sarar logo. Eu mesmo posso cuidar disso, se precisar. Obrigado, Guandarg.

– Você está executando os feitiços de escudo, não está, Dorian?

– Sim, velhinho! – Dorian, apesar da perceptível animação, intrigou-se com o tom melancólico na voz de Guandarg, como alguém que marcha pelo corredor da morte para ser guilhotinado. Geralmente Guandarg era sempre a pessoa que animava o príncipe. Ele respondeu com um rosnado quase inaudível e se encaminhou para fora do quarto, com os olhos fixos no chão e as mãos no bolso do longo manto marrom que vestia.

...

A pequena Victoria corria entre os campos de flores com mais três garotas de sua idade. Era como um labirinto de altas paredes verdes salpicadas de azuis, vermelhos, laranjas e amarelos, florescendo em todos os cantos. Acima delas, exércitos de pequenos insetos cruzavam o céu rápido como uma bala, perseguidos por pássaros famintos. Logo atrás, a rainha Lassandre caminhava com outras senhoras mostrando o vasto campo de flores do castelo da família.

Algumas flores mais exóticas tinham setenta centímetros de diâmetro e erguiam-se a três metros do chão, movendo-se no embalo da brisa abundante. O sol intenso atravessando as pétalas finas projetava uma luz vermelha no caminho todo, como se eles caminhassem em uma sala de teto feito de vidro vermelho. Eram como formigas andando num jardim de cogumelos.

– É uma bela floricultura, majestade – disse uma das velhas que a acompanhava quando alcançaram novamente as flores de tamanho convencional. Um chapéu ricamente adornado no topo da cabeça e uma sombrinha que pouco ajudava apoiada ao ombro.

– Sim. Os nossos servos mantém este campo desde sete gerações antes do rei Crivus. Temos algumas espécies que só existem aqui, em nenhum outro lugar no reino. Algumas são periodicamente enviadas para Assunção, por conterem propriedades mágicas e medicinais que não se encontra em outras plantas.

Passaram por uma estufa no meio do campo de flores onde um grupo de quatro feiticeiros vestindo mantos cinza e chapéus cônicos cor de violeta misturavam certas substâncias gelatinosas que ficavam girando ao redor de suas mãos. Dois deles usavam óculos fundo-de-garrafa sob as franjas pesadas do cabelo preto em formato de cuia. Os outros dois pareciam carecas debaixo do chapéu, com uma trança indo do fim da nuca até as omoplatas. De tempos em tempos, um deles mastigava e engolia uma pétala de uma das flores na bancada de frente pra eles, e sua pele tornava-se azulada – ou verde, dependendo da pétala – por alguns instantes, e então toda a cor parecer vazar pelas suas mãos, mudando de cor o círculo gelatinoso.

– Esses são feiticeiros de Náutica, vieram aqui para concluir seu exame de terceira ordem – falou a rainha – a maioria dos que escolhem o caminho da feitiçaria botânica prestam seus exames de mudança de ordem aqui.

– E aquelas flores ali, majestade? – perguntou uma das senhoras apontando quando chegaram próximas a um quarteirão protegido por oito feiticeiros de manto negro, barbudos e sérios, em guarda com seus longos báculos. O quarteirão era todo preenchido por flores de pétalas negras, com folhas e caules de um azul etéreo e luminoso, notável mesmo sob a luz do dia.

– Aquela são flores do vale da morte – anunciou numa voz menos afável – conhecidas por nascerem apenas no Vale da Morte, fronteira entre nosso reino e Uruk. Ainda desconhecemos suas propriedades, mas doze pessoas já morreram ao longo dos anos apenas por tocá-las. Seu cheiro é agradável, dizem, mas mantemos feiticeiros-guardas formando uma barreira ao seu redor o dia todo. Mesmo no vale, é muito difícil encontra-las. Por conseguir nascer num terreno tão mórbido, suas raízes vão tão fundo quanto a torre mais alta da Fortaleza de Eldron e mais, por isso nunca conseguimos removê-las daqui.

Algumas das mulheres fizeram cara de asco, outras puxaram suas crianças pra mais perto, e mudaram de direção. Victoria já estava tão acostumada ao campo de flores que correndo estava e correndo continuou (claro, mantendo-se fora da barreira dos feiticeiros de manto escuro), mas parou quando percebeu que estava sozinha e todas as outras se dirigiam para outra direção, sendo chamada por sua mãe para acompanhar a todos.

...

Durante o almoço, Dorian fora obrigado a sentar ao lado de Geórgia Dremment, e Lana, Hellen e Goreth não apareceram no salão principal. Ele não sabia se isso era obra de seu pai ou opção de Lana, mas decidiu não se preocupar com isso. Ontem fora o melhor dia da sua vida, e um dos piores também, estava cansado demais para fazer qualquer coisa hoje. As conversas foram sempre as mesmas, com especial empolgação de Ricard Dremment, que lançava olhares sorridentes ao príncipe erguendo sua taça de vinho, deixando-o levemente desconfortável. O corpo inteiro de Dorian doía, em especial as pernas. Acho que peguei uma gripe. Excelente, posso ficar de cama o resto do dia!

Geórgia era um pouco mais nova que ele, tinha apenas catorze anos. A despeito disso, comportava-se como se passasse dos vinte, toda delicada e cheia de pompa. Falava pouco, provavelmente ainda chateada com o fato de Dorian claramente passar mais tempo com as Frattermoon. Como se eu lhe devesse alguma coisa, ha!

– Não vai provar o scargot? Tem um gosto excelente, senhorita. – tentou Dorian, claramente indiferente se ela comeria ou não o bicho.

– Não gosto do aspecto dele – respondeu batendo levemente de um lado para o outro com o garfo na comida, uma expressão que beirava o nojo. – posso calmamente passar o almoço aqui beliscando qualquer outra coisa e sorrindo dos gracejos, ninguém vai sequer reparar. – depois acrescentou – exceto vossa majestade.

Que cordial, pensou o príncipe, voltando a atenção ao seu próprio prato. Não muito longe dele, na cabeça da mesa colossal, Crivus, que gargalhava de alguma brincadeira de Ricard, olhou para o filho com a ternura de um rochedo no topo de um penhasco justo quando Dorian tentou conferir o que o pai estava fazendo. Não manteve o olhar por muito tempo. Não pode reclamar, pai. Estou tentando ser minimamente amigável.

À tarde ficou acordado que todos iriam conhecer a famosa fazenda de moinhos, num dos pontos mais altos das redondezas. Dorian disse a seu pai que estava indisposto, pedindo para ficar no seu quarto pelo resto do dia. Recebeu um “não” mais seco que as areias do deserto, acrescido de um “nem que você morra de indisposição, irá conosco”, pelo que agradeceu cínica e amargamente. Guandarg iria com eles, o rei insistira para que o velhinho vigiasse Dorian com maior afinco.

As horas passaram sem maiores incidentes, e a opinião de Dorian a respeito de Geórgia passou de Extremamente Insuportável para Levemente Desagradável, o que era um avanço. Precisar aturar a garota com Guandarg ao lado era muito mais fácil, mas o príncipe não deixou de notar que a tristeza que presenciara no rosto do velho de manhã só estava mais acentuada, mal disfarçada por trás das brincadeiras inocentes e do sorriso amigável que Geórgia tanto gostou. Ela até conseguiu sorrir, meta que Dorian julgava impossível atingir. As nuvens começaram a chorar outra vez, primeiro de leve, e eles acharam melhor voltar.

– Dorian, preciso falar com você – disse Guandarg em meio à multidão de senhores, fidalgotes e damas que cavalgavam a passo pelo gramado verdoso de volta ao castelo.

– Sim? – respondeu da cela do seu cavalo quando Guandarg emparelhou com ele. O príncipe parecia incrivelmente mais distraído hoje, como se tivesse acabado de acordar ao longo de todo o dia.

– Não aqui, é um assunto deveras delicado. – o velho parecia hesitante – Me encontre sob o terceiro arco do lado nordeste do castelo, sim? Ao passar da décima carruagem no céu. – Dorian esboçou uma careta confusa e ao mesmo tempo preocupada, mas anuiu com a cabeça só para ver o velho acelerar a marcha, cavalgando sozinho um pouco mais à frente.

...

Quando a noite chegou, Guandarg era todo melancolia. Não queria ele acreditar na crueldade do que fizera. Durante a manhã, despejou no chá de Dorian os ingredientes necessários para criar a ilusão que seu rei ordenara. Talvez, se não estivesse tão apaixonado, o pequeno tivesse sentido o cheiro estranhamente forte da fragrância de Lana quando voltou ao seu chá, não caindo na armadilha de pensar que era só sua imaginação enlevada pela jovem.

O feiticeiro estava jogado sobre uma pilha de lençóis desarrumados e amassados sobre almofadas na cama baixa do seu quarto de três níveis, como se fossem três salas adjacentes sem paredes, uma mais alta do que a outra. O quarto era escuro e quase sem janelas – só o piso mais elevado tinha duas, encobertas por cortinas em tons escuros de azul e vermelho, encerradas por filetes abundantes semelhantes a fios de ouro. Nas prateleiras, frascos velhos, livros e pergaminhos dividiam espaço com animais empalhados e itens de um metal reluzente meticulosamente lustrados numa completa confusão de conteúdo. A cama era suficientemente grande para um gigante dormir confortavelmente, e Guandarg estava deitado de lado como alguém recém atropelado, tão imóvel que estava.

Tinha nas mãos uma esfera na qual girava uma substância gasosa de cor arroxeada que se assemelhava muito à tinta expelida pelos polvos quando se sentem ameaçados. Entretanto, os olhos tristes vidrados naquela esfera de vidro que agarrava com as duas mãos viam muito mais do que simples tinta dançando na água profunda. O que viu trouxe-lhe lágrimas aos olhos.

Via Dorian, escondido por trás de um arbusto, na chuva, observando dois corpos esfregando-se acaloradamente sob a luz trêmula da tocha na parede abaixo do arco de pedra, longe do alcance de todos, protegidos da chuva. Viu a expressão de incredulidade e negação no rosto aturdido do rapaz, podia tocar a confusão no seu rosto se assim quisesse. Viu quando os dois amantes fugiram depois que o príncipe saiu da escuridão, sem sequer perceberem que era ele. Talvez ele visse a verdade se olhasse mais de perto, mas não olhou, nem conseguiu. Viu a suspeita virar uma tempestade, que acabaria invariavelmente virando ódio em poucos minutos. Pior de tudo, sabia que Dorian não tinha executado os feitiços de escudo, e que ele tinha visto Lana Frattermoon ao invés de Hellen com o garoto de cabelos loiros rebeldes.

Quando Hellen, acompanhada de Goreth e do loiro Howard Donadgun, apareceu no campo, o príncipe Dorian vestiu uma máscara de desprezo e raiva que não fora notada por ninguém, exceto o mestre dos cavalos, Morgus, que claramente percebia como ele cavalgava mais rápido e mais longe, disfarçadamente afastando-se das arquibancadas onde a rainha Lassandre, a pequena Victoria e outros telespectadores observavam ele e alguns outros cavalgarem. Howard pediu que um cavalo fosse preparado para ele, e conversava sorridente com Hellen e Goreth enquanto esperava na entrada de uma das três grandes arquibancadas de madeira. A tia de Hellen chamou pela sobrinha abanando com um lenço. Enquanto caminhava pela madeira barulhenta do corredor da primeira fileira, a loira avistou Dorian, que puxava as rédeas do seu corcel furioso, mas não imaginava o que era quando o chamou de longe.

– Lana procurou por você ontem por três salões após o jantar, onde esteve? – perguntou ingênua quando ele se aproximou a contragosto. – está tendo um dia ruim? – acrescentou, percebendo a ruga no meio da testa dele.

– Não. – respondeu seco. – Eu... estou ótimo. Ela me procurou? Precisei resolver algo com Guandarg, não pude me demorar.

Hellen acreditou nas palavras dele, logo ignorando a expressão de desprazer em seu rosto. Ela sorriu o sorriso lento e malicioso que era sua especialidade, numa expressão silenciosa que sugeria que ela ouvira os relatos sobre as aventuras de Dorian e a prima dois dias antes. Dorian, em contrapartida, puxava as rédeas inquieto, com as mãos tão comprimidas que a pele parecia querer rasgar as luvas. Olhou para Howard quando ele perguntou se havia alguma terra a explorar hoje. Você não faz ideia, respondeu em sua mente. Só depois de girar abruptamente e marchar de volta para longe foi que Hellen percebeu algo estranho.

Howard se juntou a ele e aos demais, montando um malhado branco e vermelho. Tentou acompanhar Dorian, que se dirigia veloz por uma das trilhas bosque adentro depois de olhar para ele duas vezes. Ele logo estranhou que o príncipe não esperasse por ele para que trotassem juntos, e parecia querer evitar a presença do rapaz e de todos os outros que se divertiam em campo aberto. Dorian, chamou, mas não obteve resposta. A marcha foi ficando mais e mais veloz, e a trilha mais estreita, de modo que os ramos de árvores baixas quebravam contra os ombros e testa deles no que se transformou uma perseguição em alta velocidade.

Pensando se tratar de uma brincadeira, Howard Donadgun sorria ofegante, concentrado e extasiado enquanto via o corcel de pelos dourados de Dorian se aproximando dele na trilha traiçoeira. O terreno ficava mais e mais acidentado, além de troncos caídos servindo de obstáculos e buracos encobertos por gravetos. Foi quando, depois de um relance para trás, Dorian puxou as rédeas do seu cavalo de tal maneira que o animal empinou, ficando de pé só nas patas traseiras. Os olhos violetas e coléricos por cima do ombro foram tudo que Howard viu antes que, numa manobra de esquiva, seu cavalo desse um solavanco para a esquerda, fazendo-o bater com violência contra um dos galhos próximos e cair girando no chão sobre as costas. Dorian olhou de sua sela com os lábios comprimidos enquanto o corpo dele se contorcia de dor, metade do rosto ensanguentado na queda. Ele desceu do seu cavalo, e a dois passos de Howard ouviu o som abafado de cascos contra o chão fofo aproximando-se. Era Morgus, e com ele um ajudante. O príncipe imediatamente abaixou-se em auxílio, adquirindo uma expressão preocupada e explicando como o outro caíra enquanto galopavam.

...

O que deveria ser mais uma noite festiva transformou-se num mar de tensões. Todos estavam apreensivos quanto ao estado de saúde do jovem Donadgun, andando inquietos pelos mais variados cantos do castelo, e sempre perguntando sobre novas notícias. Em seu quarto, os pais acompanhavam uma equipe de três médicos feiticeiros que tratavam das feridas do rapaz, mas a fratura na bacia era grave demais. Poções eram ministradas a fim de aliviar a dor, mas ainda assim ele gemia e tremia de agonia e febre.

Morgus tentou levantar o rapaz, mas uma dor lascinante impedia que ele sequer agarrasse aos ombros do parrudo homem. Como sequer foi cogitada a possibilidade de um incidente intencional, Dorian permaneceu calado e prestativo, embora depois que o jovem ferido fora levado para o castelo, seu semblante tivesse adquirido um ar sombrio, dando-se conta do que fizera. Sua mãe correu ao seu encontro para certificar-se de que tudo estava bem com ele, e todos nas arquibancadas levantavam e esticavam o pescoço quando ele saiu do bosque depois de Howard, inquietos, curiosos e sem saber o que se passava. Dorian e Hellen trocaram um olhar tenso, ele em choque e ela perplexa, e o medo tomou conta dele. Será que ela desconfia que eu fiz algo? Impossível! Não sabia se deveria falar com ela, tomar alguma atitude quanto ao seu medo crescente, ou se isso era infundado e apenas denunciaria a maneira como intencionalmente causara a queda do outro.

O príncipe estava só na varanda do salão principal que ficava de frente para o portão do castelo, ao longe. Com sua calça branca e uma túnica ocre, vestia uma capa de lã marrom para proteger do frio que fazia, e também para esconder-se dos demais. Sua mente ainda estava entorpecida. Quanto mais pensava no acontecido, menos se reconhecia nos seus atos, e seus pensamentos sempre o levavam a alguma conclusão doentia sobre Lana. O arrependimento o corroía por dentro, e ele tentava de todas as maneiras culpa-la pelo seu ato impensado, quando seus pensamentos pareceram invocar a própria diante dos seus olhos.

– Dorian? – a voz que ele tanto ansiava ouvir e odiava fervorosamente por dentro o chamou como uma música cantada pelas sereias do oceano, mas ele se contraiu ao toque dela em seu ombro. Lana deixou transparecer sua confusão, sem entender as atitudes dele. – O que houve? Está tudo bem com você, eu ouvi o que...

– Eu vi vocês – ele interrompeu-a sibilando entredentes. – Você é repugnante, Lana Frattermoon!

Ela não conteve a exclamação de horror, estranhando o atípico comportamento ofensivo de Dorian.

– Como você ousa, Dorian? – perguntou afastando-se para trás – não tem o direito de falar assim comigo, sem ao menos dizer-me de que sou acusada, eu que não te fiz nada!

– Eu vi vocês dois! Ontem, sob o terceiro arco da ala nordeste do castelo durante a chuva. Você e aquele loiro imundo Donadgun!

– Eu nem sequer saí do castelo ontem, passei a noite no meu quarto após o jantar! Você está louco, Dorian... – e a epifania arrebatou-a como uma onda quebrando contra as rochas. Seus olhos arregalaram-se e a voz sumiu por alguns instantes.

– Você... – Uma lágrima escorreu dos seus olhos, e ela correu para longe, descendo as escadas da varanda a passos sôfregos. Logo que se deu conta de que não estava mais seguro, amedrontado em ser descoberto, Dorian disparou atrás dela.

– Espere! – gritava quando passaram correndo pelo pátio de entrada. O manto azul escuro que Lana agarrava contra o peito camuflava seu corpo na escuridão da noite. Ela desceu um lance curto de escadas, passando por um corredor de pedras arredondadas com alguns bancos de madeira ladeados por pequenos postes, depois outro lance, correndo. Dorian podia ouvir os soluços dela não muito à frente, atirando-se pela viela esquerda do castelo. As luzes amareladas das janelas laterais projetando retângulos de luz no chão azulado eram cortadas pelos dois que passavam acelerados. As roupas de Dorian permitiam movimentos mais flexíveis, de modo que ele alcançou-a quase no pátio atrás do castelo.

Agarrou com firmeza o pulso de Lana, e ela virou-se dando um safanão para livrar-se da mão dele.

– Você não tem o direito de falar assim comigo, Dorian Van Der Claus. Eu nunca estive com Howard Donadgun em lugar algum! – seus olhos estavam vermelhos, e seu tom era de raiva. Ela sabia que provavelmente fora Hellen que ele viu, mas não entendia como era possível confundir as duas, e sentia-se extremamente ofendida por tal pensamento vindo dele. Dorian ficou aliviado pela mudança de assunto, mas o alívio não minimizava sua raiva pela traição, pois ele estava certo de tê-la visto claramente, e agora a considerava uma mentirosa. Ela continuou – Como você ousa pensar isso de mim depois de... – sua voz falhou. Lana tentou parar outra lágrima que caía com o indicador fechado. Chorava sem se conter agora. Queria abraça-lo tanto quanto ele queria o mesmo, mas ele não o fez.

– É impressionante como você consegue mentir tão desavergonhadamente, Lana. – O semblante de repúdio era o mais doloroso de suportar vindo de Dorian. Mesmo querendo acreditar no contrário, não conseguia ignorar seus olhos. Pressionaria até que ela admitisse, e suplicava em silêncio para que isso não acontecesse. Ela não falou, só chorava. Chorava pelo terrível engano que cometera negligenciando todas as regras comportamentais e sucumbindo a um desejo insano e sem futuro, por ter se enganado tão profundamente a respeito de uma pessoa, por ter se permitido tanto com essa pessoa, por ver a confiança na qual se sustentava ser destruída sem a menor chance de resposta, e, acima de tudo, por ainda assim amar tal criatura.

– Como eu fui tola... Se essa é a sua conclusão do que você acha que viu mesmo quando eu digo o contrário, é porque nunca confiou em mim de verdade. Você mentiu, não foi, Dorian? Só queria se divertir esse tempo todo.

– Como eu posso ignorar algo que vi tão claro como eu vejo você agora? Diga-me! – ele gritou – Mostre como, e eu de bom grado aceitarei sua verdade, Lana! – mas a resposta não veio, só o choro. Um choro em silêncio, mas abundante, que ele, em seu turbilhão de conclusões deturpadas, tomou por consentimento.

– Eu achei que você fosse diferente de todas as garotas promíscuas com quem eu brinquei até hoje, Lana Frattermoon. Mas foi só a pior delas. Eu devia ter escutado meu pai. – As palavras de Dorian foram interrompidas por um tapa sonoro que avermelhou sua bochecha esquerda instantaneamente. Ao levantar o rosto, acariciando o recém-adquirido hematoma, viu Lana disparar outra vez pela área de acesso ao campo de flores, depois das colinas. Aonde ela pensa que vai? Dorian seguiu-a.

– Lana!! – já não sabia o que estava fazendo, já não pensava. Se arrependera do que acabara de dizer, de ter tentado com sucesso derrubar Howard do seu cavalo, de duvidar dela. Será possível que eu tenha me enganado? Não, tenho certeza do que vi. Mas... Temia tê-la perdido sem que as coisas ficassem claras, só queria voltar no tempo e desfazer tudo que saíra errado. O céu estava sem nuvens, mas ventava bastante. A luz da lua refletia na grama alta como se fosse um oceano verde-azulado, dançando ao som das brisas sob poucas estrelas. O clima esfriava, pois o outono arrastava-se nos seus últimos dias. – Por favor, espere!

As pernas dele estavam cansadas, os olhos doíam um pouco, e não percebeu o clarão azul levantando detrás da próxima colina. Tomou-o a princípio pelo reflexo da lua no gramado úmido, mas logo percebeu o que era na verdade, e um terror acometeu-o de súbito.

– Lana, espere! Por favor, não vá lá! – mas ela já ia muito adiante, talvez mal conseguisse ouvi-lo gritar desesperadamente. Chegando ao topo da colina, lá estava ela, cercada por um mar quadrado de luzes azuis que clareavam todo o breu ao redor e subia aos céus, desaparecendo à medida que ficava mais alto. Maravilhada com a beleza das flores, Lana esqueceu-se completamente a dor, Dorian ou qualquer outro dos seus problemas. Dorian correu ao seu encontro, mesmo sabendo do perigo ao qual os dois estavam submetidos. Uma lágrima escorria do seu rosto enquanto corria debilmente ladeira abaixo. Por quê?

Só teve tempo de entrar no quarteirão das flores do Vale da Morte, quando Lana, com um sorriso pálido nos lábios, desfaleceu em seus braços.

– Lana! – Ele agarrou-a justo quando ela estava caindo – Lana, por favor não, volte! Oh, Lana!!

– Dorian – ela ergueu um braço para tocar seu rosto – acredite em mim. Eu amo você... – e tossiu sangue, um filete tão escuro como a noite escorreu pelo canto direito dos seus lábios. Nas costas de sua mão, dois arranhões rasgavam a sua pele, e um fraco brilho azul saia deles. Dorian puxou a capa cobrindo-a enquanto abraçava seu corpo sem forças, numa esperança vazia de que isso fosse fazê-la resistir. Ele soluçava, com o rosto afundado nos cabelos de Lana já morta em seus braços. Gritou a plenos pulmões, um grito rouco e inumano que podia ser ouvido dos quatro cantos do mundo. Não sabe quanto tempo levou até que Guandarg aparecesse ali, ajoelhado ao seu lado com o rosto ríspido e derrotado conferindo Lana. Ele olhou para o velho, agarrando sua manga com força e pedindo que trouxesse ela de volta.

De repente, Guandarg não era mais ele, era Lana. O cheiro dela inundou seus pulmões de forma sufocante, fazendo-o largar o seu corpo sem vida e engatinhar de costas para longe, batendo contra um dos tantos bastões fincados no chão. Dorian arregalou os olhos e piscou freneticamente, sem entender, e depois sentiu o cheiro de Guandarg, e Guandarg era Guandarg outra vez, e depois Lana de novo. Ele respirou como se sua garganta estivesse tapada, emitindo um som gutural, aterrorizado. Dorian apoiou-se no bastão e fez menção de levantar-se, mas o feiticeiro foi mais rápido em puxá-lo pelo manto de volta para o chão. Acabaria matando a si mesmo se caísse sobre as rosas.

– Visio – ouviu a voz de Guandarg dizer enquanto a mão direita estendia-se sobre seu rosto e um clarão formado de pequenas luzes laranja envolvia sua cabeça. Sua respiração estava mais fácil outra vez, e Guandarg assumira outra vez sua aparência normal.

Dorian estava nauseado como se algum animal peçonhento o tivesse picado. Levantou uma das mãos do chão sujo e enxugou os olhos como uma criança de cinco anos faria. Guandarg embalava Lana em seus braços, também chorando. Seu rosto estava triste. Triste como ontem de manhã. Triste como quando disse que precisava falar comigo.

Você está executando os feitiços de escudo, não está, Dorian?

Não é possível...

Um verdadeiro pavor tomou conta do rosto de Dorian, e ele gritou outra vez, o mesmo grito gutural e desesperado que só um corpo sem alma consegue reproduzir. Pôs-se de pé como um bêbado.

– Dorian, por favor, saia daqui! Chame alguém, não toque nas rosas. – Guandarg evitava os olhos do príncipe.

– Você não apareceu ontem, Guandarg... – a voz embargada de Dorian parecia delirante – não apareceu.

– Eu não pude, Dorian. Agora vá ao castelo, chame algum dos médicos aqui agora! – Quando os olhares finalmente se cruzaram, Dorian quase podia ver a verdade por trás deles. Não...

– Era ela? – ele perguntou, ignorando o pedido do velho feiticeiro.

Guandarg fechou os olhos abaixando a cabeça, o que só disparou o coração de Dorian. Não, não é verdade, não pode ser. Ela precisa voltar, precisa! Só então se dera conta da irreversibilidade do que acabara de acontecer. Aquela voz que o derretia por dentro nunca mais seria ouvida. Seu rosto nunca mais iria corar de vergonha, aquele sorriso nunca mais tocaria seus ouvidos, nunca mais poderia deslizar seus dedos por aquela pele pálida, sentir seu cheiro, abraçar sua cintura nua. Sentia-se como se tivesse levado um soco no estômago, como se os membros fossem despedaçados um a um, como se uma faca trespassasse seu peito lentamente, girando, dilacerando-o. Sentia a alma doer dentro de si, queria arrancá-la, fazer parar.

– Guandarg... O que você fez?

– Eu falhei com você, meu príncipe. – agora o feiticeiro também soluçava, dos seus olhos escorriam um oceano. – o que eu fiz não tem perdão, Dorian.

– Diga que não foi você, Guandarg – o garoto estava de pé imóvel, sem piscar. O silêncio foi resposta. – Diga! – gritou – Diga que não foi você, Guandarg. É uma ordem, minta! – e já estava gritando descontroladamente, Diga! Fale, Guandarg! Os punhos fechados agarrando a túnica de Guandarg.

Mas ele não disse.

Um punhal estava preso à cintura de Dorian, e dois segundos depois ele estava entre as entranhas de Guandarg, e de novo, e de novo.

Os olhos azuis cuja vida se esvaia em lágrimas apertaram-se e expandiram de novo. Só a fronte embaçada de longos cabelos negros ondulados ele conseguia ver em meio àquele mar fulgente de azul, como se fosse um céu no mais resplandecente dia. Tocou os olhos violetas do príncipe pela última vez, lembrando-se do doce menino que tantas vezes levou em suas costas, tantas vezes fez sorrir e curou.

– Eu falhei com você, Dorian – respirava seus últimos suspiros com dificuldade – me perdoe...

Dorian encostou sua testa contra a do velho, também ele se desfazendo em choro. Perdão, Guandarg. O que foi que eu fiz?

– Cephei. No fim do livro, o último e mais poderoso feitiço... – E tossiu – O feitiço que Miro não conseguiu conjurar. Entre pela porta, Dorian, ela... Ela vai estar lá...

– Guandarg... Me perdoa, Guandarg. Não vai – mas era tarde, ele morrera.

...

Quando Dorian foi encontrado, com o sol quase nascendo, estava no templo onde, dezesseis anos atrás, tinha sua vida atada à do feiticeiro Guandarg Nimorius. Estava de joelhos no centro do pequeno altar circular rodeado por pilares coríntios, no centro da sala. As velas, que ali permaneceram por dezesseis anos, estavam apagadas, velhas, e folhas marrons salpicavam o chão por onde um rastro de sangue levava até o príncipe. Suas mãos – prostradas –, suas roupas, um punhal de frente para si e seu rosto estavam melados de sangue, e seus olhos estavam vazios enquanto falava sozinho com alguém invisível que ele imaginava ser Guandarg.

...

Howard Donadgun morreu poucas horas depois, devido a um acidente com o cavalo. Lana Frattermoon morrera pelos efeitos do veneno da rosa do Vale da Morte, embora, apesar das especulações, os motivos que a levaram até ali fossem desconhecidos. Guandarg morreu nas mesmas circunstâncias, enquanto tentava socorrer a pobre garota. Boatos diziam que muito sangue fora encontrado no local para que a morte fosse atribuída à rosa, mas ninguém questionou a versão oficial. O príncipe foi mandado para Talhouse, costa leste de Pedragória, incapaz de superar a morte do feiticeiro. Viveu por sete anos na casa da tia, Eldora Van Der Claus, num palacete no topo de uma colina acima do mar. O clima ameno e agradável, longe do barulho e das perturbações da capital, ajudaria na sua recuperação, segundo disseram. Retornou à fortaleza de Eldron por ocasião de uma doença de seu pai, o então rei Crivus Van Der Claus, que faleceu poucos dias depois da chegada do filho. Ele casou-se com Geórgia Dremment dois anos depois.


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Notas finais do capítulo

Quase um mês pra terminar esse! >.< Ficou meio grandinho, desculpem, pessoas :X Acho que Dorian não pode reclamar que a história dele não foi contada. Prometo me policiar mais sobre o tamanho dos capítulos (e tentar organizar as ideias num espaço menor, hehe) nos próximos! :D Se gostou (ou não), deixa um review aí :9 Thaanks for reading



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