Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 24
Reencontros/Parte I


Notas iniciais do capítulo

Tenham uma boa leitura



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A jovem lançou uma vez mais seus olhos em direção a porta que estava ao seu lado. Suspirou... parecia que era a única coisa que conseguia fazer nos últimos dias. Suspirar e rezar. A amiga ruiva estava cochilando, com a cabeça encostada em seus ombros. A bem dizer, elas foram as mais sortudas, pegando muito pouco da implosão da Sede Black. Estavam bem machucadas, mas não haviam quebrado nada. Tanto que, quando Alberith chegou até elas, foram as mesmas que ajudaram-no a socorrer os outros. Estes estavam em estados distintos de problemas. Hiei e Mitaray haviam quebrado alguns ossos. Os irmãos, Ken e Kira, esgotados por causa do ataque das plantas e depois tendo sido soterrados, precisaram ser levados em macas improvisadas até o jato -parte do único patrimônio que restara- e dali movidos para o Hospital Central, na capital, onde todos se encontravam. Crós havia gastado toda a sua energia mágica, e o resquício que ficara fora usado para limitar os danos causados, ou todos poderiam estar mortos naquele instante. Ele estava abatido, desanimado e muito, muito cansado. Cloe se perguntara se conseguiria voltar a ser o mago-chato de sempre.

Iris fora a que ficou presa por mais tempo. Uma viga desabara sobre ela, fazendo-a perder parte de uma das asas e quebrar algumas costelas. Também poderia jurar que ela fraturara a coluna, coisa que mataria um ser humano, ou o deixaria paraplégico para o resto da vida. Mas Iris tinha um sangue intrincado, e como muitos ali, sua regeneração também era prodigiosa. Isso salvou-a da morte, mas lhe proporcionou dores terriveis com o passar dos dias. As anestesias que precisava tomar eram tão fortes que a apagavam completamente, e então ela passava mais tempo em coma induzido do que acordada.

Era a vez de visitar Ken naquele dia, mas Cloe sabia que não aguentaria fazer tal coisa. Ele ardia em febre, estava magro e parecia perder um pouco de sua vida a cada dia. Mas o pior eram os delírios. Cada vez mais insistentes, mais frequentes. Ele perguntava pela namorada. Muitas vezes, ficava agitado, argumentando que estavam machucando-a. Noutras, parecendo um pouco mais desperto, chegava a conversar de fato com Cloe. Sentia medo de morrer. Ele prometera estar lá quando Kit retornasse.

“Eu irei esperá-la até o último segundo.” afirmou certa vez. Depois, por algum motivo que não entendia bem, voltara a piorar. Cloe o adorava, mas vê-lo naquele estado era muito, muito ruim. Sua praticidade natural de ver o mundo não funcionava, e isso fazia-a sentir-se inútil. Cada vez mais seus olhos se voltavam em direção a entrada do hospital, esperando que a amiga as atravessasse. Agora mesmo ela faz isso: olhos perdidos, com a pouca esperança que resta voltada exclusivamente naquela direção.

Mitaray estava mais uma vez sentado ao lado da cama de Kira. Ele a observava dia após dia, esperando pacientemente que ela abrisse os olhos. Não o fizera nenhuma vez desde que fora levada para o quarto. Teve tanta energia drenada pela planta demoniaca que estava demorando muito mais tempo para readquiri-la novamente, e seu corpo entrara, então, em um estado de repouso absoluto.

Mas ele não podia se queixar. Conhecendo-a bem, sabia que seria impossível mantê-la descansando. Ainda se incomodava com a situação, no entanto. Deveria ser ele deitado numa cama de hospital e, mesmo assim, só havia quebrado uma perna, o que na pior das hipoteses fazia-o mancar e sentir dor.

Ele havia cochilado, a cabeça pendendo para o lado da cama. As noites de vigilia estavam cobrando seu preço. Não se importava com isso. Se pudesse estar presente quando ela despertasse, já se sentiria feliz. Se sua voz podia alcansá-la, que mal havia em perder algumas noites de sono?

Foi uma movimentação distinta na cama que o acordou. A mão que sempre segurava agora retribuia fracamente o aperto. Seus olhos se abriram, a claridade do quarto branco ferindo-os tanto quanto os dela. Ergueu seu olhar para encontrar um par de olhos verdes espantados.

–Mitaray...?

O aperto ficou mais forte, o que o fez modificar sua expressão para uma careta. -Sim... sou eu. Está tudo bem.

–Onde estamos? -levou o braço livre aos olhos para escondê-los da luz. -Um hospital?

–Na capital... recebendo cuidados.

–O que houve afinal? Sinto como se fosse um carro sem combustível.

–Ahn, de fato a senhorita estava assim... não deveria atacar monstros sem saber qual são as suas habilidades, sabia? -balançou a cabeça levemente. -Aquela planta sugou toda a sua energia.

–Ótimo... vou me lembrar de não tocar em plantas exóticas a partir de agora. -ela ergueu o corpo, sentando-se. Sua visão foi se acostumando aos poucos, e então tirou o braço da frente para reparar no quarto de hospital em que estava. Muito branco para o seu gosto.As máquinas eram estranhas. -E depois...?

Mitaray estreitou seus olhos, imaginando se deveria contar a verdade ou manter-se calado por enquanto. A jovem notou sua hesitação, devolvendo o olhar. -Vamos... me diga, o que aconteceu?

–A sede não existe mais... ela foi destruída.

–Mas...

–Sabrina ativou a auto-destruição. Sobrou muito pouco... -ele estava obviamente triste ao afirmar isso, mas ainda assim manteve a calma. -Aqueles de nós que receberam auta estão hospedados em um hotel aqui perto.

–Aqueles de nós?? Quem está aqui ainda?

–Iris... Crós... seu irmão.

Se ela já estava pálida antes, agora parecia que havia morrido. Lágrimas brotaram quase de imediato no canto de seus olhos. -Meu irmão...

–Ele vai sobreviver... -o rapaz afagou os cabelos da namorada com a ponta dos dedos, fazendo-a se deitar novamente. -Afinal, ele está esperando por alguém especial...

–Mas... e se ela não chegar??

–Tão pessimista... não é questão de se, é questão de quando... -voltou a segurar a mão dela. -Agora precisa descansar. Ficar alarmada não vai resolver nada. Mais tarde eu a levo para vê-lo, certo?

Kira assentiu com a cabeça em concordância, se encolhendo. -Eu acho que sei como você se sentiu esse tempo todo em que estive apagada...

–Nada tem graça sem a sua presença. -ele deu uma piscadela. -Não creio que tenha ficado tão feliz em ver esses olhos abertos...

–Você é incorrigível mesmo. -ela abriu um minimo sorriso e beijou a mão dele. -Fico feliz que esteja aqui...

Ele ia dizer alguma coisa quando seu parceiro irrompeu pela porta, parecendo exaltado, e alegre, e prestes a dar pulinhos no ar, o que era bem a sua cara. Hiei havia quebrado o braço direito, o que impedia-o de fazer muitas coisas, mas ele não se incomodou de levantar o membro o mais alto que conseguiu, assim como seu par bom, e gritar para o casal ouvir. -Advinhem quem voltou! Ah, que bom ver você acordada, Kira...

–Obrigada pela preocupação... -ela ergueu uma sobrancelha. -Espere... acho que não estava se referindo a você mesmo com esse teatro todo não é?

–Okay, também te amo... -ele balançou metodicamente a mão boa para a garota e voltou a abrir aquele sorriso largo de sempre. -Não... a gatinha-meio-a-meio está de volta!

Ela ainda estava se recuperando da luta contra Mid Night, mas isso não a impediu de escancarar a porta e praticamente jogar-se em cima de Cloe e Sacha, com lágrimas descendo pela face, abraçando-as com muita força. -Vocês estão bem... graças a Deus... aos Deuses... ahn, que saudade!

–K-Kit? -a primeira olhava em choque para a amiga, antes de fato retribuir o abraço. A garota simplesmente havia brotado do nada. Sacha, ainda sonolenta, não entendia o que a estava esmagando.

–Hein...já vou pra casa... deixe eu dormir mais um pouquinho...

–Nyah... sua cabeça oca que eu amo tanto. -Kit a sacudiu. -Sou eu... voltei... não está feliz?

A ruiva bocejou, fitando-a atentamente, como se estivesse ainda dormindo, e só então a compreensão chegou a seus olhos e ela saltou em cima da amiga, invertendo os papéis. -Ah, sua ruim... você demorou muito!

–Eu sei, eu sei... -fechou os olhos, mantendo-se abraçada a ambas. -Eu não vou mais a lugar nenhum... -seus olhos se ergueram e o sorriso abriu-se ainda mais ao ver Hiei vindo em sua direção. Ela lhe deu um abraço de urso. -Sua mala-sem-alça!

–Tampinha! Você foi criar as pedras outra vez por acaso?

–Quase isso, quase isso. -ela mexeu as orelinhas de gato de maneira dócil, enquanto ele se retirava para dar a notícia a Mitaray. As outras duas a observaram.

–E Nick?

–Ahn...meu irmão está debatendo com o Deus dos Ventos do lado de fora. -apontou para além da porta. -Não entendi muito bem a razão... onde estão os outros?

Mitaray colocou a cabeça para fora do quarto em que a namorada estava e acenou para a menina com a mão. Ela nem esperou pela resposta, praticamente voando em direção a ele. Sentiu seu corpo ser erguido e rodopiar no ar, como se fosse uma criança. -Que bom te ver!

–Digo-lhe o mesmo. Já estava achando que tinha se perdido...

–E me perdi mais de uma vez, mas consegui me encontrar... -voltou a botar os pés no chão, indo até Kira e segurando sua mão. -Como você está?

–Mais ou menos... você fez muita falta. Eu não tinha mais quem atormentar... -Kira fez uma careta de profundo desagrado, logo ficando séria novamente. -Vá... tem alguém esperando por você.

Tanto o sorriso quanto o ar infantil da garota morreram depois daquele comentário. Sim, ela se lembrava bem... a pessoa mais importante ali estava a sua espera. Há meses. Afirmou com a cabeça e se precipitou para fora do quarto. -Eu já volto...

Ela correu, embora fosse inconveniente correr em um hospital. Escorregou, deslizou no chão, mas não caiu. Segurou com força a maçaneta do quarto em que Cloe postava-se antes, engolindo em seco. Podia sentir todos os olhares sobre si. Não se virou. Abriu a porta, cruzando o vão desta e fechando-a atrás de si. O quarto branco entrou em seu campo de visão. Não se preocupou em ver cada detalhe do mesmo. O máximo que conseguiu prestar atenção foi no bipe das máquinas hospitalares.

Alguns anos antes, quando conhecera Ken Himura, houve um acidente que o levou a ficar internado. Naquela vez, mesmo sabendo que não era algo grave o suficiente para causar morte, ela ficou ao seu lado durante todo o tempo que estivera deitado, fazendo piadas, desviando sua atenção, animando-o. Dia após dia, após dia. Soubera desde sempre que aquilo não era necessário, mas aparentemente ele gostava de sua companhia, então continuava indo, até o dia que os médicos decidiram mandá-lo para casa.

Por incrível que pareça, aqueles foram dias felizes. Enquanto se adiantava até a cama, pôde reparar em cada traço de seu rosto. Sua palidez, e o quanto de peso havia perdido. Ela não estava muito melhor. Sua mão esquerda ainda estava com uma aparência terrível, e o rosto exibia hematomas, além de ainda estar inchado. Deixou-se sentar na ponta do colchão, e tirou uma mecha do cabelo dele de frente do rosto para colocá-la atrás de sua orelha. Vergou o corpo para frente, apenas tocando seus lábios nos dele. -Acorde... estou aqui.

Ele estava febril. Sentira isso só com aqueles simples gestos. Por um momento pensou que não acordaria, mas então ele abriu os olhos verdes, fitando-a. Houve o reconhecimento instantaneo, e ela sentiu mãos fracas puxando-a para mais perto. Ele a abraçou com a pouca força que tinha, mas ainda assim Kit pode sentir a necessidade. O quanto ele esperara por aquilo. Deixou que sua cabeça deita-se no peito dele, como fizera muitas vezes antes. -Você voltou... minha gatinha... minha pequena... eu senti tanto a sua falta...

Um ronronar baixo de prazer acabou escapando de sua garganta. -Eu te reencontrei...

–Eu estive a espera...

–Eu sei... desculpe ter demorado tanto.

–Não tem porquê se desculpar. -ele alegou com sua voz fraca, acariciando os cabelos negros e azuis da garota. -Sempre soube que voltaria... mesmo que demorasse. Mesmo que... as barreiras fossem intransponíveis. Essa é você.

–Teimosa como uma porta.

–Sim... exatamente...

–Fiquei assim depois de conviver tanto com você.

–O bom aprendiz supera o mestre.

Ela ainda estava com a cabeça em seu peito. Podia ouvir nitidamente seu coração batendo muito fraco. Aquilo a preocupou. Se esforçou para erguer a cabeça e observá-lo.

–Eu te amo.

–Eu também te amo. Muito. Mais do que pode imaginar... -ele fechou os olhos. -Kit... pode cantar pra mim?

–C-cantar? -sua língua enrolou. A garganta ficou de repente muito seca. -Por quê?

–Você canta bem... -sorriu sutilmente, parecendo lembrar-se de algo muito longinquo. -Pode fazer isso por mim?

Kit mordeu o lábio inferior, voltando a se sentar. Passou a acariciar os cabelos dele com a mão boa, descansando a ruim em seu peito. Um relógio na parede tique-taqueava, fazendo-a provar daquele quase silêncio. Passou a língua nos lábios para umidece-los, e então começou, a voz abaixando a um tom em que só ele pudesse ouvi-la.

Hoje eu preciso te abraçar,

sentir seu cheiro, de roupa limpa,

Pra esquecer dos meus anceios

e dormir em paz.

Hoje eu preciso ouvir

qualquer palavra sua

qualquer frase exagerada que me faça sentir alegria

em estar vivo

Hoje eu preciso tomar um café

ouvindo você suspirar,

me dizendo que eu sou o causador da sua insônia

Que eu faço tudo errado sempre

Sempre...

Hoje, preciso de você

com qualquer humor

com qualquer sorriso.

Hoje, só sua presença

vai me deixar feliz...

Só hoje...

Antes mesmo que acabasse, já estava chorando. Ele não ouvia mais. Sequer respirava direito. A máquina começou a apitar freneticamente, ferindo sua audição. Entre a visão embaçada, conseguiu entrever seu rosto. Parecia estar em paz. Podia ser egoismo da sua parte, mas não queria vê-lo assim. Não queria que fosse para um lugar onde não conseguiria alcansá-lo.

–Não vá... fique comigo... -deitou sua cabeça no peito dele, chorando ainda mais. Soluçando, implorando. -Fique... por favor. Por favor...

Agora o coração era de fato inaudível. Num rompante, ela rasgou as roupas hospitalares, deixando seu peito nu. A mão esquerda parecia estar sangrando novamente com o esforço, porque a faixa já começava a ficar tingida de vermelho. Ela também a arrancou com um puxão. Independente de todo o sangue, suas mãos foram para o peito dele. Sem nenhum feitiço em mente, apenas desespero, e uma tristeza muito além da compreensão.

–Volte... volte para mim...

Voltou a descer a cabeça, dessa vez por sobre as mãos. Não viu quando aquela mesma luz dourada a envolveu. Não reparou que a pele dele parecia absorver o sangue que pingava de sua mão. Seu estado emocional não deixava que ela notasse coisas assim. Mas os apitos da máquina começaram lentamente a voltar a frequência normal. A pele dele já não estava tão quente em contato com seus dedos. Até mesmo esses sinais passaram despercebidos.

A única coisa que a acordou de seu lamento foi uma tosse seca e uma mão que tentava desesperadamente puxá-la um pouco para cima. -Não... não consigo respirar... Kit...

Ela levantou-se tão rápido que ficou tonta. Aparentemente deixara todo o peso do corpo em cima dele, e apesar de ser miúda, Ken não estava em condições de aguentar essa pressão. A face vermelha de choro e molhada voltou-se para ele, sua boca entreaberta. -Você... você está...

–Vivo? Acho que sim... não sei como...

Os olhos dela voltaram a se encher de lágrimas enquanto o abraçava, com cuidado para não machucá-lo outra vez. -Pensei que tinha te perdido...Fiquei tão assustada...

–Estou bem... eu não vou a lugar nenhum... -seus braços a envolveram com carinho, enquanto o próprio sentia um imenso alívio inundar seu peito. Realmente achara que ia morrer desta vez. Só então ele notou que seu peito estava estranho, quase viscoso... como se houvessem passado algum gel ou creme nele... quando desceu seus olhos, reparou que o local estava empapado de sangue. Sangue que não era dele. -O que você...?

A garota pareceu se dar conta desse fato com a pergunta, e balançou rapidamente a mão esquerda, que já começava a doer novamente. -Ai... eu não sei...

–O que houve com a sua mão?

–É uma história meio longa... mas está tudo bem. -ela o tranquilizou, segurando-o para que não levantasse. -Eu vou ficar bem... você está vivo. Isso já é mais do que suficiente. -o sorriso que brotou em seus lábios foi tão puro que ele desistiu de argumentar contra ela naquele instante, puxando-a mais para perto. Suas bocas se tocaram.

Ela ouviu a porta ser aberta atrás de si, e só então parou o beijo, para observar quem estava adentrando o local. Estavam quase todos ali. Mitaray, Hiei, Kira, Cloe e Sacha. Pela primeira vez em dias, todos pareciam felizes, apesar dos ossos quebrados, da falta de energia, dos machucados, possíveis cicatrizes.


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