Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 14
Silêncio que Consome




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Booom
Seria a primeira coisa a se ouvir para quem adentrasse a sede Black naquela manhã de segunda-feira.
Kit desceu as escadas que chegavam do laboratório parecendo que havia participado de um filme dos Smurfs. Seu cabelo tinha tomado uma coloração azul forte, e ela tentava rapidamente tirar as manchas que haviam ficado em seu rosto, no mesmo tom.
–Você tem certeza que esse troço vai sair, não é?
–Ahn claro
O mago vinha descendo logo atrás, com uma careta de não-tenho-tanta-certeza-assim estampada no rosto, e entregando paninhos úmidos para Kit vez ou outra. Ela parecia conseguir tirar o azul do rosto, mas não se tinha tanta certeza assim que seu cabelo retornaria a cor normal.
–Smurfete!!! uma vozinha familiar chegou a seus ouvidos e ela deu de cara com Sacha zombando de sua cara.
–Haha... engraçadinha...
–Kit, você já... Cloe também chegava de outro canto da mansão, e parou imediatamente ao ver o estado da amiga. -...por que está azul?
–A poção explodiu... para variar. Vou tomar um banho antes que isso grude permanentemente em mim... fazia uma careta de poucos amigos (o próximo que perguntasse receberia uma resposta muito malcriada) e voltou a subir as escadas, agora do lado oposto, em busca de um banheiro. No caminho quase tropeçou naquele dragão que resgatara dias atrás, e precisou dar um milhão de pedidos de desculpas e carícias para convencê-lo a não torrar o seu pé.
–Oh... se isso não sair ela vai ficar possessa...
–Acho que já está...
–Só espero que não espalhe pra o resto do corpo... Coçou a cabeça, enquanto tentava capturar o dragão para mais uma de suas pesquisas de comportamento. Estranhamente, ele ainda não tentara machucá-la. Ao embrulha-lo em seu casaco, quase tomou um susto ao ver uma mão surgir do outro lado do sofá e agarrar o bicho, puxando-o para lá. Ela se aproximou o suficiente para ver fios acinzentados de cabelo e um corpo esguio, que deixava o dragão se enrolar sobre o seu abdomen, pronto para tirar uma soneca.
–Mitaray... você leva a sutileza a um outro nivel...
–Hum? ele levantou seus olhos para ela. Impressão sua, senhorita. Aliás... creio que seja melhor avisar à Kit que o azul de seu cabelo não vai sumir.
Franzia o cenho, mas preferiu não perguntar o porquê. Ao ver que havia perdido sua cobaia, sentou-se no outro sofá e abriu uma revista de passatempos, terminando uma palavra-cruzada já pela metade. Sem tirar os olhos do que estava fazendo, resolveu reiniciar o diálogo: -Eu estava lendo uma lenda interessante estes dias.
O rapaz moveu seus olhos em direção a ela, enquanto afagava a cabeça do dragão sobre seu corpo. Draco, como este fora batizado, tornara-se o mascote da sede apesar de todos os protestos de Iris.
–Sobre o quê?
Ahn, ele sabia bem o tema que ela abordaria... depois de algum tempo, os parceiros andavam desconfiados dele e de Hiei. Mas Cloe não se contentava em desconfiar... ela ia procurar referências até descobrir o que estava acontecendo de fato. Crós, que ainda não retornara ao laboratório, revirou os olhos.
–E lá vamos nós.
Sacha apenas jogou-se do lado de Cloe, a ideia de uma lenda urbana chamara sua atenção. Só espero que não seja nada aterrorizante...
Jovem de cabelos cacheados não fez menção de responder por alguns segundos, e só então começou a falar:

Um dia, a Morte finalmente descobriu o que era sentir-se solitária... ninguém sabe exatamente o porquê. Uns dizem que foi uma alma que buscou... outros, uma aposta que perdeu... e outros ainda afirmam que foi um Deus que implantou essa ideia em sua mente milenar. A questão é que ela resolveu que estava na hora de trabalhar em conjunto, de certa forma. Não podia contar com os humanos para buscar as almas deles mesmos, isso não. Também estava incomodada com a quantidade de feitiços de imortalidade e invulnerabilidade que os monstros e alguns mortais estavam a lançar sobre si mesmos, retardando a sua ida para seus domínios.
Então ela encontrou três crianças, que futuramente seriam seus primeiros Caçadores. Eles não eram irmãos, nem parentes. Haviam sido vitimas de uma catástrofe natural, suas familias destroçadas, e só haviam sobrevivido por que um deles havia apostado uma corrida com os outros, e isso os deixou fora do alvo principal. Aparentemente um dragão tinha se deslocado para a tal cidade e queimado tudo e todos que lá se encontravam.
As crianças perdidas e sozinhas vagaram por muito tempo antes que a Morte chegasse a elas, por engano. Mas esta afirmava que não existia coincidências, só Destino, então é bem capaz que em algum lugar do espaço-tempo aquilo já havia sido escrito. De alguma forma que não conseguia descrever, ela penalizou-se pelos pequenos, e os tomou para si... levou-os para seu mundo por alguns anos, ignorando as leis de matéria. Ela forjou armas para estes, cada uma de acordo com sua especialidade e habilidade. E só então, quando todos eles estavam preparados para sua nova tarefa, ela mandou-os novamente ao mundo material.
Logicamente, estes três também haveriam de morrer, já que apesar de tudo, não podia conferir-lhes a imortalidade. Quando isso ocorreu, ela velou as almas e as guiou através do caminho que levava ao Céu e Inferno, com o maior cuidado.
Mas isso não foi o fim. Ela procurou novas crianças, com essa característica especial que poucos tem, e fez o mesmo. Desde então surgiram de fato os Caçadores da Morte, que sempre são em número de três, e que são capazes de matar a maioria das feras mágicas e amaldiçoadas sobre o mundo, ou mundos.

–Hum... uma história fascinante... o rapaz abriu um sorriso breve, voltando sua atenção para o dragão em seu colo. Imagino que esteja imaginando coisas a meu respeito, mas tem um pequeno porém...
–Ahn, eu levei isso em consideração também... o número está errado...
Sacha definitivamente não pareceu entender essas palavras aleatórias. Crós trocou mais um olhar com Mitaray, escondendo uma expressão de entendimento, e logo desviou o rosto para que Cloe não visse.
–De fato... mas seus esforços serão recompensados, senhorita... -Ele fez uma mesura, o que fez a jovem franzir o cenho, profundamente aborrecida.
–Eu irei descobrir... pode apostar nisso...
   
A quilômetros dali Alberich mais uma vez adentrava a capital, e desta vez não parecia nada calmo... ele passou direto pelos guardas, sem se incomodar com as ameaças de morte.. ao se ver inevitavelmente mais uma vez de frente a Baltazar, preferiu ignorá-lo, continuando sua corrida e saltando por cima deste, deixando o corpo escorregar propositalmente no chão e logo reavendo o equilíbrio... sua mão foi ao ar sem que ele precisa-se se virar, enquanto erguia a voz. Deixe nossa discussão habitual para depois!
O guarda resmungou algo em resposta, que ele não conseguiu ouvir...provavelmente um xingamento, mas ele sabia que não seria detido. Por enquanto não, pelo menos. Uma vez mais fez os pés escorregarem, ficando de frente para os portões do Palácio, onde havia mais dois guardas. Ele protestou em pensamento... aquilo iria tomar-lhe tempo, e não podia esperar que Nicolas viesse de tão bom grado até ele como da ultima vez. Ergueu seus olhos para cima, a procura de algum lugar para subir, mas nesse caso ele iria parecer ainda mais com um espião do que geralmente costumavam achar... o elfo suspirou, e se dirigiu mais uma vez ao portão, parando de frente aos rapazes e forçando-se a fazer uma mesura educada.
–Solicito uma audiência com N... com o Senhor do Palácio de Granito...
Certo, ele quase fizera outra vez... tentou afastar o pensamento, a espera... aparentemente aqueles dois eram membros mais velhos, porque o reconheceram.
–Não é aquele elfo...
–É lógico, quem mais haveria de ser... eles trocaram algumas palavras, o que só fez o elfo revirar os olhos, visivelmente irritado...
–É Urgente! Informações sobre Haradja... agora se preferem que o Reino passe para as mãos dela, e querem continuar a discutir quem é quem, podem continuar...
Na realidade em tal caso ele realmente invadiria o Palácio por uma das janelas, independente das consequências que tal ato trariam a ele, mas preferiu não comentar... os dois guardas trocaram um rápido olhar e deixaram seus postos rapidamente, liberando a entrada... Alberich não se demorou muito, logo atravessando o portão e cruzando o salão principal, a procura dos aposentos de Nicolas...
   
O alarme disparou de modo estridente, convocando todos da sede a comparecer à sala dos computadores. Chegando lá, a cena que se desenrolava era no mínimo estranha: Iris parecia mais revoltada eu seu normal, trocando insultos com a pessoa do outro lado da tela, um homem jovem, de cabelos negros e olhos esverdeados... e familiar...
–Você não pode estar falando sério, isso não é da nossa alçada!
–E desde quando a Equipe Black tem uma alçada específica!?
–Desde que eu me tornei a líder. Nós não estamos a sua disposição 24 horas por dia!
–Quando se tornaste tão egocêntrica?
–Quando você se transformou nesse ingrato prepotente...
As acusações ainda eram jogadas de um lado a outro quando Crós resolveu por fim intervir.
–Gente, gente, menos, por favor... O que houve, Nicolas?
O Senhor do Palácio de Granito deixou de replicar a ultima ofensa de Iris para poder responder a Crós.
–Ahn, até que enfim alguém com bom senso... foi encontrado um campo de radiação que provém da Ilha do Silêncio.
–Bom... imagino que isso realmente não é algo que devamos nos intrometer.
–Espere.... pelos Deuses, como vocês são apressados! Nick levou uma mão a testa, notavelmente começando a se estressar. Como eu ia dizendo antes da semi-fada-revoltadinha ai me cortar, também foram vistos barcos demoníacos circundando o último paradeiro em que ela esteve. Alberith chegou a poucas horas afirmando que estão atrás de apenas uma coisa...
Os presentes trocaram olhares preocupados, antes de Ken abrir a boca para perguntar: -E o que seria?
Eles viram quando a mão de Nicolas voltou a descer e ele levantou o olhar para alguma coisa em cima dele, provavelmente o teto, antes de finalmente responder.
–O Olho de Osíris...
Em resposta ao silêncio profundo e confuso que se seguiu, ele continuou: -O artefato mais poderoso, entre esta dimensão e o Mundo Real...
Ele não levava em consideração as dimensões alternativas que faziam parte do que chamavam Mundo da Imaginação ou qualquer uma outra... já que eram milhares, e já ouvira rumores que existiam coisas muito mais poderosas perdidas pelo tempo e espaço... mas se tratando de Diamante e do Mundo em que os Slaiers vieram, o que chamavam de Olho de Osíris era considerado o maior tesouro, e a pior arma, que poderia ser encontrada.
O silêncio continuou por mais alguns minutos, antes que Ken volta-se a falar. Vamos até lá pegá-lo então...
–Não é tão simples... o artefato está sumido a anos... mal sabíamos que estava em Diamante ainda...
–Considerando que a Ilha do Silêncio pode se considerar mesmo nos nossos limites porque... ia dizendo Hiei, antes de tomar um tapa na cabeça de Iris.
–Sabemos bem disso... de qualquer forma, teremos que mandar um grupo para lá o quanto antes, deixar os demônios ficarem fuçando por ai nunca é uma boa coisa... mesmo que o Olho não esteja lá, provavelmente há algo que chamou sua atenção...
–Definitivamente é melhor prevenir do que remediar...
Parecia que finalmente Nicolas e Iris tinham chegado a um consenso... eles trocaram mais algumas informações, entre elas nenhum pedido de desculpas e logo ele estava desligando outra vez.
Havia sido proposto que fosse mandado um pelotão para manter os demônios ocupados e criar uma distração, dando tempo do grupo de campo encontrar o artefato, mas Nicolas ainda afirmava que haviam traidores lá dentro, e enquanto não descobrisse quem exatamente eram e sumisse com eles um por um, não iria mandar uma tropa para recuperar algo tão importante...
Mas ele insistiu em mandar um navio das docas de Moon Scy, para tentar ao menos tirar a embarcação inimiga de lá... A tripulação do Diamante Negro estaria a caminho...
Agora só faltava eles chegarem a um acordo de quem iria fazer parte da missão... como era esperado, o grupo original para sair em campo era composto por Hiei, Mitaray, Kit, Ken e se fosse necessário, Crós...
Porém...
Mitaray ainda estava se recuperando, e pesar de argumentar que estava tudo bem em ir, Iris insistiu que ficasse. Em seu lugar, Kira mais uma vez se preparou para seguir caminho com o irmão...
–Daqui a pouco você vai estar em todas... alegou Ken, erguendo uma sobrancelha, depois que eles se preparavam para entrar no jato uma vez mais...
–Haha... ser multifuncional tem lá suas vantagens...
–Adeus, humildade...
Ela ignorou-o e lançou um ultimo olhar para trás, onde Mitaray estava encostado, aparentemente chateado por ter sido forçado a ficar. Este abriu um sorriso de fazer o que para a mesma e deu de ombros. Kira sentiu-se penalizada por alguns minutos.
–Trago uma lembrança quando voltarmos...
O rapaz apenas franziu o cenho. Já tenho algo em mente...
–O que você quer?
–Tu saberás...
Ele abriu um sorriso e acenou... ela poderia jurar que estava sendo enganada...
Hiei parecia estar se divertindo com a situação, mas preferiu não fazer nenhuma piadinha por enquanto, por amor a própria vida... ele olhou para Cloe e fez um sinal de tchau com os dedos. Veja se consegue contatarmos a tempo desta vez...
–Será fácil se você deixar os aparelhos em um local decente... ela piscou um dos olhos e virou as costas, voltando pelo mesmo lugar de onde tinha vindo. Kit já havia tomado o seu acento, e passava melancolicamente os dedos entre os cabelos antes negros, agora com várias faixas azuis, fazendo com que parecesse uma punk. Crós havia se transformado em um gato preto-como a aprendiz citara certa vez, ele podia fazer isso- e estava embolado em um dos bancos mais atrás, parecendo estranhamente inofensivo.
–Que folgado...
–Hummmm... Kit apenas resmungou em resposta, virando sua atenção para a janela. Minutos depois, estavam a caminho...

A Ilha do Silêncio é tida como amaldiçoada, um local que não se deve procurar a menos que você tenha muita confiança em si mesmo. Sua principal característica é que muda constantemente de posição no mapa... não há um padrão específico para isso. Ela simplesmente pode estar na costa de Vadolfer e no dia seguinte ter desaparecido... o que torna extremamente perigoso ficar muito tempo dentro dela.
Existem apenas rumores a seu respeito... não são muitos que se aventuram por ali, e aqueles que vão para lá ficam contentes em embarcar de volta o mais rápido possível...
Era mais ou menos essa a discussão que acontecia entre os integrantes que estavam confortavelmente instalados no jato... pelas informações, a ilha agora estava do lado oposto do Reino, o que forçava-os a voar por muito tempo, ainda com o risco de chegar na dita localização e ela já ter sumido.
–Éee... um pedaço de terra com personalidade... Kira comentou, enquanto refazia seu rabo de cavalo e olhava através da janela.
–Uma péssima personalidade... eu já soube de gente que ficou perdida lá dentro por semanas, até conseguir algum transporte para voltar para o continente...
–Mas estamos em um jato, isso torna as coisas mais fáceis... Kit argumentou do seu cantinho, chegando um pouco mais perto com o corpo ara poder ouvir melhor... Ken estava aparentemente dormindo no assento ao lado do seu.
–Não tenha tanta certeza... ele ia continuar a falar quando começou a avistar a ilha ao longe... piscou ligeiramente para ter certeza que era ela mesma.
–De qualquer forma, eles estão usando navios, não?
–Sim... uma péssima escolha na minha opinião... mas consigo vê-lo daqui...
–Vê-lo? É apenas um...?
Ele franziu o cenho ainda mais para ver... aparentemente o reforço planejado por Nicolas ainda não tinha chegado. Sim... estou começando a duvidar do senso de estratégia de sua irmã...
Kit fechou a expressão com o comentário... ela NÃO queria se lembrar de que tinha o mesmo sangue de Haradja correndo em suas veias... ou melhor, parte dele...
–Er... foi mal... a sanguinária-inimiga-nacional parece estar com um parafuso a menos...
A expressão dela não mudou, mas logo Kira os interrompia, colando a face no vidro para ver melhor. A Ilha Amaldiçoada está abaixo de nós...
–Dá para parar de falar assim? Os espíritos podem ficar ofendidos!
Um trovão ao longe fez com que todos estremecessem quase de imediato...
–Acho que eles ouviram você... A mulher continuou, com uma voz que imitava um narrador de história de terror...
–Quem se importa se ouviram, e se os demônios nos navios virem a gente? Kit protestou, apontando para a embarcação lá em baixo.
–Não se preocupe... estou voando no modo invisível...
–Ahh, e agora que você avisa...

O jato deu mais uma volta completa, circundando a ilha... o navio inimigo tinha alguns seres rondando pelo convés, o resto já deveria ter desembarcado... um calor absurdo parecia subir do chão quando eles finalmente pousaram e desceram... haviam árvores frutíferas e água, assim como uma alta montanha... mas só isso... eles não ouviram o canto das aves, ou o barulho de qualquer animal. Também não havia sinal de qualquer outro ser vivo dotado da habilidade de se locomover. Era um ambiente estranho, de alguma forma hostil. Kit já estava sentindo calafrios, apesar do calor e do ar abafado.
–Prefiro Dragon a isso aqui...
–Mesmo com os dragões? ouviu alguém perguntar.
–Mesmo com os dragões...
Eles continuaram a caminhada com um pouco mais de cautela... pela lógica, deveriam encontrar em alguma parte do caminho os demônios de Haradja, e para isso teriam de estar preparados. Dias antes, Crós jogara um feitiço em todas as armas da cede para ter certeza que cada uma delas conseguiria trucidar qualquer criatura que não fosse protegida por uma magia muito forte. Kit, assim como Ken e a irmã, imaginavam se Driguem teria sido mandado mais uma vez para a missão... era um desejo egoísta de vingança partindo de cada um deles, mas não se podia fazer nada quanto a isso...
Mas o rival de fato não estava na ilha... era outra pessoa que rondava a frente da pequena tropa despachada por Haradja. Para falar a verdade, ela já estava pesquisando o paradeiro do Olho a tempos, mesmo dias atrás, quando Iris fora capturada...

O silêncio sepulcral finalmente foi quebrado... agora podia-se ouvir uma melodia lenta e ritmada-quase incômoda-que causava certa sonolência. Kit usou de sua audição apurada para leva-los exatamente para a fonte da musica. Com cuidado, eles se aproximaram do que parecia ser mais uma clareira.
Pela primeira vez puderam ver algo parecido com um animal, ressonando no meio do circulo... a parte inferior do corpo era como a de um leão... a superior, uma águia. A calda era uma cabeça de serpente, igualmente adormecida... os pelos do corpo tomavam uma coloração azulada, e uma grossa coleira mantinha-o preso ao chão... no exato momento, alguns diabretes estava tentando retirar essa coleira, com cuidado para não acordar o grifo.
–Ande logo com isso, ele está encantado...
–A mestra está usando o som para mantê-lo dormindo e para rastrear ao mesmo tempo... não quero estar aqui quando houver o azar dela encontrar a trilha novamente...
Enquanto o diabrete voltava ao trabalho, Kit e os outros se entreolharam. Mestra?
–Haradja provavelmente não está aqui... deve ser outra pessoa... o gato negro no qual Crós havia se transformado argumentou, fazendo quatro cabeças voltarem em sua direção.
–Você fala nessa forma? Hiei perguntou, antes de ser cortado por Ken.
–Vamos deixar essa discussão para depois... o que é aquilo que está dormindo?
–Um grifo... isso não é bom...
–Claro que não... garras afiadas, bico mais afiado ainda, ele voa e ainda tem uma segunda boca para envenenar quem chegar muito perto. O caçador protestou, girando o bastão entre os dedos. Mitaray ia adorar estar aqui!
–Mas ele não está... Kit deu de ombros. Temos que nos virar com o que sabemos...
–E o que sabemos??
–Que é melhor para todos nós se essa música continuar a tocar...
E como para variar a sorte nunca está do lado deles, as notas pararam de sair... e quase que de imediato, um par de olhos avermelhados se abriu.
Foi tudo muito rápido... Hiei, que estava um pouco mais a frente, empurrou a cabeça de Kit e Ken violentamente para baixo, fazendo um resmungo de protesto vir de ambos, enquanto Kira sabiamente girava para o lado, ficando completamente atrás de uma árvore. Crós apenas rolou pelo chão para atrás de uma moita... Para a infelicidade dos demônios que estavam mais perto do grifo, eles não tiveram qualquer oportunidade de se esconder... um foi rasgado em três com um grito medonho e logo depois virava uma pilha de enxofre. O segundo teve parte da cabeça abocanhada... um terceiro ainda ficou parcialmente deformado por causa do veneno das picadas... o diabrete que estava soltando-o e tinha com algum milagre se afastado a tempo, já havia subido em uma árvore e praguejava que havia avisado a eles. Bem, ele estava dizendo isso antes de se desequilibrar e cair aos pés dos integrantes da Equipe Black.
–Ée... estou com um bom pressentimento...
–Peguem ele antes que deem falta...
No segundo seguinte Kit já havia enfiado um punhado de pano na boca da criatura e Kira já começava a puxá-lo pelo rabo, arrastando até chegar em uma árvore mais distante e começando a amarrá-lo no tronco. Sem poder gritar ou usar as garras, o demônio só conseguiu pestanejar e resmungar até ter a boca liberada.
–Que Ajax os carreguem, criaturas imundas...!
–Olha... eu quase fiquei ofendida agora... Kira revirou os olhos, fazendo a lâmina da espada passar pelo pescoço da criatura. Desembucha bichinho esquisito... o que está acontecendo aqui...?
–E você acha mesmo que vou dizer...? Há...
Ele foi cortado uma vez mais por uma pancada violenta de Kit em sua cabeça, o suficiente para ele morder a língua a ponto de quase perde-la... mais uma vez sentiu a atenção sobre si. Que foi? Estamos com pressa!
Mais um dar de ombros coletivo deixou claro que o assunto devia ser esquecido... o diabrete agora lutava para tentar xingar através da língua machucada, o que causava apenas um amontoado de sons sem muito nexo.
–Vou perguntar de novo, e se não responder vou usar a sua cabeça como bola de futebol... Kira fez questão de empurrar um pouco mais a lâmina e ferir a pele semelhante a couro.
–Ah... tudo bem, eu digo... a Mestra nos trouxe aqui para encontrar o Olho de Osíris...
Ele tentou falar da maneira mais compreensível que podia. Ken suspirou exasperado. Isso a gente já sabe...
–É... que tal dizer o porquê do bichinho de estimação que vocês soltaram aqui? Hiei se juntou ao interrogatório, apontando na direção de onde tinham vindo.
–Grimory é apenas uma garantia... foi a resposta.
–Sua garantia quase destruiu vocês... quem está no comando da expedição? Kira pressionou ainda mais. O diabrete grunhiu mas não respondeu, o que fez ela forçar ainda mais a espada, dessa vez em seu ombro.
–Lady Cassandra! É ela...
Tanto Hiei quanto Crós trocaram um olhar, este segundo assumindo sua forma meio-humana quase de imediato depois de ouvir a resposta. Isso não é bom...
–Por que...?
–Cassandra é uma Deusa Menor... a Mestra dos Sons...
–Quase uma Musa Grega?
–Pior que isso...
Eles levantaram as cabeças num movimento coordenado quando os ruídos da movimentação do grifo pela mata voltaram... aparentemente ele havia alçado voo minutos antes, sem dar atenção a eles, mas desta vez tinha-os notado. Um misto de pio com rugido saiu de seu bico escancarado, antes que ele fizesse uma curva no ar e dispara-se contra a árvore em que prendiam o prisioneiro, fazendo-a em pedaços e, consequentemente, ele em pó. Eles se separaram, esperando uma próxima investida... a criatura era ainda maior vista de perto, e as garras eram suficientemente grandes para esmagar a cabeça de qualquer um deles sem muito esforço...
No entanto... ele parou em meio a um bote quando uma melodia diferente começou a tocar, um misto de três notas baixas, mas que soava muito como um aviso... Grimory recuou uma pata e sentou-se, obediente, enquanto um vulto surgia por detrás dele.
–Não o levem a mal... ele está apenas... preso por muito, muito tempo. Essa reação é praticamente esperada.
A voz chegou até eles, e ela parecia estranhamente harmoniosa... parecia que poderia induzi-los ao sono apenas ao falar, mas de alguma forma, o ser que falava não utilizou-se desse poder.
–Ahh, claro... perfeitamente normal. Deve ser porque ele é selvagem, ou melhor, você o atiçou contra nós! Hiei protestou, segurando com um pouco mais de força que o necessário seu bastão... ele não parecia nada relaxado, e isso era estranho, porque apesar de reclamar e resmungar, ele quase nunca parecia de fato assustado... até agora.
–Eu? Atiçá-lo? Não, muito pelo contrário... ela chegou mais para perto, tornando-se visível, e deixou o véu que usava escorregar pelos cabelos. Cassandra tinha olhos tão escuros que quase chegavam ao preto, e um cabelo negro tão comprido que por pouco não tocava o chão... a pele era extremamente pálida, e as orelhas eram pontudas, o que fazia a mesma lembrar uma elfa. Ela usava um vestido diáfano de cor igualmente escura-talvez roxa- e como já foi dito carregava um véu que cobria boa parte de seu rosto... inúmeras manchas que lembravam tatuagens tribais passavam por seus braços e pernas, assim como no rosto. Ela definitivamente não parecia ser algo desse mundo... logo continuou, a voz fina começando a fazer pequenos ecos quando batia nas árvores. Eu o estava mantendo adormecido, especialmente para esse momento... Sou Cassandra, a Mestra do Som... creio que já ouvi o bastante sobre todos vocês para conhece-los bem...
–Cassandra... sabemos bem quem é e o que faz aqui... não estou a fim de debater sobre seus atos claramente ingênuos, mas ainda tem a chance de fazer a coisa certa e entregar-nos o Olho... Era Crós que falava desta vez, e Kit sabia que ele estava realmente muito abalado com tal situação.
–Não poderei fazer isso, meu caríssimo amigo... essa é chave para a vitória de Haradja... ela continuou naquele tom monótono, as palavras saindo quase como uma cantiga de ninar... Kit sentiu os músculos da face se contraírem num bocejo e se beliscou para manter-se alerta.
–E você sendo o que é ainda teve a ousadia de se aliar a ela?? O feiticeiro protestou. Você sabe o que ela fez com Aaron e os outros... eles eram meus amigos... NOSSOS amigos...
–Sim... foram... agora estão em paz... não deveria preocupar-se com eles. ela voltou a descer o véu sobre a face, girando nos calcanhares. Já achei o que eu vim buscar. e com um movimento lento, ela ergueu a mão direita, um pouco escondida atrás do corpo, e mostrou o que parecia ser uma pequena pirâmide dourada, com um olho imenso entalhado em relevo em cada um dos seus quatro lados. Crós sentiu seu sangue gelar, quase que paralelamente ao momento que ele deveria ter sido bombeado com mais força. Porque aquilo era uma clara traição. Cassandra era uma das Divindades Menores responsáveis por manter o equilíbrio do Reino. Ela estar do lado de Haradja não era só um fato revoltante e desagradável, como também significava que as coisas estavam cada vez piores para o lado deles. Ele simplesmente não tinha palavras para descrever o que estava pensando... ele não sabia nem como se sentir com relação àquilo.
Ela ainda manteve o Olho de Osíris por algum tempo a vista, antes de voltar a esconder a mão que o segurava nas vestes. Ela lançou um ultimo olhar para trás.
–Por que, Cassie... e antes que ele pudesse sequer terminar, um pensamento veio a sua mente. Foi você? Foi você quem cortou as linhas de comunicação?
–Sim... fui eu... ela estreitou os olhos, a voz mudando para um tom mais baixo, embora não deixasse de parecer tranquila. Não espero que compreenda meus motivos. É tudo uma questão de princípios...
–Por Ajax, que resposta é essa?? Que princípios aquela assassina pode ter?
Cassandra manteve-se em silêncio por alguns segundos, antes de continuar. Como eu disse... nunca poderás entender... ela virou completamente o corpo e pôs-se a andar em direção oposta, voltando a desaparecer nas sombras. Adeus, Crós... adeus, crianças. Precisam morrer...
Uma sinfonia de três notas se fez tocar novamente, mas desta vez era realmente agressiva... Grimory se ergueu novamente e atacou, forçando-os a dispersar.
–Se ela ia condenar a gente, porque se deu ao trabalho de parar? Kit perguntou, saltando e usando um galho de árvore para manter-se em um local alto.
–Ela queria dizer adeus pra mim... Crós respondeu numa voz tão sumida que nenhum dos outros conseguiu ouvir... agora estava sobre outra árvore, só tendo tempo de lançar um ultimo olhar na direção que a Deusa havia partido, antes de ter que mudar de árvore pois o grifo já investia contra a que ele estava, visando derrubá-lo.
–De qualquer forma temos que destruí-lo rápido... ela está com o Olho...
Ele ponderou rapidamente sobre as palavras da aprendiz e tomou sua decisão... com seu sexto sentido ligado, passou os dedos pelas costas de Kira, que estava mais perto, e logo fez com que o corpo dos dois começasse a desaparecer. Kit... vou deixar isso por sua conta...
A gatinha abaixou os olhos para fita-los e logo os arregalou. Teletransporte instantâneo... era isso que ele estava fazendo. Apesar da probabilidade dele errar ser menor deste jeito, ela ainda não confiava que iam aparecer num local que fosse facilitar a captura de Cassandra. E-espere!
Mas já era tarde... segundos mais tarde Salem e Kira haviam desaparecido completamente, só deixando uma nuvem de fumaça negra para trás... ela não pôde nem se dar ao luxo de ficar chocada quando uma garra afiada atingiu seu rosto e a fez cair da árvore, rolando no chão...
   
Cloe havia desistido de contatar a equipe de campo... afinal ninguém fizera questão de lhe avisar que aquele lugar o qual chamavam de Ilha do Silêncio era uma zona morta, ou seja, não havia jeito de fazer as ondas cortarem a distância para chegar lá, porque não haveria sinal algum... Frustrada, fechou o notebook que estava usando em detrimento do computador central, com um pouco mais de violência que o necessário, e deixou a cabeça encostar no braço do sofá... percebeu com o canto dos olhos Mitaray, igualmente chateado, tentando desfazer-se do tédio e de sua crescente ansiedade com um livro realmente grosso. Isso não parecia adiantar muito. Com o canto do olho ela o viu cruzar as pernas, depois descruzar, mudar de posição, fechar o livro e finalmente fitar a janela.
–Vai acabar surtando assim...
Ele girou sua cabeça para fita-la e a inclinou. Ficar de repouso definitivamente não combina comigo...
Cloe precisou morder a bochecha por dentro para não rir dele. Você não está apenas cismado por ter sido deixado para trás?
O rapaz ponderou por um tempo, antes que conseguisse uma boa resposta: -Não fui deixado...
–Não, de fato... mas se sente assim, não é?
A resposta dele foi um típico franzir de sobrancelhas e um sutil dar de ombros. Um pouco...
–Entendo. ela realmente não sabia como lidar com aquilo... geralmente era a própria que sentia-se de tal forma... deixada para trás, tendo que fazer a parte fácil enquanto os outros se esforçavam para permanecer vivos... colocou uma mecha atrás da orelha, procurando por qualquer palavra de viesse em sua mente. Sei como se sente... bom...
Voltou a morder a parte interna da bochecha, e observou-o. Já que não temos como ajudar... podemos ao menos distrair nossas mentes com algo diferente... ou vamos realmente acabar loucos...
Mitaray levantou-se e ergueu uma sobrancelha...ela não deveria se referir aos treinamentos, pois todos tinham horários marcados por dia, e era o tipo de coisa frequente o bastante para fazer os nervos ficarem ainda mais perturbados. Viu ela abrir um sorriso.
–Hummm... já tentou cozinhar alguma vez?
O olhar que recebeu foi um misto de confusão e choque. Pensei que a especialista em cozinha fosse a Sasha...
–E é... mal foi dito seu nome, a jovem entrou na sala bocejando e com fones de ouvido nas orelhas, já que Iris a ameaçara de morte da ultima vez que ela ousara ligar o radio em alto som. Ela parecia alheia a tudo, antes que finalmente repara-se nos dois, que a olhavam atentamente.
–Er... eu fiz algo errado de novo?
–Não, não, que isso... venha aqui, vamos conversar um pouquinho...
Sasha inclinou a cabeça, realmente perdida, e se aproximou... eles provavelmente queriam algo dela... só não esperava que fosse um pedido tão estranho...
   
Lyra espichou seu pescoço além da torre de vigia e notou que finalmente o objetivo tinha sido alcançado... ela fez o corpo cair para trás, e suas asas se desfraldaram para que ela pudesse chegar ao convés em segurança. Seus pés tocaram o chão e ela correu para a cabine de comando.
–Inimigos a frente... quais são as ordens, Capitães?
Ela viu dois homens virarem-se imediatamente em sua direção, e um deles levantar a voz, ajeitando os óculos escuros em seu rosto fino. Preparem os canhões...
O outro, um rapaz que de fisionomia era praticamente idêntico ao primeiro, mas cujos cabelos e olhos contrastavam, ergueu uma sobrancelha e logo sorriu. Vamos esburacar aquela banheira que os demônios ousam chamar de navio...
O resto da tripulação se apressou em cumprir a ordem... o jovem de óculos escuros foi o primeiro a descer ao porão, ficando atrás de um dos canhões e mirando no navio. Ele fez a voz reverberar pela embarcação. Fogo! e atirou sem dó...
Os demônios do outro lado, pegos de surpresa, demoraram demais para virar o navio e contra-atacar. Tiros de canhão vieram em resposta, mas muito poucos atingiram o alvo. E aqueles que chegaram a acertar o Diamante Negro não causaram tanto estrago quanto deveriam... a embarcação inimiga já começava a virar novamente quando uma comoção se fez na praia, forçando-o a ficar onde estava. Um grupo se dirigia para lá, mas ao notar os imprevistos, a figura que os liderava estancou... ao longe podia ser vista claramente, uma mulher de roupas arroxeadas e cabelos escuros que tocavam o chão... ela lançou um olhar neutro para o Diamante Negro, e um som pareceu surgir do nada, vindo em direção a eles... os mais rápidos levaram as mãos aos ouvidos.
–Ninguém lembrou de avisar que estávamos contra a Deusa do Som... protestou Lyra, e os Capitães só conseguiram entender o que ela dizia por leitura labial.
–Vamos ter uma conversinha com Nicolas quando voltarmos...
Eles conseguiram ver quando alguns desprevenidos atiraram-se ao mar... a melodia era quase uma canção suicida... Os três continuaram a pressionar os ouvidos e se dirigiram para a cabine de comando novamente.
–Devemos ir?
–O acordo era que deveríamos atrasá-los... aquele navio não vai mais a lugar nenhum...
–Vamos manter a posição por enquanto, só para garantir...
–Mas ela está lançando feitiços, nossa tripulação vai acabar destruída...
Lyra pensou por alguns minutos, ainda com as mãos nas orelhas, e desceu de maneira rápida novamente, logo voltando com vários chumaços de algodão. Coloquem nos ouvidos... vamos bombardeá-los até quando der, e depois vamos embora...
Ela se afastou para levar os chumaços para os outros que ainda estavam sãos lá dentro, enquanto as ordens de fogo! eram levadas de boca em boca, através da música... uma vez mais, o navio inimigo foi alvo de tiros, e uma vez mais houve uma retribuição... agora os demônios pareciam muito mais otimistas em rechaça-los, embora sua mira não fosse tão boa... eles ainda estavam nesse pé, aqueles desembarcados presos na praia, a música ameaçando atravessar o algodão, tornando-se cada vez mais alta... e desta vez ela parecia que iria chegar aos ouvidos de todos, com proteção ou não, quando uma explosão tomou conta da praia... ou parecia uma explosão, porque logo uma coluna de fumaça negra subiu aos céus, e havia duas personagens novas na trama...
   
Kira sentiu o corpo bater com força contra o chão, e logo sentiu a movimentação de Crós ao seu lado... ele já estava frente a frente com a Deusa, e quase tinha a acertado na queda, mas desta vez ele não se deu o trabalho de desculpar-se. Partiu pra cima dela, e ambos rolaram pelas areias, enquanto a jovem loira via a cena chocada. Ela girou o corpo ao sentir a sensação de perigo crescer, e puxou a espada. Estava no centro de um circulo de demônios, uma vez mais. Eles não pareciam preocupados que sua mestra perde-se, ou simplesmente não acreditavam em tal coisa, pois estavam concentrados nela. O circulo se fechou a seu redor e ela precisou cortar a esquerda e a direita para conseguir um pouco de folga... quando pensava que os golpes parariam de chegar, um outro demônio entrava no lugar do ultimo... depois de alguns minutos ela estava visivelmente cansada, mas não parou de desferir os golpes, alguns em cima, outros em baixo... sem poder parar para observar o parceiro, ela não tinha ideia do que estava ocorrendo além da sua área de luta.
Crós ainda mantinha Cassandra abaixo de si, segurando seus pulsos com as mãos e mantendo-a presa ao chão... ela definitivamente não parecia nem um pouco preocupada com isso. Seu olhar continuava vazio, o rosto inabalável por trás do véu, parcialmente fora do lugar.
–Não sei o que pretendes... deverias deixar-se morrer.
–Não irei... e você me dará o que eu quero...
–Isso dependerá do que quer... embora eu não ache que conseguirá nem uma coisa nem outra...
Ele fechou a expressão, pressionando ainda mais ela debaixo de seu corpo. Cassie... ainda há tempo...
–Eu lhe disse... é tarde demais... sua mão ainda segurava com força o artefato, como uma criança que espera um garoto mais velho tirar seu brinquedo favorito de si... Deveria ter ficado onde estava... não há nada para ti aqui...
Ele mordeu o lábio inferior. Sua mão ergueu-se, tateando o braço alvo até onde os dedos dela se fechavam. Eu sinto muito... mas não deixarei que vá embora levando o artefato.
Ela abriu um arremedo de sorriso, o que não era algo muito bom. Eu sinto muito, mas não deixarei que tire-o de mim... sua voz foi mudando de entonação, e Crós viu-se mudando de posição contra a própria vontade, erguendo o corpo, embora ainda conseguisse manter as mãos nos pulsos dela. Eu lhe disse adeus... não me force a ter que mata-lo com minhas próprias mãos...
–Eu não estou preparado para tal coisa... ele forçou sua mente a trabalhar, dizendo palavras mentalmente e fazendo com que a própria areia se fechasse ao redor dela... em contrapartida, Cassandra começava a cantar novamente, e obrigava o cérebro dele a recuar os feitiços. Estavam em um impasse, e o primeiro que se desconcentrasse haveria de perder... Mas Cassandra ainda tinha uma pequena carta na manga... uma carta que poderia fazê-la pensar duas vezes, então era melhor jogá-la antes que ficasse tentada. Em meio a uma de suas canções, ela chegou um pouco mais perto de e tocou seus lábios nos dele por um curto período de tempo... isso foi o suficiente para quebrar a concentração de Crós. Ele podia negar até o fim dos tempos, mas sempre alimentara uma pequena paixão ilógica por ela. Até ter seu coração partido em mil pedaços, quando o artefato que tanto quisera pegar foi batido com toda a força em sua cabeça, logo depois de sentir os lábios dela. Ele se desestabilizou, emocionalmente e fisicamente, chegando para trás, e sentiu os braços sedosos dela passarem por seu pescoço.
–Sabes... se nossa situação fosse diferente, eu não precisaria chegar a este extremo... os braços se fecharam em um abraço quase mortal. Eu realmente não queria que as coisas terminassem assim... mas não me deu escolha... ela deixou entrever uma corda fina, que unia suas duas mãos, e fechou-a ao redor do pescoço dele... suas palavras eram hipnotizantes... ele não conseguia se mover... estava prestes a ter a cabeça cortada pela linha fina e absolutamente afiada. Acabou, Crós... é seu fim...
Ela pressionou com um pouco mais de força, levando sua boca para o ouvido dele. E por um instante se esqueceu que feiticeiros tem corpos reais tanto quanto magia a seu favor. O feiticeiro moveu-se uma ultima vez, com o pouco de controle que ainda conseguia juntar, para jogar a cabeça para trás e acertar o rosto dela, mais precisamente seu nariz. O golpe foi suficiente para ela se desconcentrar momentaneamente, e meio tarde reparou na lâmina que vinha em sua direção... ela atravessou o braço dela, fazendo-a cambalear para trás, um caminho de sangue escorrendo até os dedos e tingindo a areia de vermelho. Desviou sua atenção para ver de onde viera a espada, que retirou com um movimento lento de sua carne e deixou cair ao chão. Kira aparentemente havia mirado muito bem... ela vinha em sua direção em alta velocidade, depois de desvencilhar-se da pilha de demônios que ainda estavam em seus calcanhares... na realidade, ela parecia mais estar...
Voando...
Mais uma vez, Cassandra sentiu o corpo ser jogado no chão e rolar, desta vez, porém, com uma fada em cima de si... bom, ela não se lembrava de nenhuma fada quando soltara Grimory, só de uma garota de olhos verdes e cabelos aloirados. Que agora estava em cima dela... e tinha grandes asas que desabrochavam de suas costas... e depois disso tudo, em vez de pensar que ela estava no controle por enquanto, ela só fixou seus olhos escuros além de seu corpo, para onde Crós estava... segurando o artefato que havia deixado cair minutos antes. Por um momento, a máscara de indiferença caiu e ela aspirou o ar com um pouco mais de força que o necessário. Não...
Não havia o que fazer a partir dali... o navio estava semi-destruído... e pelos seus cálculos, a Ilha do Silêncio estava para mudar de posição a qualquer momento. Voltou a assumir o controle de si mesma, fechando os olhos... ela já sabia o próximo movimento do homem antes mesmo que este o fizesse... seu corpo começou a se desmaterializar, algum lugar qualquer de Diamante chamando-o. Ela havia cometido um deslize, e com ele, perdera completamente a noção do jogo. Porém... aquilo era apenas uma batalha... a guerra estava só começando.
Kira se aprontava para pegar a espada novamente, com a rival presa por seu peso, quando ela começou a sumir... ela pensou em gritar para Crós parar o encantamento, mas já sabia que ele não o faria. Quando o corpo de Cassandra desapareceu completamente, deixando apenas fumaça em seu lugar, ela deixou os joelhos no chão e voltou sua atenção para a espada. Os demônios que restaram tinham parado a perseguição, mas agora já começavam a mover-se novamente, antes do feiticeiro lançar um olhar para o grupo, um olhar vazio, que durou tempo suficiente para que eles se desintegrassem automaticamente, e estes não haveriam de aparecer em um lugar seguro mais tarde...
Ele guardou o Olho em suas vestes e tentou esconder seu olhar de desamparo quando voltou a cruzar seus olhos com a jovem loira. Você tem asas...
–É... eu sei... ela coçou a bochecha. Sabe... pensei que você fosse morrer, e apesar de não nos darmos exatamente muito bem, eu imaginei que... mordeu o lábio inferior por alguns segundos. Não seria a mesma coisa sem você... e então aconteceu...
Ela sabia que isso não era completamente verdade... ela sentia puxões estranhos no pescoço toda vez que olhava para o céu... sentia opressão ao pisar a areia... e por algum motivo que ainda não entendia o mar chamava muito a sua atenção... e momentos antes aquele puxão começou a ficar tão insuportável a ponto de fazê-la parar de lutar e ficar exposta de todas as direções possíveis... seria assim, se ela não houvesse se transformado. Agora um cordão que lembrava vagamente uma borboleta, circundada por alguma coisa seria um peixe?- estava pendurado em seu pescoço, e as asas enormes, de uma cor esverdeada e translúcida, saiam de suas costas. Preferiu não pensar muito mais sobre isso.
–Temos que encontrar os outros...
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Ken desviou de outra patada que vinha em sua direção, puxando Kit para o lado para impedi-la de ser acertada outra vez... ela não parecia muito bem... a parte esquerda de seu rosto estava dilacerada, e ela quase perdera um olho no processo. O sangue a impedia de enxergar direito de toda forma, e sua perspectiva estava momentaneamente inutilizada. Ela já começara a achar que realmente ia acabar morta antes do tempo. Hiei agora estava distraindo o grifo, fazendo-o ir de um lado a outro, longe dos outros dois... o rapaz não tinha recebido mais que alguns arranhões, mas seu progresso era nulo... o bastão para variar não causava ferimentos tão extensos a ponto de matar... se bem que ele deixara as asas do monstro feridas o suficiente para impedi-lo de alçar voo, o que já era uma vantagem.
–Realmente, temos que matar essa coisa logo...
Kit apenas murmurou algo em concordância, na tentativa de conter a dor flagrante em sua voz... agora tinha certeza que ia mata-lo... ela não gostava de matar nada, fosse o que fosse, mas desta vez era diferente... ele ia devorá-los um a um como fizera com os demônios... ou, com alguma sorte, alguém conseguisse sair vivo para contar a história. Ela olhou através da floresta, com certa dificuldade... podia jurar que havia um abismo que chegava à praia. Deixem ele comigo...
–Mas você não está enxergando direito... ela ouviu o namorado protestar.
–Dá para ser feito... só preciso que ataquem a retaguarda dele...
Ele hesitou em soltá-la, o que a fez o empurrar. Preciso fazer isso... confie em mim. conseguiu se soltar dele, calculando mentalmente a distância e logo voltando-se para Grimory... usando o feitiço de materialização, ela criou o que parecia ser um arco e flecha, que logo armou, atirando com precisão no topo da cabeça da criatura... ela urrou, não tão machucada quanto deveria, mas deu um salto para trás de si e encarou a nova vitima, agora começando uma carreira desenfreada em seu encalço. Kit teve tempo de girar nos calcanhares e disparar em direção ao abismo... contou novamente. A próxima flecha tinha que ser atirada de uma distância menor e deveria ser mais pesada e afiada que a ultima... ela fez esses cálculos em segundos, o corpo ágil atravessando a mata com facilidade, embora a sua visão prejudicada fizesse com que Kit trombasse com um tronco ou um cipó vez ou outra...
Ken girou a espada, começando a correr atrás... ela deveria estar querendo um pouco demais se esperava que ele conseguisse um bom golpe com seu alvo correndo, mas preferiu não discutir... saltou através da calda que chicoteou, pronta para mordê-lo, e desceu a espada sobre ela, separando-a do resto do corpo. O grifo deu mais um urro de dor... desta vez fora um ferimento efetivo e parou, para ser imprensado com o bastão de Hiei do lado direito do corpo, onde ficavam as asas, ambas inúteis no momento. Kit teve de fazer mais uma flecha assoviar sobre ele para que continuasse a segui-la. Ela viu o chão se abrir a sua frente e saltou no ar, o que parecia mais como um movimento para a morte... deixou o corpo girar nos poucos segundos que despencava, mirando o arco outra vez contra Grimory... concentrou rapidamente toda a sua energia no golpe, e soltou a flecha, mirando bem no olho esquerdo... se pudesse teria claramente ouvido o som seco da flecha encontrando o alvo e o rasgando, atravessando até chegar ao cérebro. Por um instante, ela soube que tinha calculado mal... não havia mar embaixo de si... havia areia... e um navio mais ao longe... e uma figura olhando para ela em choque. O vento deixou-a parcialmente surda ao passar silvando por suas orelhas de gato, e antes que pudesse se chocar contra o chão alguma força a segurou... ela piscou vendo o corpo da vitima que abatera despencar ao lado dela enquanto ainda estava suspensa por alguém...
–Kira...?
–Sinceramente... pare de fazer essas coisas idiotas ou você vai mesmo acabar morrendo!
A garota teve que deixar o ar sair dos pulmões num suspiro de alivio... deixaria para perguntar o que estava acontecendo depois... por enquanto ela só queria tocar uma vez mais seus pés no chão... e ter certeza que ainda estava viva.
É... precisa mesmo parar de fazer esse tipo de loucura.
Ouviu a voz em sua cabeça depois de muito tempo, e por um motivo que não sabia explicar, teve vontade de sorrir.
Se eu parasse não seria eu....
De fato... não seria ninguém....


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