2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 79
O sentido da morte




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/279654/chapter/79

No capítulo anterior, D. Morte apareceu para levar Fabinho, mas Carmem conseguiu que ela esperasse pelo menos passar aquela noite.

Passava das onze da noite, mas a maior parte da turma continuava acordada por causa do primo da Carmem. Todos ali esperavam péssimas notícias a qualquer momento.  

Na garagem do abrigo, onde Licurgo guardava seu carro, Franja mexia nele tirando a bateria para usar em seu comunicador. Quando terminou, Mônica o seguiu até seu quarto levando a bateria debaixo do braço.

- Pra que mesmo você quer isso?
- Hoje a tarde eu descobri que a nave Hoshi chegou a Terra.
- Tá falando do Astronauta e da Xabéu?
- E do Zé Luis também. Parece que eles estão tentando nos localizar. Se eu conseguir colocar o comunicador para funcionar, eles poderão vir até onde estamos.
- Até que seria bom mesmo, mas por que você tá com tanta pressa?
- Porque eles têm médicos na nave, remédios e aparelhos.

A moça entendeu na hora.

- Ah, então eles vão poder ajudar o Fabinho!
- Exato! Carmem disse que D. Morte vai esperar até o nascer do sol, então precisamos correr! Se eles chegarem aqui ainda essa noite, o Fabinho terá uma chance!

Ela saiu em disparada até o quarto dele falando.

- Então vamos logo, anda! Tá esperando o quê? Você precisa de mais alguma coisa? Quer que o Cebola te ajude?
- Ei, calma! – ele falou tentando frear o ânimo dela. – tudo o que eu preciso é de algum tempo pra trabalhar. E sem interrupções.
- Então deixa comigo! Se alguém vier te interromper, eu dou uma bifa!

__________________________________________________________

Carmem colocou as folhas de eucalipto dentro da vasilha com água fervente e deixou perto da cama para que Fabinho pudesse inalar seus vapores. Ela também lhe deu um chá de alecrim. Segundo algumas pessoas do abrigo, eram remédios caseiros para combater a asma. Como não tinha nada a perder, ela resolveu tentar para prolongar ao máximo a vida do garoto.

- Acha mesmo que isso vai funcionar?
- Não custa tentar, né?
- Chá de canela costuma funcionar também.
- É? Você conhece esses chás?
- Vejo humanos usarem isso há milhares de anos. Uns funcionam, outros não.
- Então eu vou ali ver se alguém tem canela.

Carmem saiu do quarto de novo, deixando D. Morte sozinha com o garoto. Como estava muito entediada, ela começou a olhar em volta a procura de algo para lhe distrair e um caderno em cima de um beliche chamou sua atenção. O caderno estava parcialmente escondido em baixo do colchão, mas dava para ver uma parte da capa.

“Pirralha mais burra, nem sabe esconder as coisas direito! Hum... deixa eu ver isso.”

Era um dos cadernos que ela tinha deixado para Carmem escrever sobre o que tinha visto nas arcas. Ao abri-lo, D. Morte ficou surpresa ao ver que muita coisa ali falava sobre ela mesma.

“Ora, ora... vamos ver o que essa pirralha anda escrevendo a meu respeito...” ela começou a ler rapidamente e logo ficou surpresa com o que tinha escrito ali. Algumas coisas até que eram interessantes, enquanto outras eram pura besteira. O que interessava para aquela garota saber se ela comia ou se ia ao banheiro? E por que ela queria saber se ela tinha cabelos ou se era careca?

“Ai, aposto que ela tem um cabelo horroroso, por isso morre de inveja do meu!” Carmem escreveu em determinado ponto, deixando a morte irritada. Em outra página, estava escrito.

“Por que ninguém fala o que tem depois da morte? Talvez se alguém falasse, as pessoas não teriam tanto medo. Eu já fui na igreja algumas vezes e eles não falam nada. O padre fica dando sermão e falando umas coisas que eu nem entendo, se bem que eu não presto atenção...”

“Seria tão bom se esse mistério fosse desvendado aos humanos...” a morte pensou. “ia facilitar muito meu trabalho.” Ela continuou lendo.

“O que aconteceria com as pessoas se elas não morressem? Ia todo mundo viver pra sempre? Até que podia ser legal. Aí eu ia ficar linda e jovem pra sempre!” A morte virou os olhos. Aquela garota não tinha mais conserto. “Mas acho que só valeria apena se fosse todo mundo saudável. Se for pra viver pra sempre estando doente eu não quero! Já pensou se uma pessoa ficasse doente a vida inteira sem sarar e sem morrer, só vivendo doente? Ficar agonizando numa cama de hospital pra sempre? Ai, credo! Deve ser por isso que a morte existe, senão ia ser muito ruim viver desse jeito!”

“Ou então se a pessoa tivesse uma vida ruim demais, sem poder usar roupas lindas e sapatos de grife! Que horror! E aquele pessoal que passa fome lá na África? Se eles vivessem pra sempre, iam sofrer pra sempre também!”

Ela parou de ler e ficou refletindo sobre o que Carmem tinha escrito, mal acreditando que aquela pirralha tinha pensado naquilo sozinha.

“Seria esse o sentido da morte então? É por isso que as pessoas morrem? Pra não ficar sofrendo a vida inteira? É... só que tem gente que não sofre e é feliz... aí não seria melhor não morrer nunca? Ah, mas todo mundo adoece um dia, fica velho... se é pra viver assim, não dá não! viver pra semrpe só se todo mundo ficasse jovem e saudável, senão não vale a pena. Então a morte não é tão ruim assim. Pra muita gente, pode até ser uma coisa boa.”

Aquilo era realmente estranho. Se Carmem tinha mesmo aquela visão da morte, então por que ela lutava tanto para salvar seu primo? Não era melhor deixá-lo morrer de uma vez para acabar com o sofrimento dele?

Tudo na vida era passageiro e disso ela sabia muito bem. Se apegar as pessoas era um erro porque elas sempre iam embora e no fim ela ficava sozinha. Foi assim com os seus amigos do cemitério. Durante muito tempo ela viveu com eles como se fossem uma família, cuidou deles, os ajudou em vários problemas e um dia teve que vê-los partirem com um sorriso no rosto. Agora eles tinham começado uma nova etapa e precisavam se preparar para seguirem em frente. Não dava mais para ter as coisas como eram antigamente.

Ao perceber que Carmem estava voltando, ela colocou o caderno debaixo do travesseiro da cama onde ela estava sentada e continuou observando Fabinho, que respirava com muita dificuldade.

- Como ele tá? – ela perguntou entrando no quarto com um chá de canela.
- Na mesma.
- Eu trouxe o chá pra ele, ó! Custei a arrumar um punhado de canela. Tá faltando tudo aqui.

Enquanto observava Carmem dando chá ao garoto, a morte não resistiu e quis saber.

- Você não parece ter medo da morte e até entende muitas coisas. Se é assim, por que luta tanto pela vida desse garoto? Eu posso te garantir que ele irá para um bom lugar onde será bem cuidado.

Quando Fabinho terminou o chá e voltou a dormir, Carmem respondeu.

- Se a vida não fosse importante, então ninguém tava vivo. Nascer pra quê? Não seria melhor ficar todo mundo do lado de lá?

Pela primeira vez a morte não soube o que responder.

- As pessoas nascem, crescem e tem uma vida aqui, então alguma importância deve ter. Eu não sei pra que tudo isso, mas não acho que deve ser a toa.
- Haverá outras vidas.
- Só porque tem muitas vidas não é pra gente ficar desperdiçando que nem eu fazia com o dinheiro que meus pais me davam. Nascer e crescer deve dar trabalho, então pra que ficar desperdiçando? O Fabinho já tá aqui, então é bobagem deixar ele morrer só pra ter o trabalho de nascer de novo em outra vida.

D. Morte ficou em silêncio pensando no que Carmem tinha falado. O raciocínio daquela moça era simplista e algumas observações eram um tanto infantis, mas ela não deixava de ter razão.  

- Olha, se você diz que ele vai ser bem cuidado lá no outro lado, eu acredito. Ainda assim vou fazer o que eu puder pra ele não morrer.

__________________________________________________________

- Chave de fenda... alicate... agora preciso daqueles fios ali...

Franja ia trabalhando no comunicador sem descanso, com a esperança de conseguir entrar em contato com a nave hoshi a tempo. Cebola estava ao seu lado lhe ajudando como podia e de vez em quando Marina e Mônica apareciam trazendo água ou algo para eles comerem.

- Acho que agora já deu. Vou tentar ligar.

O aparelho foi ligado e os dois cruzaram os dedos torcendo para que daquela vez os reparos funcionassem. Eles ouviram muito barulho de estática e alguns estalos.

- Será que agora vai? – Cebola perguntou ansioso.
- Tem que dar certo! Pelo menos uma vez tem que dar certo!

Quando pareceu que o comunicador ia funcionar, houve um pequeno curto circuito e Franja teve que desligar tudo às pressas para que não danificasse o resto.

- Eu não acredito, que porcaria!
- O que houve?
- O resistor não agüentou a corrente elétrica. Droga, eu só tenho esse tipo de resistor aqui, não tem nada melhor! Um disjuntor até que ajudaria!

Cebola bocejou e esfregou os olhos tentando espantar o sono. Passava das duas da manhã e eles não conseguiam avançar em nada.

- A que horas o sol nasce? – Cebola perguntou.
- Aqui ele nasce por volta das seis e meia, mas não é exato.
- Então só temos umas quatro horas?
- Mais ou menos. Temos que correr!

__________________________________________________________

Vencida pelo sono, Carmen acabou se acomodando junto do seu primo e adormecendo. D. Morte continuou acordada e lendo o caderno com as anotações da moça. Era estranho ver como ela, ainda que se expressando de forma infantil e simplista, conseguia entender assuntos tão complexos sobre a vida e a morte. Que garota mais estranha aquela...

Às vezes era fútil e vaidosa, outras vezes tinha bom coração. Ela tinha momentos de lucidez e alienação, inteligência e burrice. Era capaz de entender assuntos complexos e tropeçava em outros mais simples.

Ela releu o trecho onde Carmem tinha escrito sobre o sentido da morte. Era bem estranho ela falar sobre aquilo enquanto todo mundo procurava o sentido da vida. Ainda assim, D. Morte não conseguia entender por que o destino a colocou junto com aquela garota. Por que Serafim fazia tanto mistério? Várias possibilidades passaram em sua cabeça e nenhuma fez sentido.

O som de alguém batendo na porta chamou sua atenção. Era a primeira vez que alguém batia na porta porque ninguém tinha coragem de entrar naquele quarto com ela lá dentro. Como não queria que Carmem acordasse e começasse a falar sem parar no seu ouvido, D. Morte resolveu atender e ficou surpresa ao se deparar com Licurgo. Ele também ficou surpreso ao se dar de cara com a morte e ficou meio sem jeito.

- Eu... er... vim trazer água e comida pra Carmem.
- Deixe aí. Ela come quando acordar.

O louco viu a moça dormindo e ficou surpreso ao ver como ela ficava tão a vontade estando no mesmo quarto que a morte.

- O garoto ainda está vivo? – ele perguntou meio que sem saber o que dizer.
- Claro que está! Eu prometi esperar até o nascer do sol e pretendo cumprir minha promessa.
- Eu ainda não entendo por que você fez essa... concessão pra ela.

D. Morte não respondeu de pronto. Era difícil dizer que ela só fez aquilo porque Carmem tinha pedido, nada mais. Não havia uma razão especial.

- Quer dizer, eu achei que você não poupasse ninguém e as meninas falam que você salvou Carmem e Cascuda de caírem no abismo!
- Eu apenas salvei a pirralha. A outra se salvou por pura sorte.
- E por que você se preocupou em salvar a Carmem? Pelo que eu sei, você não é anjo da guarda.
- Tenho minhas razoes que não lhe dizem respeito. – ela retrucou com certa rispidez virando o rosto para o outro lado. Licurgo levantou uma sobrancelha e perguntou antes de sair do quarto.
- Essa garota acha que você tem sentimentos. Como ela vai ficar quando souber que você não sente nada?

Quando ele saiu e a porta foi fechada, ela murmurou para si mesma.

- E quem disse que eu não tenho sentimentos? Idiota!

Ela voltou a se sentar e ficou olhando Carmem. “Essa garota acha que você tem sentimentos” Licurgo tinha dito. Não, ela não achava. Ela sabia. De alguma forma Carmem sabia que D. Morte tinha sentimentos e não a via como uma pessoa má. Ela sequer a via como a morte. Na cabeça daquela garota, ela era apenas uma pessoa que desempenhava um trabalho. Era muito raro alguém lhe entender tanto assim.

__________________________________________________________

Zé Luis tentava estabelecer contato com o Franja. Ele tinha percebido que o jovem tentava se comunicar com a nave Hoshi, mas estava com dificuldades. Talvez estivesse com problemas nos equipamentos por causa de toda a devastação pela qual a Terra tinha passado.

- Algum progresso, alferes?
- Ainda não, senhor. A comunicação é estabelecida por um tempo curto demais para que os equipamentos possam rastrear sua fonte.

Astronauta deu uma olhada no relógio do monitor. Eram quatro da manhã e mesmo assim eles se esforçavam para encontrar Franja e o resto da turma. Apesar de ter perdido parte do território, o Brasil ainda continuava sendo um país muito grande e eles não sabiam por onde começar a procurar.

Além do mais, eles nem sabiam se o Franja estava vivo. Não havia garantias de que era ele quem estava tentando se comunicar com a nave. Podia ser qualquer pessoa. Mesmo assim ele estava disposto a rastrear aquele sinal para tirar as dúvidas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "2012" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.