São Paulo, Brasil. Dias atuais.

Halael, outrora chamado de Primeiro General, estava em pé no alto de um arranha céu. Pele clara, mas bronzeada pelo sol tropical do Brasil. Corpo magro, mas com músculos bem definidos. Vestido com roupas típicas de um executivo, ele usava terno preto, óculos escuros, barba rala. Os olhos cinzentos escondiam mistérios decifrados há milênios sobre as magias, sobre os céus e a terra, sobre criaturas abissais e celestiais. Trazia na mente toda a história da humanidade, das torres de Enoque à majestade de Gomorra, das magníficas construções em Babel ao Império Romano, dos castelos da Inglaterra Medieval à inigualável Nova York.

Observava o pôr do sol, este sereno e inabalável. Até que um relâmpago distante ilumina o horizonte, seguindo por um trovão que corta o silencio. Um vento sopra com mais força e balança seus loiros cabelos. Começa a chover.

Halael sente a presença de um infernal. Um não, uma. Reconheceria sua aura em qualquer lugar. Olha para trás já esperando quem estaria ali, e vê uma bela mulher se aproximando. A pele tão branca quanto o espectro da morte. Os longos cabelos negros e lisos caídos pelas costas. Usava uma calça jeans justíssima e uma camiseta cor-de-rosa de alça. Calçava uma sandália bico fino e salto alto.

- Usando roupas humanas... – fala Halael – Rainha dos Mortos.

- Bastante confortáveis por sinal. – responde sorridente Lilith, a esposa de Lúcifer, que já fora também esposa de Adão, de Caim e amante por uma única noite do arcanjo Gabriel – Mas vim aqui para falar de você, anjo pecador.

- Não tem coragem de vir sozinha? – pergunta, com deboche Halael, ao sentir a presença de mais um demônio da alta sociedade infernal.

- Há! Meu adorável Aaron... Meu filho, duque das trevas. Ordens de meu senhor, só por garantia.

Aaron estava escondido num beco a dois quarteirões daquele edifício, coberto por um sobretudo negro. Escondia por baixo dele uma pele negra e cheia de cicatrizes, um rebelado cabelo estilo rastafári, dentes pontiagudos. Tinha fama de covarde. Humilhava os pequenos e temia os grandes. Mas era um guerreiro bruto, temido e muito forte. Raros adversários seriam capazes de vencê-lo. Halael era um deles e sabia disso, então decidiu ignorá-lo.

- É em nome de Lúcifer que estou aqui. – diz Lilith – Como deve ter notado o sétimo dia está chegando ao fim. O confronto final entre céu e inferno acontecerá em breve. O combate é nossa última chance de destronar Miguel antes do despertar do Altíssimo.

- Nossa chance? Eu não quero destronar Miguel – ambos sabiam que era mentira. Halael odiava o Príncipe dos Arcanjos, mas jurou a si mesmo jamais se unir a Lúcifer – Aliás, quando Yaweh acordar é óbvio que ele punirá os perversos. Você não acha que Lúcifer é o primeiro da lista?

- Claro que não! – Lilith foi direta. Acreditava, realmente, que seguira o caminho certo ao se aliar a Lúcifer – O Príncipe dos Arcanjos é um tirano, concentrando todo o poder debaixo de suas asas. Você o odeia. Eu e você sabemos disso. Foi por culpa dele que você perdeu as asas, tornou-se um anjo despido de suas asas que vaga por entre humanos, que jamais alcançou o sonho bobo e idiota de se tornar um mortal fraco e sem poderes.

- Não é bem assim! Caí por erros meus. Não culpo os arcanjos nem mesmo os vingadores. Tudo o que quero é justiça.

- Ora, não seja tolo. Lute ao nosso lado como é o desejo do Portador de Luz. Você é um querubim quase imbatível... – nessa hora, com a magnífica audição, Halael escuta um gemido de ciúmes de Aaron, este que se considerava o maior guerreiro de todos.

O sol já se pôs por completo. A chuva fica mais forte. Os negros cabelos de Lilith estão encharcados tal qual a roupa de Halael.

- Embora seja verdade que eu queira acabar com Miguel, Lúcifer sabe que eu jamais me unirei a ele, o maior traidor da história do universo.

Os olhos de Lilith assumem cor vermelha, deixando claro que a última frase dita por Halael a irritou. Ela retruca.

- Miguel é quem é o traidor. Ele usa a palavra de Deus para impor suas vontades. Aliás, Halael, o Iluminado nunca o perdoaria por seus pecados. Por outro lado, com Lúcifer, você comandará exércitos imbatíveis. Quem sabe alcançará o posto de duque.

- Seu marido foi esperto em mandá-la aqui. Sou seu amigo, Lilith. Você é a única dos infernos a quem escuto. Porém, estou decidido. Não vou me unir a Lúcifer. Se eu tiver de confrontar Miguel não será ao lado do Arcanjo Sombrio. Aliás, não há mais esperanças. A humanidade se destruirá sem a intervenção de Miguel. Não vê o que já causaram ao planeta?

- Por toda sua vida você buscou vingança. Agora te ofereço esta chance. Lúcifer pode não ser a criatura mais bondosa do universo, mas é quem está mais preparado para assumir a divindade. – Lilith percebe que falou mais do que devia e mudou de assunto – Sei que voltará atrás nesta decisão, mas nada posso fazer para mudá-la agora, não é? – disse dando meia volta irritada.

Ela estava a alguns centímetros de uma queda de centenas de metros. O cabelo dela gotejando, a roupa grudando no corpo impecavelmente sexy. Fica de pé na beirada do arranha-céu. Uma queda e tanto. Halael se aproxima dela. Lilith era imortal, mas nascera como humana e o corpo é tão frágil como o de um. Ela fita a rua, com carros e pessoas minúsculas lá embaixo. Ela se vira para ele, encosta uma das mãos em seu peito. Seus lábios estavam muito próximos. Seria esse o primeiro beijo do casal? Ela pula. Um grito quase foge pela boca de Halael, mas Lilith cai em pé no asfalto da rua e sai caminhando, de nariz empinado. O anjo caído ainda escuta a risada meio diabólica de Lilith. Ele sorri.

Em meio à chuva, Halael começa a mergulhar nas próprias lembranças, recordando os primeiros momentos depois da queda...