Mactíre

Saí do quartel muito antes de o sol nascer, como de costume. Fui andando pela floresta, aproveitando a brisa fresca que corria durante a última noite de lua crescente do mês. Fui direto para a caverna, esperar que o dia se aproximasse um pouco mais para ter carne fresca quando Fola chegasse, mas obtive uma surpresa quando cheguei lá. Minha amiga estava sentada num canto, olhando fixamente para a parede. Quando entrei ela me olhou sem expressão no rosto, e com os olhos vermelhos, como se tivesse passado a noite inteira chorando.

“Deve estar fria, mas você pode comer se quiser.” Disse apontando com a cabeça para a carcaça no chão, que até então eu não tinha visto. Ignorei completamente o corpo morto do animal e fui até minha amiga e me sentei ao seu lado no chão.

“O que houve? Eu nunca te vi assim...”

“Ah, Mac...” Ela me abraçou com os olhos cheios de lágrimas, prestes a cair a qualquer momento, depois ela me soltou e continuou: “Meus pais... eles... eles... eles querem que eu case, Mac! Eles querem nos afastar, Mac! Eu não quero casar, Mac, eu não quero!”

“Eles sabem da gente?”

“Não! Claro que não. Mas eles sabem que durante 5 anos eu não passei um dia dormindo na minha cama. Eles têm medo que eu morra e acham que casando eu vou ficar sossegada em casa. Mac, eu não quero casar!” Ela parou e depois continuou com uma voz um pouco mais calma, mas com um tom de ironia: “O pior de tudo é que eles querem me mandar para a forca e ainda esperam que eu escolha o carrasco.”

Eu não soube o que dizer, e acho que não havia nada que eu realmente pudesse dizer, então simplesmente joguei o crucifixo pra trás e puxei Fola para um abraço, que o retribuiu e logo começou a soluçar e chorar em meu peito.

Não sei quanto tempo fiquei ouvindo o choro dela até que finalmente ela dormiu, mas não tive como. Só ficava pensando em como minha vida estava virando do avesso: eu tinha uma missão ingrata para fazer e, além disso, minha melhor amiga logo seria tirada de mim e eu estaria novamente sozinho no mundo, sem ter com quem contar. Fola foi a melhor coisa que me aconteceu nessa vida, como uma válvula de escape desse mundo cruel em que vivemos, e como seriam as coisas sem ela? Será que eu me perderia dentro da fera que sou?

Meus pensamentos voaram e quando dei por mim já era noite novamente e o lobo só esperava o mínimo contato com a lua para explodir. Comecei então a sacudir minha amiga.

“Fola, acorde, Fola... Vamos Fola, não é hora de dormir...”

Ela começou a se mexer e me olhou com cara de sono e os olhos ainda inchados e vermelhos. Estava estampado em sua cara que não estava entendendo o que eu queria dizer, até que viu a noite lá fora e viu que eu tremia.

“Oh, céus. Mac por que você não me acordou antes?”

“Fola, não é hora para discussões, você tem que ir.”

“Tudo bem, tudo bem. Mac tome cuidado durante a guerra, ok?” Disse enquanto levantava e se encaminhava até a saída.

“Fola, espere.” Ela se virou para me ouvir. “Cuidado com possíveis arranhões. Alguns lobos resolveram tentar uma tática nova, eu não quero que você se machuque.”

“Tudo bem, obrigada, vou tomar cuidado.”

Então ela saiu correndo, provavelmente em direção ao castelo, para logo voltar para a guerra. Comecei a me preparar para a luta como sempre fazia. Tirei minhas roupas e as deixei em canto escondido, atrás de uma pedra, logo na porta da caverna. Se fosse mais cedo daria para guardar fora da caverna, mas momentos extremos requerem decisões extremas, e a esse ponto a influencia da lua já era grande demais para me dar tempo de sair e guardar as roupas antes que fosse tomado pela insanidade e ímpeto da fera. Ao longe eu já podia ouvir meu povo saindo do quartel, homens e mulheres, todos já transformados e prontos para a guerra. Saí então do meu esconderijo e senti a lua, uma queimação passou por meu corpo, trazendo ao mesmo tempo a sensação de poder, força e dor. Era bom e agoniante, o meu eu humano gritou de dor, mas o som que ouvi era o uivo de um lobo e então minha consciência e memória foram tomadas de mim.