Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 7
Capítulo VII / Capítulo VIII




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VII

Sexcentésimo oitavo dia de cárcere.

Quero ver minha mãe. Quero desesperadamente vê-la. Já pedi isso para ele, mas ele me ignorou.

Desde que fui preso aqui neste lugar escuro, não ouvi mais falar dela.

Será que está bem?...

Porque eu sou o filho dela, acredito que ninguém goste dela. E muito menos de mim. Por isso estou aqui, afinal; porque eu sou uma existência desnecessária.

Estou aqui há 608 dias...

Preciso riscar na parede, para não me perder nas contas.

Mas eu não enxergo nada.

Só os olhos brancos das bonecas ao meu redor, que mais parecem os orbes sinistros de felinos. Todas elas são cegas e neutras. Ninfas pequeninas e perfeitas que merecem o meu ódio.

Seiscentos e oito dias... Isso é quanto? Dois anos? Três?

Quanto mais eu precisarei ficar aqui?...

O cheiro de podridão que emana daquele ralo no canto do meu cárcere me enoja. Meu estômago está dando voltas e mais voltas. Acho que vou vomitar daqui a pouco (mais uma vez).

Nunca consigo manter minha comida no estômago por muito tempo com esse cheiro nojento.

Mas preciso tentar... Senão vou passar fome até o jantar de novo.

Não tenho nenhum contato com a luz desde o primeiro dia de cárcere, mas acredito que ainda não seja noite. Acho que é tarde. Ou será que não é?

Eu já não tenho noção nenhuma de tempo e espaço.

Estou só, preso neste lugar escuro, apertado e cheio de bonecas que me observam. Milhares de olhos em minhas costas, cuidando cada ato meu, cada palavra, cada risco na parede...

Apenas olhando. Nunca agindo.

...Meu Deus, eu quero ver a minha mãe, por favor.

 

VIII

 

Terceiro dia de cárcere.

Na impossibilidade de um diário ou semelhantes (não seria louca de expor meus pensamentos para este homem ler e fazer sabe-se lá o quê com essas informações!), estou fazendo meu próprio testamento mental.

Há dois dias tenho me mantido no quarto que pertenceu ao casal morto Sunderland e à Victoria, também morta naquele mesmo lugar, aliás. Confesso morrer de medo. Nas duas noites que passei fora do quarto de mamãe Irisa, desde que ela me trouxe para cá, eu revirei-me e consegui dormir muito pouco.

Mitchell havia apresentado seu quarto como o meu também, mas na última hora, decidiu-se por me emprestar o de visitas, praticamente anexo ao seu. Eu mesma tive de arrumar os lençóis de cama (e providenciá-los). Dormi mais segura, entretanto, não tendo o medo de ser abusada no meio da noite por um louco completo.

Os dias da mansão Sunderland, enquanto fui uma empregada, eram regrados e muito bem direcionados. Café-da-manhã, arrumar a casa, almoço, trabalhar, arrumar a casa, fazer alguns serviços externos, jantar, lavar a louça e dormir. Simples e prático, e mantinha todas ocupadas.

Agora, como “dama de companhia”, todas essas regras foram esquecidas e substituídas por outras, ditadas pelo próprio Mitchell Sunderland.

Eu não podia entrar no quarto dele até que o próprio acordasse e viesse me chamar. Quando ele fazia isso, eu devia acompanhá-lo até a biblioteca e, enquanto recitava poemas que havia decorado em minhas incursões noturnas àquele lugar, ou contava qualquer coisa para distrair nosso senhor, dobrava suas roupas, lustrava suas botas, e enfim, trabalhos do tipo.

Eu era uma empregada-cortesã. Mesmo não tendo tocado em mim nem nada do tipo... Mas não achava nenhuma denominação melhor.

As coisas estavam repetindo-se naquele mesmo esquema.

- E então, minha boneca? Quantos anos você tem? – de repente, ele me desconcentrou fazendo aquela pergunta. Eu estava dobrando com um esmero calculista aquelas roupas dele, já que Mitchell Sunderland tinha a maldita mania de limpeza e cuidado extremos.

Sentado no divã escarlate, com a mão sobre seu rosto, ele mais se parecia com uma pintura grega de um Adônis descansando sob a sombra de um plátano.

Eu estava logo ao lado do divã, ajoelhada no chão, enquanto cuidava de suas malditas roupas.

- E-eu...? – este tipo de pergunta sempre me pegava de surpresa. Aquele homem não me parecia do tipo que perguntava isso. – Dezessete, senhor...

- Dezessete? É novinha, boneca. – sorriu.

- E o senhor... Permite-me perguntar quantos anos tem...? – quando percebi, já havia feito a pergunta. E, imediatamente, me veio à cabeça história de lords que puniram suas empregadas por bem menos, achando que estavam sendo muito desrespeitosas.

Para meu grande alívio, Mitchell Sunderland apenas deu mais um daqueles seus sorrisos de um torto mortiço.

- Tenho vinte e dois. Cinco anos de diferença, hein... É muito? – ele sorriu mais, e eu notei um leve traço de malícia ali.

- Acredito que não, senhor... – dei de ombros, escondendo minha extrema insatisfação por aquela pergunta tão diretamente indireta.

Às vezes, eu tentava fazer um grande esforço para compreender Mitchell. Mas desistia no meio do caminho. Ele era incompreensível para as pessoas normais, para reles mortais como eu.

Tinha um comportamento torto e estranho, era totalmente doentio, odiava coisas que fazia questão de encher a casa com... Além disso, tinha uma aparência etérea e até doente, de alguém que passou por maus bocados um dia. Eu arriscaria dizer que até mesmo assemelha-se a alguém cansado de viver. E, além disso, os boatos dos próprios empregados acusavam-no de um homem assustador, um lobo solitário, e ele não fazia questão de desmentir essa imagem.

Até mesmo gostava dela. Como se ela fosse sua mortalha perfeita. Como o poema de Shakespeare...

Mas algo que eu achava estranho era que Mitchell Sunderland não tinha olhos de assassino, mesmo tendo admitido para mim que matara Victoria. Alguma coisa nessa história não se encaixava; seja a naturalidade dele ao admitir isso, seja seus olhos de alfazema que não tinham uma sombra de morte sequer.

Eu lembro que, quando ele recitou um pedaço da fala de “Noite de Reis”, ele tocou seus lábios em minha pele, e eu pude ver, mesmo nervosa, seus olhos.

Era a expressão mais emocionada que eu já vira...

Como se aquele trecho em especial resumisse toda sua vida, como se fosse seu sustentáculo. Não sabia explicar direito, mas percebi que aquele era o teste definitivo justamente porque ele tinha uma estranha e bizarra afinidade com aquele trecho em especial do livro.

- Que bom... Por um instante, perguntei-me o que você achava. Fiquei receoso em ouvir sua resposta. – comentou, com um tom neutro.

Mas, às vezes, como agora... Ele simplesmente mudava. Tornava-se, por algum motivo, um homem quase normal.

Quase como se, no fundo, lá no fundo mesmo, ele não fosse uma existência torta e errada. Como se fosse só uma criança normal, um homem que mora numa mansão e comanda uma das quatro famílias mais poderosas de St. Helens normalmente.

Eu tinha medo nessas horas. Medo porque, invariavelmente, quase que por instinto, alguma coisa em mim simpatizava com ele...

Minha maior vontade, nestas horas, era poder correr para o colo da mamãe Irisa e ficar lá, proteger-me de toda aquela podridão que emanava dos corredores. Eu sempre sentia um ar de conspiração naquele segundo andar.

- Ah, boneca! Tive uma idéia. – ele anunciou de repente, me assustando.

Deixei até mesmo cair a camisa que estava dobrando e, irritada por ter perdido meu trabalho, reiniciei a mecânica da coisa.

- Idéia, meu senhor? – sem dúvidas, me assustei com aquilo.

- Vamos sair, sim? Pegue meu guarda-chuva e o meu casaco, aquele preto de detalhes vermelhos. Quero meu lenço vermelho também. Minha insígnia, e...

Mitchell Sunderland ergueu-se do divã e me encarou de cima a baixo. Eu, uma pobre empregada, ajoelhada no chão com uma pilha de camisas, em plena biblioteca (sim, quando eu disse que ele era caprichoso e excêntrico, não estava mentindo em hipótese nenhuma).

- O que está fazendo aí? – ergueu uma sobrancelha.

- Senhor...?

- Vá de uma vez buscar o que eu pedi, bonequinha. O tempo voa, vamos logo!

Eu iria dizer que não estava chovendo e, por isso, um guarda-chuva seria desnecessário, para dizer o mínimo. Mas resolvi não discutir com ele; já havia ultrapassado meus limites perguntando sua idade (e ainda me surpreendo, porque ele não tem mesmo cara de 22 anos!).

Resignei-me a fazer o que ele ordenou, me erguendo de pronto.


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