Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 6
Capítulo VI




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/26781/chapter/6

VI

 

Meu olhar sempre se perdia na imensidão daquele pedaço de sonho, não importava quantas vezes eu já tenha entrado, sorrateiramente, ali.

A biblioteca era, talvez, depois do quarto do nosso senhor, o lugar mais tenebroso da casa. E, mesmo assim, para mim, era o mais cálido. Ele tinha algo em sua composição, alguma coisa passeando em sua atmosfera, e isso me fazia ficar calma. Aquele cheiro de papel envelhecido e poeira esquecida acalmavam-me.

Imaginei que, pelo esmero com que Mitchell Sunderland cuidava daquele local, os livros em todas as estantes, e a escrivaninha, com seus papéis e mistérios, arrumados todos com uma obsessão meticulosa, para ele também devia ser, no mínimo, um local reconfortante.

Aquela figura loira e efêmera sentou-se no divã escarlate. Pelo que pude observar, o vermelho devia ser sua cor favorita. O vermelho e o preto.

Mas ele também era louco, e o vermelho podia ser a cor que ele mais odiasse, talvez. Porque, afinal, seu quarto estava simplesmente abarrotado de bonecas de porcelana, e ele me confessara abertamente odiá-las com toda a alma.

- Vamos fazer um teste, bonequinha. – ele me anunciou, tão logo sentou-se ali, apoiando o cotovelo no canto do divã e pondo a mão em seu rosto. – Se você passar neste teste, eu irei poupar a sua vida.

Poupar minha vida?

- ...Senhor? – engoli em seco.

Aquele tom de respeito com o qual eu o tratava estava me dando nos nervos, é verdade. Mas aqueles olhos cor-de-lavanda, repentinamente, ficaram tão escurecidos, tão sérios, compenetrados, que eu resolvi ser cautelosa. Ele estava, definitivamente, falando sério. Muito sério.

- Na verdade, sou uma criança caprichosa e não aceito uma empregada que não passe nesse teste. – sussurrou. – A Victoria Barrington passou nele, sabia? Ela morreu depois, porque traiu esse mesmo teste. Eu a matei.

Imediatamente, minha mente deu voltas e voltas. Senti-me invariavelmente enjoada, como se estivesse em alto mar.

Atualmente, este homem estava simplesmente confessando, com uma tranqüilidade que moveria montanhas, que havia realmente matado Victoria!

Minhas pernas bambearam, e eu achei que elas fossem-me trair. Quis me segurar em alguma coisa, mas não senti nenhum apoio. E, então, tudo girou; Mitchell me puxara para seu colo, como fez lá embaixo, na sala de jantar.

Eu respirei pesadamente, surpresa ainda. E, agora, estar assim tão perto daquele monstro me pareceu a maior ameaça de todas.

Muito maior até mesmo... Do que aquela me fez estar, cinco anos atrás, jogada em um beco qualquer da úmida e sempre plúmbea St. Helens.

- Isso, sente-se aqui, boneca. – ele sorriu. – Seu rosto assustado é muito bonitinho, sabia?

Eu as odeio por serem belas, ele disse, anteriormente.

Mitchell estava, na verdade, me odiando quando disse isso. Tão doentiamente quanto odiava aquelas bonecas.

Não seja uma boneca, minha mamãe disse.

Repentinamente, a verdade caiu sobre mim com a força de um aríete. Eu pude até mesmo sentir uma dor aguda percorrendo minha nuca. Aquele homem apertou mais minha cintura, como se eu fosse uma boneca de ventríloquo, e sorriu. Aquele seu sorriso torto...

Eu estava ameaçada. Definitivamente ameaçada.

E, por isso mesmo, testada. Um capricho doente; eu devia provar que não era uma boneca, que não deveria ser odiada até a morte.

Apertei meus punhos, contendo as lágrimas de desespero. Estava trancada numa biblioteca de precária iluminação, com um homem que matara uma empregada anteriormente, totalmente ensandecido, e confessara abertamente que também iria matar outra, eu, caso não passasse num certo teste.

- Qual seria esse teste, senhor...? – apelei, portanto, para a única solução possível: passar com honras nele.

- Tudo que precisa fazer, boneca, é ler esse trecho.

Mitchell estendeu-me um livro. Não soube de onde ele o tirou, se já estava com ele antes, se estava sempre à sua mão. Ele tinha aberto numa página, e eu identifiquei, imediatamente, pelo espaçamento e tudo o mais, como sendo uma extensa e única poesia.

- “Venha comigo, venha comi”... Shakespeare, senhor?! – definitivamente, aquele homem é louco!

Meu nervosismo só aumentou com isso.

- Oh, você conhece? Que boa menina. Muito bem! – Mitchell deu-me alguns tapinhas amigáveis na cabeça, como se eu fosse um cãozinho de família. – Suponho que saiba ler também.

- ...Sei, sim senhor. – resmunguei.

- Quem te ensinou? – ele emendou no mesmo segundo, como quem já esperava aquela resposta.

- A senhorita Irisa, senhor. – também emendei.

Mitchell Sunderland mergulhou em um profundo silêncio, como que ponderando, pensando acerca a resposta que acabara de obter.

- Muito bem, então. Vamos fazer assim...

E, então, ele me ajeitou melhor em seu colo. Eu odiava quando ele fazia isso; com extrema vergonha, eu sentia a sua masculinidade por baixo da calça. Não que ele estivesse excitado, nem nada (o que era extremamente curioso, considerando a natureza sexual de todos os homens), mas era incomodo. Nestas horas, eu lembrava que eu era só uma empregada, enquanto ele era um homem e meu senhor.

Tão logo me ajeitou no colo, puxou meu queixo para encarar seus olhos. Se eu detestava sentar-me forçadamente em sua perna, odiava ainda mais encarar seus olhos.

- Consegue identificar essa passagem? – ele me perguntou, a voz baixa e rouca, seu hálito roçando calmamente em meu rosto.

Não sei explicar, mas havia algo nos olhos de Mitchell Sunderland muito além da compreensão mortal. Era como um brilho efêmero que se tornava particularmente avassalador e singularmente penetrante quando fixado em algo. E esse algo, no caso, eram os meus olhos.

Aquela cor tão rara e perfeita... Aquele lavanda meio azulado, difícil de definir, sugava toda a minha respiração. Eu me vi prendendo-a mais uma vez, a ponto de sentir-me tonta de tanto encará-lo.

- “Noite de Reis”... Ato II... Cena... Cena IV... – sussurrei, tentando parecer séria, mas aquela mão gelada em meu queixo, aqueles olhos fixos nos meus tornava aquilo quase impossível.

- Você é muito boa, bonequinha. – ele sussurrou-me de volta. – E você consegue recitar sem eu mostrar o livro?

- ...É esse o teste, senhor? – estremeci.

Ele assentiu, calmamente. Eu queria desesperadamente que Mitchell Sunderland soltasse logo o meu queixo e me permitisse pensar com clareza de novo. Estava quase desmaiando por falta de ar.

Venha comigo, venha comigo, morte,

E deixe-me deitar num triste cipreste;

Minha voz estava tremida. Eu certamente não estava conseguindo recitar com a devida seriedade aquele trecho de uma das obras daquele infame, porém perfeito escritor britânico. E aquela descrição mental que fiz dele me lembrou imediatamente aquele meu senhor que me segurava tão possessivo nos braços.

Voe, voe, respiração;

Eu estou detido por uma bela e cruel dama.

Se eu já achava que tudo estava indo de mal a pior, ficou ainda mais temeroso naquele instante.

Meu senhor, o confesso assassino de Victoria, que também já esteve, um dia, nesta mesma situação que enfrento, encostou os lábios em minha testa.

Ele estava recitando agora, com aquele seu timbre rouco e tão hipnotizante. Roubara minha voz, e aqueles lábios pálidos, ao contrário de suas mãos, por exemplo, eram quentes. Eu senti-me totalmente entontecida, incapaz de reagir. Retesei meu corpo quando ele desceu por minha bochecha direita.

Minha mortalha branca, encravada com plantas,

Oh, prepare-a!

Assim que pude resgatar parte de meu autocontrole, voltei a recitar. Não podia deixar que ele fizesse isso; aquele era o meu teste.

Quis desesperadamente me agarrar em alguma coisa, como se eu fosse desfalecer. Aquele calor e aquela falta de ar iriam me matar, disso eu não tinha dúvidas. Imaginei minha mão deslizando, mesmo que acidentalmente, pelo ombro forte de Mitchell Sunderland, e estremeci mais uma vez.

Então, ele inclinou-se mais, apertando-me contra seu corpo.

...Não fazia sentido sentir tudo aquilo, todo aquele ódio e toda aquela curiosidade, por um homem que eu conheci naquela manhã, mesmo que tenha ouvido falar dele e visto-o de longe por cinco anos. Era totalmente ilógico.

Minha parte da morte, nunca ninguém verdadeiramente

Dividiu isso.

Novamente, Mitchell roubou a vez. E, quando ele finalizou, estava com os lábios tão perto dos meus que eu comprimi-os.

Um silêncio agudo, estranho, pairou sobre nós, e eu me senti incomodada.

Como se o peso de quinhentos mundos estivesse caindo em meus ombros. Como se a realidade estivesse voltando a bater em minha cabeça, depois daqueles instantes de estonteante confusão.

Então, aquela figura loira e assustadora, mesmo tendo uma beleza tão efêmera, bateu palmas. E este som encheu de um eco bizarro a biblioteca.

- Meus parabéns, Cora Baker. Você passou. – ele sorriu, entre o sadismo e a admiração sincera. – Está definitivamente trabalhando como minha “dama de companhia” em tempo integral, a partir de agora.

Eu sacudi a cabeça, concordando, mesmo sem entender nada, enquanto ouvia suas palmas, suas congratulações sem sentido.

...Havia passado, com a graça dos céus.

E, agora, meu martírio estava só começando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!