Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 61
Epílogo IV - Capítulo LXXIII




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LXXIII

 

Meus olhos abriram-se, surpresos. Só então notei que minhas pálpebras, tão logo se fecharam de novo, esmagadas sob o peso de um cansaço adquirido em semanas, semeava pródigas paródias embebidas em pesadelos para que eu os visse e cresse, com os pés juntos, que ainda podia ver minha vida correndo naquele dia de luzes difusas dentro de uma mansão abandonada.

Olhei ao meu redor, tentando localizar-me, dopada de uma mistura de sono e confusão. Um quarto de paredes claras. Percebi uma imensa janela que deixava escapar fachos de um ebúrneo derretido em meu peito, com pequeninos pontos que se confundiam, formando um jogo primaveril de luz. O sol ultrapassava a fina camada de tecido branco que era aquela cortina e vinha diretamente aquecer-me, a ponto de eu não ter precisado de cobertores (ou simplesmente ter me esquecido deles).

Eu conhecia aquele quarto... Estava mais “nu”, mas eu o conhecia. Não havia mais prateleiras ou bonecas, nem mesmo a decoração macabra, tons de negro e escarlate, que antes dava-lhe o ar da graça, mas... Eu conhecia o quarto.

Ainda mais surpresa do que quando acordei, deixei aquela cama num pulo, apenas para perceber minhas próprias roupas. Um vestido de gola alta feita de rendas detalhadas, de punho longo, totalmente branco. Uma segunda camada de tecido parecido com a seda estava por cima, deixando apenas as rendas detalhadas mostrarem-se nas mangas, na gola e em parte do fim do vestido. Se fosse possível, eu estava vestida como uma bailarina de caixinhas de música.

Passando a mão pelos cabelos, começando a sentir o suor frio brotar da testa, corri porta afora.

Não podia ser a mesma mansão com cheiro de mofo e abandono que eu vira há pouco tempo atrás. Ela estava tão... Viva. Não haviam mais cortinas vermelhas cobrindo o sol, como antes. E só então pude ver: aquela era uma tarde de céu levemente carregado com nuvens plúmbeas, que iam reunindo-se sobre aquela mesma St. Helens que eu conhecia. Das poucas janelas que estavam abertas podia-se sentir, misturado ao ótimo cheiro de produtos de limpeza que o corredor exalava, o odor de poeira quente e de eletricidade, anunciando uma tempestade de verão.

Passei pelas portas dos quartos, sem sequer enxergá-las de fato, percebi até mesmo a porta cheia de arabescos que levava à biblioteca (e, ah, eu ainda tinha pena daqueles livros... Jogados ao esquecimento num canto escuro da mansão Shelser, esperando apenas por um novo leitor, uma nova chance de provar-lhes o valor. Eternamente descansando, até segunda ordem, numa nuvem perpétua de poeira e solidão longe de seus verdadeiros lugares). Mas passei correndo por todas.

Talvez eu tivesse dormido demais e Emma e Miles estivessem me esperando lá embaixo... Talvez eu dormi tanto que eles até puderam limpar e transformar aquela mansão, para que eu tivesse um despertar feliz.

Talvez...

Percebi tarde demais as lágrimas derramando-se de meus olhos. Angustiada, sequei-as, apressadamente, enquanto descia a passos desajeitados a escadaria. A mansão toda parecera ter adquirido, enquanto eu dormi, um ar de sonho.

Estava tudo brilhante e vívido. Os raios de sol entravam sem nenhuma barreira de cortina e negritude. E, invés de paredes nuas, vez ou outra eu até mesmo encontrava um vaso ornamental, um quadro de algum artista famoso.

...No que aqueles dois transformaram aquele lugar?

- Cora? – a voz.

Eu a vi, enfiada no mesmo vestido negro de punhos brancos, o mesmo vestido que condizia ao papel de uma governanta. Os cabelos presos num coque, os mesmos fios tingidos de cobre líquido que tanto me admirava. Os mesmos olhos verdes, dançantes, brilhantes e perfeitos; Irisa Kingston estava bem ali na minha frente.

- Mamãe Irisa!... – exclamei, pondo mais ênfase na frase do que devia.

Antes que eu corresse até ela, mamãe foi mais rápida. Com delicadeza, tocou-me no ombro, me puxando para perto de si.

- O que houve, Cora? O que aconteceu?

- ...Que está acontecendo?

- Deuses, o que você tem, menina? – e ela tocou em minha testa, provavelmente para ver se eu tinha febre.

- N-não, não tenho nada... – sussurrei em resposta.

Eu sabia que aquilo não iria convencer nada minha mãe, por isso, emendei outra pergunta. – Sabe onde está... O Miles?

- Na biblioteca, querida. – ela sorriu-me. – Achei que estivesse com ele.

- Eu acabei adormecendo... Acho que estou muito cansada ultimamente...

- Veja se vá dormir melhor. Você sequer anda comendo direito! – ralhou Irisa, enquanto eu achava cada vez mais que estava em alguma espécie de transe bêbado de sono. – Acho bom comer todo o jantar que servir hoje, está bem?

- Ah... C-certo, eu comerei... – forcei um sorriso. – Se me der licença, vou ver como ele está...

Mamãe soltou-me, como se dissesse, junto com aquele seu sorriso de ninfa, que eu podia ir. E que fosse correndo, aparentemente.

Dando meia-volta, saí em disparada para as escadas, fazendo o mesmo trajeto que percorrera antes. Aquela sensação de estranheza estava queimando minhas entranhas como soda cáustica. Tinha a impressão de que eu iria tropeçar em algum lance das escadas se continuasse tão nervosa assim; talvez, o faria até em meus próprios pés.

Respirei fundo, observando o cenário ao meu redor. Não estava reconhecendo aquela casa! De uma hora para outra, tudo mudara...

O branco puro das paredes enfeitadas de quadros ou contrastando com as mesas com vasos de flores perfeitas, o ar de vida que agora tinha, até mesmo o céu de cinzas e um sol que se derramava pelo corredor, ultrapassando a quase inexistente barreira de vidro das janelas, como uma grinalda de cobre líquido.

Definitivamente, Miles teria muito para me contar! Assim como Emma!

Afastando da cabeça os pensamentos de vingança por eles me pregarem aquela peça e quase me matarem de susto (eu torceria seus pescoços com requintes de crueldade depois disso), abri a porta da biblioteca, e ela fez um leve barulho, o som característico que eu conhecia.

A luz do sol iluminava as lombadas dos livros. Milhares de cores e títulos. Salpicando a imensa sala com fachos impossíveis de luz, o sol atravessava as janelas, que não exibiam mais nenhuma cortina, apenas um fino tecido que se assemelhava à seda, transparente como o vidro.

Engolindo em seco e me achando, talvez, em uma outra dimensão, arrisquei o primeiro passo para dentro.

- Miles...? – chamei-o, mas não obtive resposta.

Suspirando e vendo que eu teria mesmo que procurá-lo (maldição, esse menino nunca tinha sido traquinas assim!), fechei a porta com vagar, ainda surpresa por ver todos os livros de volta no lugar, sem teias de aranha, sem cheiro de solidão. Não mais com aquela aparência lúgubre, aquele lugar já não me parecia uma imensa biblioteca que deixava adivinhar geometrias impossíveis.

Parecia apenas... Uma sala normal, em uma mansão totalmente normal. E isso me assustou, pois a mansão Sunderland era tudo, menos normal!

Prendi a respiração, porém, ao ter dado mais um passo e ter ouvido, subitamente, o som de uma respiração. Só podia ser Miles! Ele iria me pagar. Não o deixaria me dar um susto. Provavelmente, Emma quem armara tudo aquilo, e até convidara mamãe Irisa para tornar tudo verossímil...

(Apesar de parecer totalmente ridículo, pois ninguém em apenas algumas horas transformaria radicalmente uma mansão daquele tamanho).

Percebi um par de figuras no divã vermelho que eu conhecia tão bem (e que não lembrava estar tão limpo e em perfeitas condições). Devagar, fui me aproximando. Ele não iria me assustar! Não mesmo!

...Porém, foi o que aconteceu.

Quando cheguei ali, ao lado do móvel, meu coração parou. Miles Baker estava dormindo, placidamente, sobre ele. Não mais vestia uma roupa negra e vermelha, mas sim, um conjunto muito semelhante àquele que estava usando até algum tempo atrás, mas sem o casaco e de uma cor branca, como a maioria da casa, agora.

Ao lado dele, a sua cópia adulta. Vestido igualmente de branco, mas com um casaco num tom de marrom envelhecido sobre os ombros. Parecia um menino daquele jeito, quando dormia.

Mitchell?

Engolindo em seco, percebi que meus olhos enchiam-se d’água.

Não havia nenhuma Emma. Nem o abandono.

Mas havia um sonho e, agora, um futuro.

Com um nó formando-se na garganta, esfregando os olhos antes que as primeiras lágrimas caíssem vergonhosamente, ajoelhei-me, ainda encarando aquelas duas figuras que pareciam até gêmeas uma da outra, mas com tamanhos diferentes.

- ...Que coisa! – suspirei. – Vão pegar um resfriado se dormirem aí!

Toquei de leve no ombro de Mitchell Sunderland, e tomei um susto ao senti-lo real, uma pele quente e pulsante, sob minha mão.

E então, ele abriu os olhos.

E eu soube que, desde sempre, foi assim...

 

 

Fim.


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Notas finais do capítulo

E enfim, "Bavarois" acabou. ^^
Quero agradecer imensamente a todos os leitores e a todos os envolvidos. Contribuíram imensamente, e se a fic acabou hoje, foi porque todos vocês estavam aqui comigo! ^___^

Obrigada de verdade!