Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 60
Epílogo III - Capítulo LXXII


Notas iniciais do capítulo

Inspirado levemente (de fato) numa cena do game de Clannad. o-ob



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LXXII

 

Durante cinco anos, aquele foi o meu lar. Lar que, aos poucos, foi sendo abandonado. A maioria dos empregados da mansão Sunderland migrou para a mansão Shelser, agora sob o comando ameno de Emma (e, na época, houve muitos comentários a respeito disso), e os que já não desejaram mais nenhuma relação com as Quatro Famílias foram viver suas vidas bem longe de St. Helens, ou bem longe daquele mundo. Mamãe Irisa foi uma dessas pessoas: agora ela tinha, finalmente, sua própria vida.

Uma sensação estranha abatia-se sobre mim enquanto caminhávamos por aqueles corredores vazios. Agora, aquele lugar mais se assemelhava a grossas colunas de pedra que se ascendiam na penumbra, até uma abóbada nua. Um dia, aquilo foi uma sala, um corredor, um lugar cheio de empregados, de comentários e de vida, mesmo com a recusa do lord do lugar em prover qualquer animação ao esqueleto de sua casa. Agora, estava do jeito que ele desejou no início: cheiro de abandono, de morte e de urina de ratos.

Miles agarrava-se à manga de meu vestido, encarando tudo com olhos curiosos e levemente surpresos. Ele tinha oito anos e jamais havia entrado naquela mansão antes, apenas ouvido falar sobre ela.

Sorri, por um instante esquecida da dor que aquele ambiente vazio me causava, ao vê-lo de olhos tão abertos. Era incrível como se pareciam até nisso: aquela criança jamais me perguntava nada. Olhava tudo e descobria tudo por sua conta, excluindo-me de seu aprendizado. De vez em quando, isso me deixava triste; mas depois compreendia, afinal, que eu também tinha parte da culpa.

E que Miles era Miles Baker por causa disso.

- Veja, Miles. Aqui foi a cozinha. – Emma, ao contrário de mim, indicava-o os lugares e mantinha um triste sorriso no rosto, mas as palavras eram besuntadas de mel. – Sua mãe trabalhou aqui enquanto viveu na mansão.

As agulhas de luz poeirenta caíam em diagonal e delineavam fileiras intermináveis de caminhos miseráveis. Eu recordava de cada pedacinho daquele recanto: das panelas, das conversas, do cheiro de doces e de comida, de como aquela vida fora tão gentil para comigo, apesar de tudo...

- Mesmo, mamãe? – ele ergueu os olhos de alfazema para mim; os mesmos brilhavam numa emoção infantil que me mortificou.

- ...Sim. Sim, eu trabalhei aqui, mas era tudo muito diferente, na época.

- Ah. – ele respondeu, simplesmente.

Ao baixar a cabeça, soube que queria digerir, sozinho, aquela informação. Por vezes, quis ter o poder de ler a sua mente. Uma criança sem pai, sem amigos e sem honra, com um único presente, o amor de sua mãe; nada mais que isso. Talvez, quando fosse pequeno e passou pela mesmíssima situação, Mitchell também pensasse numa linha semelhante à de Miles.

E, pelo que ele me contou quando me falara de seu passado, e quando eu própria lembrava daquele dia, pensava no quanto pai e filho se pareciam. Até nos aspectos mais miseráveis. Um outro aperto comprimiu meu coração, transbordando-o e fazendo-me sentir os olhos arderem numa incontrolável vontade de verterem lágrimas amargas.

Nós percorremos todo o grandioso primeiro andar. O oval bastion, a sala de jantar, os corredores, até mesmo a porta cheirando a mofo que levava ao porão (apesar de ninguém ter entrado lá, por medo da intrínseca teia de aranhas que iríamos encontrar). Por fim, quando não houve pedaço de chão que Miles já não houvesse conhecido, a cond Shelser sorriu.

- Miles? Vamos subir e conhecer o segundo andar?

- Sim! – ele respondeu, prontamente.

- Sabia que o segundo andar era exclusivo do seu pai? – ela emendou, segurando a farsa de seu sorriso, naquele dom extraordinário de autocontrole que eu sempre invejei em sua pessoa.

Novamente seduzido pelas promessas que aquela pergunta continha, meu filho ergueu os olhos para mim, com aquele sorriso que eu adorava. – É verdade, mãe?...

...O segundo andar.

- Sim, é verdade. – concordei, assentindo levemente.

Não, eu conhecia muito bem a minha cria. Miles Baker não era uma criança de gestos condizentes à sua idade. Ele era controlado, curioso e frio demais para expressar que tudo o que mais queria era sair correndo na nossa frente e bisbilhotar primeiro cada pedaço daquele andar onde apenas seu pai, aquela pessoa tão desconhecida e intrigante, passeava.

Por isso, quando ele apenas assentiu e concordou em nos seguir, de mãos dadas comigo, calmamente, eu já sabia que faria isso. Afinal, era mesmo uma miniatura de Mitchell; até nisso se pareciam. Uma brincadeira de muito mau gosto.

Senti o corpo não mais responder por vontade própria quando chegamos ao pé da escada, enfim. Como se estivesse enterrada em um lago lamacento e turvo, lembranças diáfanas de anos atrás violentaram minha mente.

Uma jovem ruiva e de olhos acastanhados via, assustada, uma pessoa caindo das escadas, enfraquecida por uma doença que jamais poderia ter sido curada. O corpo foi mais rápido que a mente e, quando ela viu, estava ajudando aquela pessoa, mas a diferença de peso e altura, bem como a lei da gravidade, falaram mais alto que sua vontade, e eles foram ao chão, pateticamente.

E, então, ela foi capturada. Um par de olhos azuis que a arrastaram para o fim. O fim e o começo de tudo.

Essa jovem ruiva caiu com aquela figura pálida e ameaçadora bem ali onde eu estava agora. E, num súbito raio de compreensão, percebi que aquela jovem era eu própria. Uma “Cora Baker” que pertencia ao passado, a um lugar distante e que eu nunca mais conseguiria alcançar.

...Bem como aquele “Mitchell Sunderland”.

- Mãe?

Com um solavanco inconsciente de meu corpo, percebi-me de mãos dadas com Miles, enquanto o mesmo encarava-me, arqueando uma sobrancelha.

- O que foi, Cora? – Emma já começara a subir as escadas, mas parou ao ver-nos ainda ali embaixo. – Vamos subir ou não?

- Está se sentindo mal? – ele insistiu, pacientemente esperando-me.

- Não, não. – sacudi a cabeça, veementemente. – Vamos subir! Sinto muito, acabei atrasando vocês...

- Se não quiser subir, farei companhia para você. – ele insistiu, como eu o havia feito antes de sairmos. – Já conheci o primeiro andar. Estou suficientemente satisfeito com isso.

- Oh, não, por favor! – sacudi a cabeça, numa veemente negação. – Eu vou acompanhá-los, diabos, nem que seja a última coisa que eu faça!...

- ...Não precisa pôr tanta ênfase nisso. – ele sorriu.

- Vamos lá, Miles! – eu ignorei-o solenemente, apertando um pouco mais forte sua pequena mão.

- Sim, senhora.

Quando subimos todos os degraus, a primeira coisa que notei foi como aquele lugar mudara. Agora, parecia realmente uma mortalha. As cortinas estavam enegrecidas num tom desbotado e velho, e algumas estavam até rasgadas em certos pontos. Não eram poucos os vidros trincados ou parcialmente quebrados. As paredes nuas evidenciavam ainda mais a miséria: estavam sujas, esquecidas e arranhadas graças aos roedores que dividiam o espaço com a escuridão.

(Emma dissera-me que fariam, antes de Miles subir ao “trono”, uma grande reforma naquele lugar, mas eu começava a duvidar que ela iria funcionar. Aquele lugar estava totalmente mudado!).

A temporada das geadas e das rápidas tempestades de neve havia passado, mas deixado suas marcas ali dentro. A tênue luz que escapava pelas brechas das cortinas rasgadas evidenciava as lágrimas de gelo que ainda teimavam em fincarem-se no chão, sem derreter ou mudar, e havia tantas manchas que até pareciam gotas de gelatina. Não havia luz alguma e o ar estava bastante abafado.

Quando passamos por alguns quartos, eles estavam piores que o corredor. Até parecia que os lençóis haviam derretido, desintegrado-se na passagem dos anos. Pequenas ervas daninhas, que eu me perguntava de onde saíram, cresciam nos cantos das paredes. E lembrei-me de como o exterior da mansão também estava infestado de plantas parasitas do tipo.

- Veja, Miles... Esta foi a biblioteca. – ouvi Emma anunciar.

A porta abriu-se. E minha surpresa foi como uma cascata a rebentar descontroladamente. Não havia mais nenhum livro. Todos eles haviam sumido. Eu sabia onde eles estavam: na mansão Shelser. Emma guardava todos eles em um lugar especial, e dizia que aquela era a memória mais viva de Mitchell que podíamos ter, depois de Miles.

Mas... Eu lembrava daquele lugar como um recanto lúgubre, muito assustador, porém, cheio de livros. Não apenas um monte de estantes e prateleiras vazias, sem livro algum e repletas de teias de aranha e cheiro de madeira mofada.

Provavelmente, meu choque foi tão grande que até mesmo Emma percebeu-o, porque aquela “visita” durou apenas alguns segundos. Sequer meu filho quis ficar muito tempo na biblioteca. Preferiram seguir adiante, enquanto eu pateticamente observava tudo ao meu redor, com uma sensação de nostalgia crescente.

Quando chegamos ao último cômodo, providencialmente escolhido para o ser assim pela maligna Shelser Jr. (a quem eu ainda iria matar por ter me deixado numa situação dessas), meu coração apertou, assim como minha garganta. Por um breve instante, achei que eu fosse virar asmática ou coisa parecida, e que nunca mais conseguiria respirar normalmente.

- Este foi o quarto do meu pai, correto? – Miles perguntou.

- Exato. Quer abrir a porta? – na verdade, era até meio incômodo ver que eu não estava interagindo ou ajudando em nada... Estava tão surpresa e tão fustigada pelas imagens de abandono que permanecia quieta, apenas escutando-os, mesmo de mãos dadas com meu filho.

- Posso...? – ele sorriu.

- Tenha a bondade.

O rangido da mesma ecoou até o mais profundo recanto de minha alma. E aquela imagem... Ela iria me perseguir pelo resto de minha vida.

Assim como a biblioteca, a “alma” daquele quarto foi totalmente sugada pelo tempo. Não havia nenhuma boneca de porcelana nas prateleiras. Era apenas um quarto de cores vermelho-sangue e preto, principalmente, vazio e ainda mais abafado e abandonado que o resto da casa. As paredes exalavam mofo e tinham uma cor um tanto amarelada que eu não conhecia em meus tempos de serviço.

Duas portas daquele grande armário estavam caídas, mostrando as teias de aranha e a camada grossa de pó que se escondia lá dentro. Nenhuma roupa, sapato ou tecido... Apenas um móvel vazio. O espelho que havia em uma destas portas estava também parcialmente quebrado, e cacos de vidro espalhavam-se perigosamente como migalhas de pão no meio da rua.

- E então? – Emma forçou um sorriso, assim como eu estava tentando fazer (mas com bem menos êxito que ela).

- Estou surpreso... – Miles sussurrou. – E estou vendo muitas coisas.

Pega de surpresa por aquela afirmação, desta vez, a voz que lhe perguntou foi minha: – Coisas? Que coisas você vê, meu filho?

- Desde que entramos aqui... Acho que um pouco da alma do meu pai ainda continua nesse lugar. Eu a vi. – ele tinha um sorriso encantado e, se possível, ainda mais nostálgico que o meu em seu rosto pálido.

- Explique-nos direito, querido. – a cond Shelser ajoelhou-se um pouco, até ficar mais ou menos da altura dele.

Brincando com o bolso daquele casaco negro e pesado, Miles suspirou.

- As flores do jardim. A maioria delas eram flores vermelhas, de todos os tipos, mas vermelhas. Porém, escondidas, nos fundos da mansão, eu vi rosas brancas. Elas já haviam murchado e estavam quase irreconhecíveis, mas eu soube que eram brancas porque estas são as que murcham e perecem mais rapidamente...

Sim, eu lembrava das rosas brancas. E lembrava-me também do fato de que, quando eu era pequena, eu as achava as mais belas de todas, porque quando chovia, elas pareciam... Pequenos flocos de neve.

- Agora, aqui... Eu vejo muitos detalhes brancos e dourados. Na cama, nas paredes, em coisas que permanecem aqui, de alguma forma. – ele baixou os olhos, como se estivesse contendo a emoção. – Meu pai... Ele escondia. Deixava à mostra tudo que odiava: o vermelho, o negro, a nudez das paredes, toda sua frustração. E longe dos olhos alheios, onde ninguém pudesse perceber... Ele deixava coisas das quais gostava: o branco, as flores puríssimas, partituras nostálgicas de piano... Tudo isso fazia dele quem era, e ninguém jamais poderia dizer isso, porque estavam mais ocupados percebendo o vermelho, as flores feias e os detalhes assustadores.

Eu jamais poderia dizer o quanto aquilo me feriu. Porque, eu vi que ele tinha razão. Miles estava totalmente certo... Mitchell era o tipo de pessoa que fazia isso.

E me enganou também, no início. Eu também prestei atenção no vermelho e fechei meus olhos para o branco.

Aparentemente, também havia balançado com os sentimentos de Emma, porque ela ergueu-se e ajeitou o vestido, e passou a mão pelo rosto, como quem tivesse sito esbofeteada.

- E-eu... Eu vou dar uma olhada no corredor, mais para lá... Acho que vocês dois precisam muito conversar sozinhos, não é? – ela forçou um sorriso. – Vou deixá-los a sós. Com licença...

Aquilo não convenceu ninguém, mas deixamos que ela saísse, apressada. Eu também quis sair e desmoronar, mas permaneci firme e forte ali.

Quando virei-me para meu filho de novo, percebi que ele me olhava.

- Algum problema, querido? – perguntei.

- Não, nenhum... – ele respondeu, apressado.

Largando minha mão, Miles decidiu explorar o quarto. Deixei que ele espiasse o que foi um dia o banheiro, que olhasse para o espelho rachado no chão, enquanto eu sentava na cama, mesmo sabendo que sujaria totalmente meu vestido de pó. Aquele ambiente me sufocava...

Ao olhar para meu filho de novo, novamente vi-o me encarando, silencioso, com os ombros encolhidos.

- Ora, Miles! – suspirei. – Por que está me olhando tanto? Quer me perguntar alguma coisa, meu filho? Sabe que pode me perguntar qualquer coisa.

Mais uma vez, vi-o baixar a cabeça, olhando para o chão empoeirado. Aquele irritante tique de quando ele queria perguntar algo, mas não tinha coragem. Ficava olhando para sua vítima, num misto de um pedido silencioso e uma serenidade fora de série. E quando essa pessoa percebia isso, desviava de imediato os olhos, sem proferir uma só palavra de explicação.

- Mamãe?... – mas, desta vez, surpreendi-me ao vê-lo me responder.

- O que foi?

- ...Se eu fizer uma pergunta, você promete não ficar brava?

De imediato, ergui uma sobrancelha, desconfiada. Aquele tipo de pergunta nunca significava algo bom.

- Jamais ficaria brava com você, Miles. O que deseja?

- A senhora... – ele engoliu as palavras, olhando para si próprio no espelho quebrado, talvez pensando em uma sentença totalmente nova. Podia-se ver de longe a luta interna que travava para perguntar-me essa tal coisa que queria. – A senhora... Poderia... A senhora poderia me contar... Sobre... O papai...?

Fitei-o, perplexa. Mesmo ao longe, naqueles seus olhos de alfazema eu ainda podia enxergar meu próprio reflexo, enquanto suas pupilas dilatavam-se como manchas de tinta em um papel.

- Por favor...? – completou.

Solidão. Culpa. E rancor.

Por quanto tempo aquela criança carregou tudo isso, sem nunca contar nada para ninguém? Miles era um garoto forte demais; ele jamais iria confessar essas coisas, nem para mim, sua mãe. Nem para ele próprio.

Mas eu vi, naquele ínfimo instante, o quanto ele sofria. “Mitchell Sunderland” não era um tópico agradável, nem algo que eu gostava de alardear. As poucas vezes, quando era menor, que ele tentou me perguntar sobre o pai, eu ainda estava sensibilizada demais com aquela perda, e chorava lamentavelmente como um bebê, e meu próprio filho dispensava de mais de uma hora para me acalmar de novo, pedindo-me sempre desculpas e prometendo que jamais iria tocar de novo no assunto. Mas, vez ou outra, ele escorregava em sua própria promessa e arriscava outra vez, como se esperasse que eu já estivesse suficientemente preparada.

Não, eu nunca estive. Sempre chorei, sempre desviei o assunto. Miles aprendeu que, para mim, seu pai era um assunto tabu.

E, provavelmente, ele deve ter feito essa mesma pergunta para mamãe Irisa, para Emma, para quem quer que houvesse conhecido Mitchell. “Conte-me sobre meu pai, por favor?”. Era um desejo simplório e, ainda sim, poderoso. Mas aquela criança esbarrava nas próprias reações, e nas dos outros.

Tanto Irisa quanto Emma... Mitchell também devia ser um tabu para elas.

Uma criança que jamais pudera saber nada de seu pai, além de boatos, a maioria todos mentirosos.

Quão sozinho Miles sentiu-se, vendo todas as outras crianças com um pai e uma mãe, enquanto ele sequer sabia mais do que o nome de seu progenitor?

- A senhora... Ficou brava, mamãe...?

Acordada por seu timbre temeroso, meus lábios tremeram quando eu quis lhe falar. Passei a mão pelos cabelos, engolindo em seco.

- Não... Não, eu não... – sussurrei. – Miles?...

- Sim?

- Sente-se aqui?... – e dei um leve tapinha no espaço livre a minha direita naquela cama de lençóis vermelhos e velhos. – Eu... Eu conto sobre o seu pai...

Percebi o quanto ele próprio ficou surpreso, e quando, tremendo de uma forma que só eu, como mãe, perceberia, veio sentar-se onde indiquei, cerrando as mãos sobre os joelhos, nervosamente.

- Desculpe... – sussurrou-me em retorno.

- Você está certo, Miles... – eu repliquei, passando a mão por seus ombros pequeninos e trazendo-o para perto de mim. – Neguei-lhe por tempo demais o direito de saber sobre seu pai...

Um quarto branco, feito de lençóis e cortinas tecidos com vapor; um sol brilhante cintilava abertamente. Algum dia, quiseram dizer que o quarto não é etéreo, nem que o jardim é belo, tingido de todas as cores do arco-íris.

Neste mesmo jardim esmeraldino, uma criança brincava. Ela sorria; era feliz. E, sentados nas cadeiras que adornavam a mesa branca de aparência gótica, um casal também sorria, olhando o rebento. Suas mãos se tocavam, com uma cumplicidade palpável. O sol brilhava sobre eles, tingindo-os da cor do metro de neve da temporada de frio. E o ventre dilatado da esposa indicava a presença de outra vida que, logo, iria brindar um pouco mais a felicidade deles.

Percebi uma pequena luz feita de ouro líquido escapando por entre alguma fresta da janela tapada com aquela cortina pesada e escarlate. E percebi a dor tão pungente que me assaltava o peito.

Era o meu sonho. Uma família feliz; uma ilusão de amor.

- Mamãe? – ele me despertou, mais uma vez, de tão dolorosos pensamentos.

- Desculpe, distraí-me um pouco... – suspirei. – Bem, vamos ver... Por onde posso começar...?

Sem que eu pudesse impedir, as imagens brotaram sozinhas.

- Hum... Seu pai era uma pessoa muito excêntrica em absolutamente tudo o que fazia. – eu sorri. – Você sabe o que é “excêntrico”, não é, Miles?

- Sim. É uma pessoa de hábitos incomuns e extravagantes. – assentiu.

- Então, seu pai era uma pessoa assim. A primeira vez em que nos encontramos, ele estava caindo da escada, enfraquecido por um ataque de gripe. Ele tinha ataques ocasionais quando saía. – continuei, enquanto a dor em meu coração palpitava, até ela ser aquilo que o mantinha funcionando. – Sabe por que? O papai tinha um problema, desde pequeno, que o deixou sem nenhuma defesa no sistema imunológico. Então, ele facilmente ficava gripado ou coisa pior. Por causa disso, também raramente saía de casa, se não fosse obrigado. O papai era branco como um fantasma por isso...

Miles olhava-me, interessadíssimo na narrativa. E aqueles olhos de alfazema chicoteavam minha alma, aquela miniatura da pessoa que eu tanto evocava mentalmente naquele instante.

- Continuando a história de como nos conhecemos, o papai caiu em cima da mamãe, porque eu não consegui sustentá-lo... Ele me encarou no fundo dos olhos e me mandou segui-lo. O papai foi muito cruel com a mamãe no começo. Fazia-me executar várias tarefas degradantes, e era muito frio e indiferente. Um dia, porém, ele voltou para casa e caiu, tombado de febre... E então... E então, a mamãe...

Se apaixonou pelo seu pai, meu filho”.

- O-o seu pai... Ele melhorou, claro. Eu cuidei dele, sabia? Eu e a vovó... Depois daquele dia... O papai começou a tratar bem a sua mãe. Aos poucos, ele foi mudando... – suspirei pesadamente, a voz aos poucos falhando e me traindo. – O seu pai tinha muitos problemas... Não se dava bem com algumas pessoas, tinha uma péssima fama e outras coisas... Ma-mas, aos poucos, ele foi mudando. Porque ele queria ficar com a sua mãe, Miles. Ele enfrentou tudo e todos para ficar comigo. O papai era... U-uma pessoa... Muito boa...

O jeito como ele trazia o mundo no olhar...

A forma como me abraçava, tão protetoramente, tão firmemente, como se o mundo fosse se partir e eu fosse sua única ponte segura...

Os seus carinhos, sempre tão gentis...

Suas palavras que sempre me confortavam...

Aquele seu grande coração, que nunca me julgou e sempre viu através de minha alma tudo que eu escondi, sem jamais renegar nenhuma parte de mim e amando igualmente a todas...

A primeira vez que me beijou...

Seu sorriso contido e tão cálido, sempre escondido por baixo daquela imagem ameaçadora que o protegia do mundo...

A primeira vez em que nos amamos...

O jeito com que segurava minha mão e a beijava, da forma mais cavalheiresca possível, parecendo embriagado de minha presença...

E o sangue... O sangue escorrendo, levando junto com ele a sua vida. O seu sorriso. Os seus carinhos. Tudo.

- Mamãe...

Miles tocou-me no braço, e então, quando acordei daquelas lembranças, daquela espiral de lembranças traiçoeiras, eu percebi meu vestido manchado por delicadas gotas arredondadas. Meu rosto recebia uma brisa fria que antes desconhecia. Ao tocá-lo, percebi as lágrimas.

Elas ainda caíam, sem que eu as controlasse. E percebi também que não havia conseguido concluir o meu relato, repentinamente sufocada com minhas próprias lágrimas e os soluços.

- Chega, mamãe... – meu filho sussurrou-me, os olhos repletos de lágrimas igualmente brilhantes. – Não precisa mais continuar...

A dor de ter perdido Mitchell ainda era-me algo físico. Ainda estava ali. E, talvez, jamais iria embora.

Mas, dessa vez, eu ri. Ri, por entre os soluços que insistiam em sacudir-me, e limpei as lágrimas do rosto pálido de Miles, que continuava agarrado ao meu braço. Ele me pareceu tão frágil naquele instante, tão frágil que achei que fosse partir-se em dois; do mesmo jeito que o achei delicado quando o segurei pela primeira vez, um bebê de olhos fechados e de coloração ainda misteriosa para mim, na época.

- Por que você está chorando, hein? Eu nem cheguei na parte emocionante!... – eu continuei rindo e chorando ao mesmo tempo, limpando suas lágrimas com a barra da manga de meu vestido.

- Não precisa mais continuar, mãe... Não quero ouvir essa parte emocionante... Já está bom... – ele repetiu, e novas lágrimas assaltaram os orbes tão logo eu sequei as outras.

- Nem pensar! Vamos continuar a história! – ignorando seus protestos, eu continuei, limpando também minhas lágrimas, rapidamente.

Eu percebi, naquele instante, que aquilo já não era mais apenas para Miles: eu precisava, para meu próprio bem, me lembrar de Mitchell Sunderland.

Por muito tempo, ficamos eu e Miles sentados ali. Eu contei a ele toda a história. Não omiti detalhe nenhum; e ele me encarava com olhos brilhantes de lágrimas e surpresa. Eu percebia o quanto ele admirava aquele fantasma inalcançável que também lhe deu a vida a cada palavra que eu proferia.

No fim, sequer pude conter um sorriso, mesmo que já estivesse chorando tanto que já estava aos soluços.

...Por que eles tinham que ser tão parecidos?


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