Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 45
Capítulo LIV




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LIV

 

À medida que ia recobrando a consciência e deixando que magia do desmaio finalmente cessasse, a náusea e a dor invadiam-me de novo, aos poucos, aproveitando os esgares de dor. A primeira coisa que tive noção de ter sentido foi um cheiro fétido e profundo que parecia aderir-se como poeira e colando-se em cada pedaço do ser, até tornar-se um elemento do próprio corpo em questão.

Em seguida, quase como uma brincadeira de mau gosto, meu corpo foi violentado pela sensação do frio e do calor ao mesmo tempo, o que me provocava um profundo incômodo, talvez até repúdio.

Abri totalmente os olhos e, tomada de um pânico instintivo, tentei sacudir os braços, que estavam acima de minha cabeça. Percebi meus pulsos presos por correntes, atados pateticamente por algemas medievais à própria parede. Percebi também que meus tornozelos seguiam pelo mesmo caminho. O som do tilintar do metal parecia moedas caindo ao chão, e ecoavam assustadoramente.

Poucas agulhas de luz dourada e poeirenta de apenas uma vela tornavam o ambiente minimamente visível. O cheiro me nauseava, mas tão logo me percebi presa, obriguei-me a espiar o local onde eu estava.

Grossas colunas do que parecia ser pedra úmida e da cor de um ônix ascendiam na penumbra até uma abóbada de onde vertiam pingos transparentes de água, como se fossem pequeninas adagas de cristal. Correntes retorciam-se desde o firmamento até o teto, por todos os lugares, numa verdadeira câmara de horror metálico, como serpentes de um Inferno inimaginável, prontas para tragarem almas desavisadas em direção do pecado e da morte.

Com indescritível alívio, percebi que não haviam amordaçado minha boca. Mas, também, não seria necessário; aquela era uma prisão. Uma sala pequenina, sem janelas, com uma mísera luz, cheirando terrivelmente e com uma péssima aparência. Ninguém jamais entraria ali por vontade própria.

Mas, tão breve quanto o alívio, o pânico voltou a tomar-me. Ainda embebida de confusão, percebi só então um par de olhos. Ou melhor... A ausência de olhos. E, de repente, mais outro par. E outro. Quando vi, aquele ambiente minúsculo estava abarrotado de pequenas ninfas pálidas e cegas, de lábios rubicundos e vestidos escuros. Os olhos vítreos refletiam a luz das velas, e seus sorrisos vazios perseguiam-me onde quer que eu olhasse.

Uma miniatura perfeita do quarto de Mitchell Sunderland.

...A prisão da qual tanto ele e Emma Shelser falaram.

- Acordou, senhorita Baker? – uma voz pronunciou-se na escuridão, enquanto meus ouvidos, sensibilizados por aquela tortura quase chinesa de gotas caindo incessantemente no chão, ainda estavam, como o resto de meu corpo, num transe de puro pânico.

Diante de mim, como numa aurora cinzenta e fraca de Outono nas quais impede-se de se ver as cores, um homem de porte alto e imponente prostrou-se diante de mim, tocando-me delicadamente no queixo e me obrigando a erguer os olhos. Um par de fendas negras e quase que felinas encararam-me, frios.

- ...Edward Shelser? – sussurrei, incrédula.

- Não se preocupe, está bem? – ele sorriu-me, entre a benevolência e o sadismo. – Daqui a pouco, aparecerão com um pano úmido para limparmos esse sangue. Um rosto tão bonito o seu, não é, senhorita? Não pode ficar maculado assim.

Presumi, em meio ao medo, que fosse aquela quentura que escorria devagar em meu rosto. Provavelmente, aquela sombra bateu-me na cabeça e eu desmaiei.

- Foi você quem...

- Confesso que a senhorita poupou-me muito trabalho estando na biblioteca. Achei que teria que invadir o quarto e rendê-la. – sorriu ele, acariciando meu rosto.

Tive ganas de cuspir-lhe, mas controlei-me, ou poderia irritá-lo ainda mais. Porque eu sabia que, mesmo com aquele rosto que inspirava a calmaria amedrontada, seja lá quem olhasse para o mesmo, um inimigo ou um aliado, Edward Shelser estava corroendo-se de raiva. Se não fosse assim, jamais teria me agredido e me rendido debaixo de sua própria mansão.

- Aqui é... O subterrâneo...? – gemi, percebendo a ardência em meu braço, talvez por ter ficado muito tempo com ele naquela posição.

- Interessante. A senhorita já sabe até disso?

Edward Shelser deixou escapar uma risada divertida, enquanto acariciava meu rosto, como se eu fosse mais uma boneca da coleção.

- ...O diário da Victoria é mesmo um perigo.

Sua mão enluvada descrevia linhas invisíveis em meu rosto, e começaram a descer por minha garganta, até meu colo. Prendi a respiração, em estado de alerta.

- Por que está fazendo isso...? – sussurrei, cautelosamente, como se as paredes tivessem ouvidos.

Ele respirou profundamente, dedicando-me um olhar mortiço.

- A senhorita foi longe demais, senhorita Baker. E isso me forçou, dentre muitos outros motivos, a agir. Sua tolice começou no momento em que aceitou permanecer com Mitch. Como “meu objeto”, mesmo que você sequer tivesse ciência disso na época, devia ao menos ter pensado objetivamente e perceber que uma relação entre patrão e empregada nunca tem futuro. Não acredita na quantidade de problemas que teria poupado.

Shelser deslizava o polegar pela base metálica da bengala que eternamente segurava, com a insígnia da família gravada bem ali, a mesma insígnia que eu vi tantas e tantas vezes em costas alheias.

- Além disso, você começou a descobrir demais. Emma levou o diário desta mansão e eu só percebi isso tarde demais, quando a senhorita já sabia de tanto que não podia mais simplesmente dar-lhe uma lição. Se esse segredo espalhar-se para os reles plebeus, seria um problema, não? – sorriu-me, como se estivesse contando uma piada. Entretanto, os olhos flamejavam de raiva. – Acredite, eu pretendia apenas torturá-la antes. Mas, agora, já não posso mais deixá-la viva.

Silenciei-me, preocupada em manter o sangue frio e as lágrimas bem onde deviam ficar, não pipocando em meus olhos.

Percebia minha sombra ajeitando-se na penumbra, aumentando e diminuindo, tremeluzindo sob a luz da vela que se queimava aos poucos. Eu estava exatamente nos subsolos da mansão Shelser, as prisões que eles tanto mantinham desde tempos imemoriais.

Muito provavelmente, debaixo de camadas e camadas de madeira e material de concreto, ninguém jamais me ouviria, por mais que eu gritasse. Talvez, os empregados até soubessem disso e tivessem de fazer vista grossa, sob a pena de reclusão igual à minha ou pior. Além disso, perder a cabeça não estava em minha lista de alternativas consideráveis. Precisava manter-me centrada, talvez adiar ao máximo minha execução.

- Você teve tantas chances, cond Edward... Por que justo agora? – perguntei-lhe, ignorando seus dedos que, distraidamente, continuavam a desenhar-me símbolos invisíveis no colo, por cima do vestido.

...Eu sabia que havia chegado longe demais, agora.

- O senhor é uma pessoa tão inteligente. Fria e calculista demais... Deve ter algum motivo para ter-me pego nesta madrugada, mas... – baixei os olhos. – Sem dúvidas, as situações mostraram-se favoráveis desde antes. Se queria me matar, era simplesmente tê-lo feito e mandar Mitchell calar a boca e a boca das empregadas com alguma história sobre minha fuga repentina...

- As coisas fugiram ao controle, minha pequena senhorita Baker. – ele sussurrou-me, num tom que certamente me perseguiria até o fim. – Aparentemente, subestimamos o inimigo.

- “Subestimamos”?...

Ouvi um ruído às costas de Edward Shelser e, desviando de seus olhos negros e felinos apenas por alguns segundos, percebi um vulto aproximar-se, colorindo aquele cubículo minúsculo e fétido de um escarlate apaixonado, tão logo entrou. O tétrico som de rodinhas velhas vinha logo atrás de sua pessoa, e eu percebi uma espécie de “mesinha” de dois andares envelhecida pelo tempo.

A “mesinha” podia estar envelhecida e com uma aparência de milênios de idade, mas os instrumentos que reluziam à luz diáfana da vela que ela carregava em sua outra mão eram extremamente novos.

Tão logo aquela figura enfronhada em um vestido justo e vermelho apareceu diante de nós, eu gelei. Shelser não estava sozinho!...

Diante de mim, além do pano úmido que ele prometera-me para secar minha testa (como eu ainda podia lembrar disso?), em cima daquele objeto de uso médico, outras dezenas de instrumentos médicos descansavam, esperando a sua vez de serem usados uma vez mais: uma coleção macabra e brilhante que ia desde bisturis de todas as formas e tamanhos à tesouras que mais pareciam de poda, roubadas de algum jardineiro desavisado. Algo de fazer inveja até ao mais renomado legista.

- Ah... Quando foi que ela acordou? – perguntou a mulher a Edward. Tinha uma voz extremamente delicada e rouquenha que muito pouco combinava com a sensualidade que evocava aquele seu vestido.

- Não faz muito. – o cond sorriu-lhe. A mim, com surpresa, pareceram-me extremamente íntimos. – Estivemos conversando um pouco. Uma conversa agradabilíssima, não é, senhorita Baker?

Engoli em seco, não contendo mais o pânico que me assaltava o olhar.

- Ela ainda é “Baker”? – um cristalino riso seu ecoou pelo lugar, enquanto eu era assaltada por um inebriante cheiro de eau de toilette feminina, que me trouxe náuseas no meio de todo aquele fedor. – Chegou a tempo, querido.

Para minha surpresa, vi aquela moça apertar, num gesto distraído, a bochecha de Edward Shelser, que riu diante do gesto, cerrando pacientemente os olhos.

Desviei os olhos da cena grotesca para aquela mulher fascinantemente misteriosa. O vestido vermelho tinha um enorme decote que me deixava a par de seu colo imaculadamente branco. Pude ver, mesmo debaixo de luvas negras, que ela tinha unhas compridas e bem cuidadas de uma lady. Uma gargantilha da mesma cor do vestido completava o sóbrio visual que, apesar de inegavelmente sensual, ainda tinha um quê que parecia dar-lhe a alcunha de “vestido fúnebre”.

Ao contrário das ladies de St. Helens, aquela moça (que não me parecia ser muito mais velha que Emma) tinha seus cabelos negros e perfeitamente lisos totalmente soltos; as madeixas caíam-lhe pelos ombros e colo, mas evocavam-me a sensação de que já os vira antes.

Seu rosto era aquilino, muito bem desenhado a traços firmes, mas o que mais me chamava a atenção eram os olhos: raras pedras preciosas e azuis, como quartzos. Um brilho que oscilava entre a malícia e a diversão estava ali pairando, maculando tão perfeitos olhos com a neblina sulfúrica da ambição.

- Vic, pare de ficar encarando a menina. Vai assustá-la. – Shelser riu.

- Olha quem fala, Ed. – ela também sorriu, com uma voz rouca e muito mansa, que dava-lhe a falsa impressão de boa dama. – Pressionou psicologicamente a coitadinha até agora.

Aproximando-se de mim, fazendo-me retesar e friccionar o metal das correntes outra vez, aquela moça que eu tinha certeza que conhecia, mesmo sendo uma total estranha para mim, baixou o rosto até estar, mais ou menos, à altura do meu.

- Você cresceu, Cora. – ela disse-me, passando a mão em meus cabelos, puxando uma mecha acobreada e brincando com a mesma. – Quase não a reconheci.

Sem pensar, prendi a respiração. Aqueles olhos azuis...

- Quase não acreditei também quando o Ed me disse que você estava se envolvendo com o Mitch. Logo você! – suspirou. – Parecia uma menininha tão tímida e boazinha... Como cometemos enganos nessa vida!...

Os cabelos, outrora, foram loiros. O rosto, um pouco mais jovem. E o vestido nunca foi vermelho.

Mas os olhos... E o sorriso... Nunca iriam mudar. Nem em um milhão de anos.

- Victoria...? – sussurrei, entre o pânico e a incredulidade.

- Que bom que ainda lembra de mim. – e ela sorriu.


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